30 de setembro de 2011

A RELIGIOSA, segundo Jaime Brasil

     «O romance graças ao qual o nome de Diderot sobrevive como romancista é, sem dúvida, "A Religiosa". Romance realista, romance de costumes e de crítica social, foi escrito para condenar a tirania do pátrio poder e, ao mesmo tempo, a vida anti-natural dos conventos. [...]
     O romance é ousado por alvejar duas intituições que, então, mais ainda do que hoje, os preconceitos pretendem que sejam inatacáveis. Ousado ainda nas refrências às paixões lésbicas existentes nos conventos, sem contudo descer ao género licencioso, que alguns críticos pudibundos pretendem ver nele. [...]
     [...] "A Religiosa" é uma obra rica de diálogos, de frases curtas, de vivacidade, de pitoresco, demonstrando, mais do que qualquer outra,a riqueza e elegância do estilo de Diderot.»

Jaime Brasil, Diderot e a Sua Época, Lisboa, Editorial Inquérito, 1940, pp. 84-85.

o escritor e a oficina

«[...] além da tarefa de fazer o resumo das diversas escolas filosóficas e de tratar dos sinónimos, tinha escolhido para si todas as descrições das artes e ofícios. Como queria dar à obra um carácter eminentemente prático e expor a matéria com conhecimento de causa, ia às oficinas ver como se praticavam os diversos mesteres, como funcionavam as máquinas, como se chamavam e para que serviam os diversos utensílios. Não se contentava com ver e ouvir, pedia que lhe ensinassem o funcionamento, e ele próprio, graças a uma inteligência prodigiosa, executava, ante a surpresa dos artífices, os diversos trabalhos que depois descrevia. Assim aprendeu a tecer, a trabalhar no vidro, a imprimir, a burilar metais, etc., com tanta perfeição como os mais experimentados operários. Não esqueceu os mestres que lhe ensinaram essas artes, pois os nomes daqueles que lhe deram informações úteis nesse campo figuram na Enciclopédia -- coisa até então nunca vista -- ao lado dos de filósofos, artistas, homens de ciência.»

Jaime Brasil, Diderot e a Sua Época, Lisboa, Editorial Inquérito, 1940, pp. 72-73.

22 de setembro de 2011

Natureza e Homem em Ferreira de Castro

«Natureza e Homem em Ferreira de Castro: Imagens de uma relação», conferência pela nossa colega Ana Cristina Carvalho, sexta-feira, 23 de Setembro, pelas 18 horas, no Museu Ferreira de Castro. Apareçam!

imagem: Alex Gozblau

elogio do libertino

A moral que prègava era a sua moral, «sem obrigações nem sanções», moral voluntária e natural, sem conformismos convencionais. A sua vida de boémio foi apenas a dum libertino, na acepção que o termo tinha antigamente, isto é, de amante da liberdade, liberdade de acção e de expressão. 

Jaime Brasil, Diderot e a Sua Época, Lisboa, Editorial Inquérito, 1940, p.27.

da alquimia enciclopedista

Ao contrário dos medíocres, que só recebem do ambiente onde vivem o que há nele de estratificado, homens como Diderot sabem seleccionar o que é raro e colher no ar o pólen doirado do que parece insignificante, para o transformar em frutos opulentos.

Jaime Brasil, Diderot e a Sua Época, Lisboa, Editorial Inquérito, 1940, p. 25. 

21 de setembro de 2011

outro poema da Marquesa de Alorna

Como está sereno o Céu,
como sobe mansamente
a lua resplandecente,
e esclarece este jardim!

Os ventos adormeceram;
das frescas águas do rio
interrompe o murmúrio
de longe o som de um clarim.

Acordam minhas ideias,
que abrangem a Natureza,
e esta nocturna beleza
vem meu estro incendiar.

Mas se à lira lanço a mão,
apagadas esperanças
me apontam cruéis lembranças,
e choro em vez de cantar.

Poetas do Século XVIII, selecção, prefácio e notas de M. Rodrigues Lapa, 3.ª edição, Lisboa, Seara Nova, 1967.

(lido numa sessão de 2011)

Diderot, em traços largos

«Este homem portentoso, que soube ser iconoclasta e tolerante, era modesto e generoso como ninguém, mas como poucos orgulhoso dos seus méritos e ávido de riquezas para as distribuir. Visto a distância toma as proporções dum super-homem.  Era, porém, apenas um homem, com todas as misérias e toda a grandeza da condição humana. Sofreu muitas privações e angústias; andou mal vestido e passou fome; habitou em mansardas miseráveis; sujeitou-se a intoleráveis caprichos femininos e teve de molhar a sua pena nas tintas da adulação para retribuir a generosidade duma cabeça coroada, que lhe minorou com dinheiro algumas dificuldades materiais. Como todos os homens, aspirou à liberdade e sofreu a servidão.»

Jaime Brasil, Diderot e a Sua Época, "Nota do Autor", Lisboa, Editorial Inquérito, 1940, p. 9.

19 de setembro de 2011

um biógrafo português de Diderot

Antes de me lançar ao próximo livro, apeteceu-me reler a sucinta biografia Diderot e a Sua Época, de Jaime Brasil, publicada nos magníficos «Cadernos Culturais» da Editorial Inquérito, em Fevereiro de 1940.
Brasil foi um cultor do género biográfico, como poucos entre nós (Mário Domingues e Agostinho da Silva serão os casos mais salientes). Senhor de um grande estilo, jornalístico, na melhor acepção da palavra, dedicou-se a esquadrinhar as vidas de Ferreira de Castro (de quem foi grande amigo), Diderot, Victor Hugo, Zola, Rodin, Leonardo (esta recentemente reeditada), Velázquéz, Balzac... -- para além de outros géneros literários: da polémica à reportagem, da divulgação científica à bibliografia, sem esquecer as traduções ou a epistolografia, em que foi exímio.
Durante esta semana, colocarei uns pòzinhos deste estudo biográfico, que, diga-se, foi escrito em Paris, cidade em que se exilou até à ocupação alemã, que ainda viveu.

18 de setembro de 2011

olhar de frente

«O Bispo olhou-o. Era um homem igual a muitos outros. Lembrava a gente de Varzim. Tinha lama nos trapos e a escrita da fome na cara. Nas mãos havia um gesto de paciência. Um gesto muito antigo de paciência. E de repente pareceu ao velho Bispo que todo o abandono do mundo, todo o sofrimento, toda a solidão, o olhavam de frente no rosto daquele homem. Coisa difícil de olhar de frente.»

Sophia de Mello Breyner Andresen, «O jantar do Bispo», Contos Exemplares, Lisboa, Portugália Editora, s. d., p. 67.

A exemplaridade destes contos de Sophia, publicados em 1962 e prefaciados por D. António Ferreira Gomes, o bispo do Porto então no exílio.
Exemplaridade porque escritos sob a pureza de uma mensagem cristã, ao arrepio da Igreja oficial, comandada pelo cardeal Cerejeira, conivente com um país onde imperava a pobreza e o medo; Igreja que, cúmplice de um estado policial, se atraiçoava a si própria. Por isso, aqueles que não suportaram a mentira e olharam de frente, tiveram os destinos que são conhecidos. 

15 de setembro de 2011

e assim começa PLATERO E EU

Platero é pequeno, peludo, suave; tão macio, que dir-se-ia todo de algodão, que não tem ossos. Só os espelhos de azeviche dos seus olhos são duros como dois escaravelhos de cristal negro.

Juan Ramón Jimenez, Platero e Eu, tradução de José Bento, Lisboa, Livros do Brasil, s. d., p. 9.

13 de setembro de 2011

um poema da Marquesa de Alorna

Sozinha no bosque
com meus pensamentos,
calei as saudades,
fiz trégua a tormentos.

Olhei para a lua,
que as sombras rasgava,
nas trémulas águas
seus raios soltava.

Naquela torrente
que vai despedida
encontro, assustada,
a imagem da vida.

Do peito, em que as dores
já iam cessar,
revoa a tristeza,
e torno a penar.

Poetas do Século XVIII, selecção, prefácio e nytas de M. Rodrigues Lapa, 3.ª edição, Lisboa, Seara Nova, 1967, pp. 103-104.

(lido numa sessão de 2011)

a nossa equipa


Leonor de Almeida Portugal, 4.ª Marquesa de Alorna, por Pitschmann


9 de setembro de 2011

e assim escreveu Ferreira de Castro

Certamente existirá cópia (ou o original) no Museu. Vem na revista "a cidade", de Portalegre, número especial de Outubro de 1984, cujo exemplar me foi dado por um ilustre portalegrense. O autor de "Emigrantes" escrevia a Câmara Reys sobre um "MANIFESTO DOS INTELECTUAIS PORTUGUESES AO SEU PAIZ", manifesto que viria a ser assinado por 58 personalidades.

8 de setembro de 2011

e assim começa EMIGRANTES

Preta e branca, preta e branca, o preto mui luzidio e muito níveo o branco, a pega, de cauda trémula, inquieta, saracoteava entre carumas e urgueiras, esconde aqui, surge ali, e por fim erguia voo até a copa alta do pinheiro, levando no bico ramo seco ou graveto.


Ferreira de Castro, Emigrantes, 24.ª edição, Lisboa, Guimarães Editores, 1988, p. 19.



7 de setembro de 2011

e assim começa UMA VIDA PELA METADE

Willie Chandran perguntou um dia ao pai:
-- Porque me chamaram Somerset? Os miúdos na escola descobriram e andam a gozar-me.
O pai disse meio tristonho:
-- Pusemos-te o nome de um grande escritor inglês. Deves ter visto livros dele aí pela casa.
-- Mas não os li. Gostavas assim tanto dele?
-- Não sei bem. Ouve e logo verás.

V. S. Naipaul, Uma Vida pela Metade, tradução de Maria João Delgado, 4.ª edição, Lisboa Publicações Dom Quixote, 2002, p. 11.

5 de setembro de 2011

um soneto de João Xavier de Matos

Que assim sai a manhã, serena e bela!
Como vem no horizonte o sol raiando!
Já se vão os outeiros divisando,
já no céu se não vê nenhuma estrela.

Como se ouve na rústica janela
do pátrio ninho o rouxinol cantando!
Já lá vai para o monte o gado andando,
já começa o barqueiro a içar a vela.

A pastora acolá, por ver o amante,
com o cântaro vai à fonte fria;
cá vem saindo alegre o caminhante:

Só eu não vejo o rosto da alegria:
que enquanto de outro sol morar distante,
não há-de para mim nascer o dia.

Poetas do Século XVIII, selecção, prefácio e notas de Rodrigues Lapa, 3.ª edição, Lisboa, Seara Nova, 1967, pp. 85-86.


(lido numa sessão de 2011)