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7 de novembro de 2011

Saramago despista-se

     Para que não haja dúvidas: sou um admirador de José Saramago, considero-o um grande escritor, um merecido Prémio Nobel. Li seis dos seus romances (Levantado do Chão, Memorial do Convento, O Ana da Morte de Ricardo Reis, Jangada de Pedra, Ensaio Sobre a Lucidez e A Viagem do Elefante), além de As Pequenas Memórias e a peça A Noite. Tenho especial interesse na História do Cerco de Lisboa, O Evangelho Segundo Jesus Cristo e Ensaio Sobre a Cegueira, e também pela peça In Nomine Dei, os três primeiros com anos de espera na minha pilha infinita.
     Começando por referir-me ao que gostei nesta leitura dum livro que não apreciei: o uso rigoroso da palavra; as digressões já não garrettianas mas já muito saramaguianas -- característica própria que nele aprecio; a ironia, o sarcasmo; piscadelas de olho maliciosas ao leitor.
     Tal como não gostei da Jangada de Pedra, um romance desiquilibrado (aliás o próprio escritor admitiu algures o seu falhanço), também este Ensaio Sobre a Lucidez não me satisfez. Saramago a certa altura perdeu a mão, despistou-se, algo que ele também reconhece, lúcido romancista, desta vez no próprio corpo do texto (p. 188).
     A história é conhecida: os eleitores de uma cidade capital, mais de 80%, decidem expressar o seu voto de forma inusitada: depositam na urna o boletim em branco. Em presença estão três força políticas: o partido da direita (no governo), o partido do meio e o partido da esquerda. Os dois primeiro representam o establishment; o último está nele (digamos: pdd=psd[+cds?]; pdm=ps; pde=pcp). A partir daqui, o autor construiu uma trama em que um movimento popular de claras tendências anarquizantes (não esquecer que anarquismo é uma palavra de sentido positivo e nobre, com um laivo de utopia  que nada tem que ver com desordem e vocábulos equivalentes, apesar de se ter generalizado a percepção contrária) afronta dessa forma o poder instituído, que se sente ameaçado e irá ripostar.
     E como riposta, nesta ficção de Saramago, um governo de um sistema demo-liberal? Com a determinação e a violência de uma junta militar chilena, em 1973, ou polaca em 1981. Os freios e contrapesos de um sistema demo-liberal é coisa que não se vislumbra: nem parlamento nem tribunal constitucional, para não falar na imprensa -- a que conta, mancomunada com os interesses do Estado; a que não conta, residual. Existe o governo e o pr, do pdd; o pdm só existe porque o narrador nos afirma que ele existia, mas não passa de uma extensão do primeiro; o pde, o terceiro partido, não está na origem desta sedição eleitoral, mas identifica-se com, e os militantes apoiam-na, que remédio. Não sei se é por ser tão absurda esta parte do romance que o autor nele se perdeu, inflectindo a narrativa numa direcção investigatória e policiária, recorrendo a personagens do Ensaio Sobre a Cegueira, cosidas à trama inicial de uma forma bastante atabalhoada.  Há, portanto, uma incongruência e uma inverosimilhança intrínsecas ao romance que são irreparáveis.
     Sem querer ser injusto, partindo do esquema ideológico do autor, de base totalitária e fundamentalmente antiliberal, a denúncia simplista de uma espécie de ditadura democrática carece de base de sustentação, é inaplicável aos velhos estados democráticos e até aos menos velhos, como o nosso. O próprio sobressalto libertário do povo da cidade fica em suspenso (o que talvez não admire, sendo o anarquismo por alguns qualificado como o mais socialista dos liberalismos ou o mais liberal dos socialismos...). É evidente que quotidianamente assistimos a inúmeros entorses à democracia, que todos os estados democráticos cometem acções que extravasam e violam grosseiramente a legalidade (lembremo-nos dos serviços secretos franceses e do barco da GreenPeace; ou do estado espanhol e os GAL...), e que o poder, regra geral, se exerce antes de tudo para ser conservado. Mas o que é inestimável numa sociedade aberta é, entre outras coisas, a livre circulação da informação; e só ela permite que as populações tomem consciência e resistam aos abusos de poder perpetrados pelos governantes. Como dizia o velho Churchill, não há pior sistema que a democracia, à excepção de todos os outros.
    No fundo, o que quer Saramago com este livro? Denunciar o sistema? Francamente, é pouco.