23 de julho de 2014

O QUE TERIA SIDO LIDO HOJE, SE...

"Os lupis tinham boas relações com alguns animais da planície. Em particular com o cágado e a cabra de rabo-de-leque. Muitas vezes se visitavam. Os lupis gostavam muito da prudência e sabedoria do cágado. Sobretudo o lupi-pensador e o lupi-sábio, seus grandes kambas, que tinham conversas profundas com ele, a tentar descobrir sentidos escondidos na desordem babélica deste mundo. A cabra de rabo-de-leque era muito meiga e bondosa, com aqueles olhos assustados e cheios de ternura. Também o esperto coelho, o Kandimba, vinha muitas vezes à montanha. Os lupis lupilavam de gozo até se rebolarem no chão com as divertidas anedotas e muimbos que ele contava. 
Os animais maiores, como o elefante, o búfalo e o próprio rinoceronte, não tinham relações nenhumas com os lupis. Ignoravam-se. Os lupis nunca desciam da montanha para ir à planície e, depois da expulsão dos rinocerontes, estes não mais subiram à montanha. E passaram o mujimbo dos seus tormentos aos elefantes e búfalos, os quais não ousavam pisar território lupi, certamente com medo de ficarem arrasados dos nervos."

PEPETELA -  A MONTANHA DA ÁGUA LILÁS (Fábula para todas as idades)



18 de julho de 2014

EXCERTO DO FUTURÍVEL "O ASCETA"

Aos domingos e dias de preceito o átrio das cruzes perdia um pouco do seu ar desolado e animava-se com o afluxo dos fiéis que chegavam das aldeias mais próximas para assistir à missa conventual ou ser ouvidos em confissão. Alguns traziam víveres para os monges, coisas simples e parcas, como pão de centeio, peixe seco, algum cabaz de frutas, uma ou duas onças de sal, um molho de nabiças, uma púcara de azeitonas, meia dúzia de queijinhos de cabra, um selamim de feijão. Por vezes, quando achava que a quantidade das dádivas excedia as necessidades imediatas do convento - a regra impunha que não se armazenasse mais do que o necessário para três dias - o guardião recusava com delicadeza, e alguns camponeses regressavam a casa com o alforge só parcialmente aliviado."

(F. Faria)

14 de julho de 2014

um parágrafo de Raul Brandão

«Lá está a velha casa abandonada, e as árvores que minha mãe, por sua, dispôs: a bica deita a mesma água indiferente, o mesmo barco arcaico sobre o rio, guiado à espadela pelo mesmo homem do Douro, de pé sobre a gaiola de pinheiro. Só os mortos não voltam. Dava tudo no mundo para os tornar a ver, e não há lágrimas no mundo que os façam ressuscitar.»

Memórias, vol. I [1919], Lisboa, Perspectivas & Realidades, s.d.
(lido na sessão de 9.VII.2014)

11 de julho de 2014

A PRIMEIRA BISNETA, João de Barros

 
 
Para o futuro neto da Teresa e do
Marcelo. Na noite de Natal de 1956.

Tal o menino Jesus
os meninos nascem nus...
Mas Aquele não tem frio,
vem lá do céu direitinho,
e no céu tudo é quentinho.
Os outros, quanto arrepio
no seu corpinho macio!
Então a Avó, com afã,
para evitar-lhe percalços,
por causa dos pés descalços,
corre a buscar sapatinhos
de boa lã
(boa lã da Covilhã)
que os pèzinhos aconchega...
Nenhum inverno lhes chega!
-- Oferta de puro amor
que é sempre o melhor calor.



João de Barros, Eterno Mar -- Último Versos, edição da família do Autor, 1967
(lido na sessão de 9.VII.2014)

8 de julho de 2014

"memórias de uma estranha primavera"

Testemunho romanceado da vida de seminarista que o autor conheceu na juventude. A meu ver, a leitura fará mais sentido encarada como relato memorialístico do que como ficção, apesar de existirem elementos ficcionais (e até de fantástico, como um viajante no tempo sob o qual a narrativa se estrutura). O subtítulo, Memórias de uma Estranha Primavera, é, aliás, bastante claro.  
Um aspecto interessante do livro é o da não coincidência com outros textos de temática idêntica sobre a vida nos seminários, habitualmente mais negros. Não que o trauma não esteja presente -- nada mais natural num universo disciplinador vivido durante a adolescência; porém, a narrativa é destituída dos episódios escabrosos que à partida aguardamos, quando se trata de seminários ou internatos. (Preconceito, ou sorte de quem viveu esta história concreta?) Há passagens particularmente interessantes, entre as quais destaco as que giram em torno do afastamento da casa e da família, das saudades lancinantes, que afloram como a mais dolorosa provação de Filinto, ou seja, o autor. 
Fernando Faria,  As Viagens de Filinto, Lisboa, Chiado Editora, 2013

3 de julho de 2014

um parágrafo de D'Annunzio

«Ela e o Delfim tinham-se amado sempre, desde o tempo em que brincavam no areal, atormentavam os caranguejos ou patinhavam na água; haviam-se beijado mil vezes à luz do sol, em frente do mar; mil vezes tinham lançado ao mar e ao sol a divina canção da mocidade de ambos... Ah, que bela, robusta, audaciosa mocidade, temperada na água salgada, como rija lâmina de aço!»

«O Delfim», Terra Virgem, tradução de M. L., Lisboa, Editorial Minerva, 1955, pp. 107-112.
(lido na sessão de 25.VI.2014)