22 de dezembro de 2017

o desengano de K. Maurício

«Com que sorriso de piedade se desesperava por ter acreditado na arte e na virtude, quando só existe, hirto, o oiro. Aqueles que nascidos sem ilusão, ou que cedo a tinham arrancado, triunfaram, mercê da tenacidade: ele, que passara a mocidade absorvido no Sonho, quando acordou, já tarde, viu-se velho, cambado e escarnecido. E só tinha sofrido...» Raul Brandão, A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore [1926], Lisboa, Editorial Verbo, 1972, pp. 11-12.

18 de dezembro de 2017

o outro lado da 'Cidade Maravilhosa'


«Como é feia a cidade maravilhosa vista do lado de lá -- do lado dos subúrbios e da periferia, do lado da miséria.» Zuenir Ventura, Inveja -- Mal Secreto, Lisboa, Planeta, 2010, p. 32.

14 de dezembro de 2017

INSANUS OU A INSÂNIA DO QUOTIDIANO

Insanus, de Carlos Querido, é um livro de contos editado em Julho deste ano pela Abysmo. Anteriormente, o autor publicara Salir de Outrora (2007), Praça da Fruta ( 2009), A Redenção das Águas (2013) e Príncipe Perfeito-Rei Pelicano, Coruja e Falcão (2015). Se o primeiro destes livros se apresenta como uma pesquisa em torno de documentos históricos relativos aos coutos do Mosteiro Cisterciense de Alcobaça, Praça da Fruta é uma narrativa cuja acção decorre nos nossos dias, remetendo embora para os marcos históricos fundamentais das Caldas da Rainha (em cuja região nasceu e reside o autor), enquanto os dois últimos livros são romances históricos em torno das figuras reais de D. João V e D. João II, ambas com ligações conhecidas ao burgo caldense.
O conto, género literário agora trabalhado pelo autor, radica «em ancestrais tradições culturais que faziam do ritual do relato um factor de sedução e de aglutinação comunitária» (Dicionário de Narratologia de Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes), processo bem patente em duas obras da tradição europeia: Decameron, de Boccaccio (séc. XIV), e Heptameron, de Margarida de Navarra (séc. XVI). É caracterizado pela concisão, brevidade e unidade de efeito (Allan Poe). Certa crítica realça-lhe a capacidade de criar uma atmosfera em detrimento da acção.
Os contos de Insanus não têm uma leitura linear e unívoca. Há a considerar uma história de superfície (em que o estranho ou o fantástico quase sempre imperam) e outra escondida, de segundo nível, a que não se acede directamente. Neste sentido, é compreensível que a epígrafe da colectânea tenha sido retirada de Edgar Allan Poe, autor de contos fantásticos e teorizador do género literário short story. São vinte e nove contos narrados na primeira e na terceira pessoa com as vozes das personagens fundidas no discurso do narrador. Tratando-se de contos curtos (entre duas a sete páginas), estabelece-se um relação próxima com o poema, o fragmento e até o sketch, tendo em conta o humor amargo que transparece em alguns deles. As marcas da ambiguidade e do inesperado estão presentes nas alusões aos universos paralelos e às dicotomias sombra/luz e mundo real/mundo fictício. A referência em diversos textos à figura da “Repartição”, opressora e castradora dos sonhos das personagens, sugere a dimensão do desejo irrealizado face ao desencanto da vida quotidiana, trazendo à lembrança o poema “O Funcionário Cansado”, de António Ramos Rosa, do livro Viagem através de uma Nebulosa (1960): «Sou um funcionário apagado / um funcionário triste / a minha alma não acompanha a minha mão» – da mesma forma que a sombra não acompanha o corpo da personagem do conto “Sombras”, antes se solta dele num registo paradoxal e inquietador.      
Não sendo possível abordar todos os textos da colectânea, referir-nos-emos de forma breve a “MitoLógico”, “Legião é o Meu Nome” e “Insanus”.
“MitoLógico” retoma a imagem do unicórnio de Júlio Pomar, pintura realizada em 1955 para o Café Central das Caldas da Rainha, já referida pelo autor em Praça da Fruta. Porém, a atenção do leitor é conduzida neste conto para a lição de Kafka, precisamente a que é dada em A Metamorfose. Com uma diferença assinalável: se o infeliz Gregor Samson não encontra forma de resolver a sua monstruosa transformação, acabando por morrer para alívio de toda a família, a inominada personagem de “MitoLógico” descobre talvez a salvação no relacionamento com a sua colega de curso. Neste sentido, apesar do final ambíguo, regista-se uma mensagem que diríamos de esperança. História de recorte fantástico, deve ser vista com mais propriedade na sua dimensão metafórica e simbólica. O género conto, pela concisão e brevidade, presta-se à transmissão de um conceito moral ou um exemplo. Vários títulos testemunham esta aptidão que lhe é normalmente reconhecida: Contos & Histórias de Proveito & Exemplo (Gonçalo Fernandes Trancoso), Novelas Exemplares (Cervantes), Contos Exemplares (Sophia). Em “MitoLógico” há indiscutivelmente uma história de proveito e exemplo: a do adolescente incompreendido pelos seus progenitores, o recurso a psicólogos para suprir as consequências da falta de amor, a necessidade de encontrar fora da família, entre os da sua idade, o amparo que lhe falta em casa. Há aqui, sob a narrativa de superfície, uma mensagem não explícita para o leitor desvendar. Aliás, a introdução da letra capital L no cerne do título, desintegrando a estrutura semântica do vocábulo e transformando-o no sintagma “mito lógico”, estabelece um paradoxo indiciador de que muito mais há a ler e a compreender para além da peripécia do aparecimento do corno na testa do protagonista.
“Legião É o Meu Nome” representa, de certa fora, um diálogo intertextual com o episódio do geraseno endemoninhado, segundo os evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas. De que maneira pode aceitar um defensor dos direitos dos animais, como é o caso do protagonista do conto, o sacrifício da vara de porcos a que se acolheu, por vontade de Jesus, a legião de demónios? O conto questiona a mensagem dos evangelhos e a insensibilidade do Filho de Deus que deixou afogar no mar os indefesos animais. Marcos dá-nos conta do desespero dos próprios gerasenos perante aquele “massacre” de consideráveis consequências económicas (a vara tinha cerca de dois mil porcos), tendo suplicado a Jesus que abandonasse os seus territórios (Marcos, 5-17). Assim, a alusão ao hermético episódio dos evangelhos e a incompreensão dos pastores da Igreja (padre Serafim) perante a crise psíquica do protagonista traduzem-se numa crítica aos que, confundidos por princípios religiosos, abandonam os homens à solidão e ao sofrimento sem remédio. Aspecto interessante deste conto é o facto de a narração se efectuar em registo epistolar através de carta dirigida pelo protagonista à sua mulher, carta datada de Rilhafoles, 13 de Maio de 2013 ( curioso, tanto o local como a data), não faltando mesmo um post scriptum.   
Finalmente, “Insanus”,  o último conto que dá título à colectânea. Neste texto, segundo um efeito de mise en abyme, há um narrador que conta uma história sobre o autor-narrador dos vinte e oito contos antecedentes. Mais uma vez, estão presentes as alusões a lugares das Caldas da Rainha (fonte das Cinco Bicas) e da sua região (feira medieval de Óbidos). É na noite da cidade termal, entre o «cheiro tépido de cinza e enxofre», que ocorre a revolta das personagens contra o criador que lhes deu a vida (vida de cão, como se lê em diversos contos). É grande o rol das criaturas: «um tipo que cheira a cinza, um unicórnio, náufragos, suicidas, uma mulher que tem o corpo do marido a apodrecer em casa, um pistoleiro sem nome, dois pregadores, um surfista, etecetera, etecetera» – todas saídas das páginas do livro. Protestam as infelizes por não lhes ter sido dada uma existência decente, fazendo-as protagonistas de enredos tristes e desgraçados.  O autor-narrador sente-se culpado, tem dúvidas sobre a legitimidade das histórias e pensa em outras soluções que poderia ter encontrado para não fazer tão infelizes as suas criaturas. Tomado pelas dúvidas, talvez se tenha lembrado da conhecida frase de Nietzsche: «Não é a dúvida, mas a certeza que nos torna loucos»  –  ele que havia criado os seus contos ao abrigo de uma frase peremptória sobre a insânia:  I became insane, with long intervals of horrible sanity. E sente-se  aliviado quando por fim amanhece e as personagens contestatárias desaparecem «para cumprir os enredos que são os seus destinos».
Pela nossa parte, não tendo motivo para recear personagens de ficção, ficamos a aguardar com interesse os próximos contos de Carlos Querido.

 




13 de dezembro de 2017

4 prisioneiros numa cela

«Voltaram a calar-se. Estavam sobre os caixotes, com os cotovelos fixos nos joelhos e as faces entre as mãos, humildes, apagados, à maneira de emigrantes esperando no cais, resignadamente, o momento de embarque; e, por detrás deles, a cela apresentava uma obscuridade de porão que tivesse apenas meia escotilha aberta.»  Ferreira de Castro, A Experiência [1954], 11.ª ed., Lisboa, Cavalo de Ferro, 2014, p. 44.

7 de dezembro de 2017

Lessing em Almada



Nathan o Sábio, de G. H. Lessing, estreia hoje no Teatro Municipal Joaquim Benite, levada à cena pela Companhia de Teatro de Almada, com encenação de Rodrigo Francisco.

29 de novembro de 2017

Camilo, psicólogo

«Péssima qualidade têm as boas almas: é serem comunicativas, abertas, dadas com infantil expressão.» Camilo Castelo Branco,O Judeu (1866), Silveira, E-Primatur, 2016, p. 149.

21 de novembro de 2017

do milagre

«NATHAN - - [...] A minha Recha
não aceita que seja milagre ter sido salva
por um ser humano, o que já de si é um milagre
e nada pequeno! [...]»


Gottold Ephraim Lessing, Nathan o Sábio, trad. Yvette Centeno, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2016, p. 45.

17 de novembro de 2017

«O crânio, e depois o temperamento:

as duas partes mais duras do corpo.» J. M. Coetzee, Desgraça [1999], trad. José Remelhe, Lisboa, Biblioteca Sábado, 2008, p. 6.

13 de novembro de 2017

da coragem

«A coragem na guerra e a coragem do pensamento são duas coragens diferentes. E eu julgava que eram a mesma.» Svetlana Alexievich, A Guerra não Tem Rosto de Mulher (1985), trad. Galina Mitrakhovich, Lisboa, Elsinore, 2016, p. 29.

7 de novembro de 2017

"NATHAN O SÁBIO" E OUTROS LIVROS

As cruzadas vistas pelos árabes, de Amin Maalouf, é um livro que surge naturalmente na leitura do poema dramático Nathan o sábio, de Gotthold Lessing. Como não estive presente na sessão, não sei se a obra do escritor libanês foi referida pelos colegas do Clube de Leitura ou pelos visitantes do teatro de Almada.
A peça de Lessing, escrita, como sabe quem leu o prefácio de Manuela Nunes, para arrumar de forma exemplar a controvérsia teológica e filosófica com o ortodoxo luterano Johann Melchior Goeze, afasta-se um pouco da verdade histórica e, na verdade, nem tinha de a respeitar por inteiro. O aspecto que mais me intrigou, foi a presença em Jerusalém do patriarca romano. À luz de Maalouf e dos cronistas árabes citados, o patriarca abandonou a cidade depois de ela ter sido tomada por Saladino em 1187. O sultão de origem curda (Saladino nasceu em Tikrit, actual Iraque) foi, de resto, magnânimo, deixando-o sair com todo o ouro da igreja e aliviando consideravelmente o valor dos resgates exigidos para a partida dos cristãos. Destes, só os ortodoxos gregos e os jacobitas permaneceram na cidade santa das três religiões monoteístas.
Já as referências ao exaurido tesouro de Saladino são concordantes com a palavra dos cronistas. As promíscuas alianças existentes naquele século XII entre o pessoal político-militar dos diversos credos, sobretudo  cristãos e muçulmanos, tornam verosímil o novelo de parentescos desfiado nas últimas cenas.  
Sem tirar mais conclusões, penso que Nathan o sábio deverá ter originado uma boa discussão entre os leitores. É um livro como gosto, dos que nos obrigam a procurar outros livros. Foi por ele que voltei a folhear o Decameron de Boccaccio, em cuja obra se inscreve  a parábola dos três anéis, usada por Lessing como peça fulcral do seu poema dramático e contada, na obra do escritor toscano, pela personagem Filomena. Ainda sobre Boccaccio: são notáveis o prefácio do autor sobre a peste que grassou em Florença de Março a Julho de 1348 e a sua judiciosa conclusão a respeito das «cem novelas que em dez dias contaram sete donzelas e três donzéis.»

2 de novembro de 2017

o Sonho

-- Mas afinal que sonho é esse em que falas?
-- É para lá da vida, é a vida ideal. É talvez o céu. Em arte, é o livro que se entrevê e que gagueja, nunca atingindo o livro que imaginamos. E, em música, a aspereza em lugar dos sons e das vozes misteriosas que ouvimos em certas horas e que não podemos reproduzir.» Raul Brandão, A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore [1926], Lisboa, Editorial Verbo, 1972, p. 8.

30 de outubro de 2017

uma epígrafe de Ovídio

«A inveja habita no fundo de um vale onde jamais se vê o sol». Em Inveja -- Mal Secreto, de Zuenir Ventura (1998).


25 de outubro de 2017

névoa sobre a vila

«Caía uma chuva miudinha. Caía sobre a  neblina que se agarrava ao chão, babujando a terra, como fumaça de fogueira que uma atmosfera pesada não deixasse subir. A praça dir-se-ia coberta de algodão movediço e das mulheres que a atravessavam ora se via apenas a cabeça, ora somente um vago negrume agitando-se no meio da brancura ululante.» Ferreira de Castro, A Experiência [1954], 11.ª ed. [1.ª autónoma], Lisboa, Cavalo de Ferro, 2014, p. 43.



19 de outubro de 2017

"verbo áspero"

«[...] a mãe passou a carpir em sua própria língua, puxando um lamento milenar que corre ainda hoje a costa pobre do Mediterrâneo: tinha cal, tinha sal, tinha naquele verbo áspero a dor arenosa do deserto.» Raduan Nassar, Lavoura Arcaica [1975], Lisboa, Companhia das Letras, 2016, p. 170.

17 de outubro de 2017

a morte, essa galhofeira

«A morte costuma assim zombar com algumas das suas presas, como a fera com a vítima, quando a deixa fugir já ferida, e salteando-a outra e muitas vezes, renova o gozo de lhe rasgar as carnes, até que duma assentada a despedaça.» Camilo Castelo Branco, O Judeu [1866], Silveira, E-Primatur, 2016, p. 127.

13 de outubro de 2017

o início da DESGRAÇA

«Para um homem da sua idade, cinquenta e dois anos, tem resolvido bastante bem, segundo ele, o problema do sexo.» J. M. Coetzee, Desgraça [1999], trad. José Remelhe, Lisboa, Biblioteca Sábado, 2008, p. 5.



11 de outubro de 2017

"Percebi que as mulheres têm maior dificuldade em matar."


«A sensação insuportável de que não se quer morrer está sempre no centro. Ter de matar é ainda mais insuportável porque a mulher dá vida. Doa-a. Transporta-a longamente dentro de si, cria-a, desfaz-se em cuidados. Percebi que as mulheres têm maior dificuldade em matar.» Svetlana Alexievich, A Guerra não Tem Nome de Mulher (1985), trad. Galina Mitrakhovich, Lx., Elsinore, 2016, p. 24.

2 de outubro de 2017

"e todos de mãos dadas a olhamos com sofreguidão e candura."

«Por melhores e mais conscientes amizades que mais tarde se adquiram, nenhuma chega à dos vinte anos, quando o homem não tem interesses a defender e os sentimentos estão em pleno viço. Não há um de nós que saiba ainda o que vale a existência e todos de mãos dadas a olhamos com sofreguidão e candura.» Raul Brandão, A Morte do palhaço e o Mistério da Árvore [1926], Lisboa, Editorial Verbo, 1972, p. 7.



29 de setembro de 2017

26 de setembro de 2017

"os vermes do tempo"


    «A voz de Januário toldou-se. A recordação cobria-se novamente de realidade. Os vermes do tempo devolviam aos ossos a carne que lhe haviam comido, o corpo refazia-se, aquecia, voltava a ser sensível.»
Ferreira de Castro, A Experiência [1954], 11.ª ed., Lisboa, Cavalo de Ferro, 2014, p. 31.

22 de setembro de 2017

"Fica mais feio o feio que consente o belo"

«--Não se pode esperar de um prisioneiro que sirva de boa vontade na casa do carcereiro; da mesma forma, pai, de quem amputamos os membros, seria absurdo exigir um abraço de afeto; maior despropósito que isso só mesmo a vileza do aleijão que, na falta das mãos, recorre aos pés para aplaudir o seu algoz; age quem sabe com a paciência proverbial do boi: além do peso da canga, pede que lhe apertem o pescoço entre os canzis. Fica mais feio o feio que consente o belo...»


Raduan Nassar, Lavoura Arcaica [1975], Lisboa, Companhia das Letras, 2016, p. 143. 

21 de setembro de 2017

coisas memoriais

fonte
«Ao mesmo tempo, D. João V lançava a primeira pedra daquela vasta mole de granito e mármore que aí está chamada mafra, cousa de triste e pavoroso aspecto, monumento que a si se levantou um braço real, como se a qualidade do braço o ressalvasse, posteridade além, da nota de se ter imergido no tesouro da pátria, tirando e espalhando às rebatinhas mãos-cheias de ouro que deviam cair em estradas, em colónias, em benefícios da navegação, em benefícios da agricultura, em recultivação das terras de D. Dinis, cujos arados D. Manuel e João III converteram em espadas e mandaram ensopar no sangue das nações de além-mar.»

Camilo Castelo Branco, o Judeu [1866], Silveira, E-Primatur, 2016, p. 120.

12 de setembro de 2017

1944, DESFILE DE 60000 PRISIONEIROS DE GUERRA ALEMÃES NAS RUAS DE MOSCOVO - Este o filme referido pela nossa colega Maria José na última sessão


historiadora da alma

fonte
«Não escrevo sobre a guerra, mas sobre o ser humano na guerra. Não escrevo a história da guerra, mas a história dos sentimentos. Sou historiadora da alma. Por um lado, estudo um homem concreto que vive num tempo concreto, tendo participado em acontecimentos concretos, por outro, preciso de descobrir um homem eterno. A trepidação da eternidade. O que sempre existe no homem.»

Svtelana Alexievich, A Guerra não Tem Rosto de Mulher, trad. Galina Mitrakhovich, Lisboa, Elsinore, 2016, pp. 21-22.

7 de setembro de 2017

o início de A MORTE DO PALHAÇO E O MISTÉRIO DA ÁRVORE

«[K. Maurício] // A cada passo se formam por aí grupos literários.»

Raul Brandão, A Morte do palhaço e o Mistério da Árvore [1926], Lisboa, Editorial Verbo, 1972, p. 7



5 de setembro de 2017

A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER - Notas de leitura

- querer devorar o livro, mas, ao contrário de outros que ficam no palato como um vinho bom quando o estilo é superior, ou se debicam continuamente como um petisco num fim de tarde de praia, sem querer nem saber como parar a leitura, querer e não querer que esta acabe, tal a pressão psicológica a que somos sujeitos;

- testemunho indirecto da saga da mulher soviética de armas (e outros artefactos) na mão, enfrentando o invasor germânico, uma miríade de histórias pessoais e contraditórias, tendo por comum pano de fundo a bestialidade da guerra e sofrimento generalizado. Por vezes, uma centelha de humanidade, o milagre da humanidade no meio do inferno que os homens engendram;

- A Guerra não Tem Rosto de Mulher (1985), de Svetlana Alexievich pertence àquela categoria de obras que nos retratam cruamente, como realmente podemos ser em situações-limite. No testemunho pode emparceirar com Se Isto É um Homem (1947), de Primo Levi, ou O Arquipélago Gulag (1973), de Alexander Soljenitsin; em ficção, podemos verificar uma clima opressivo correspondente em narrativas de inspiração autobiográfica, como A Oeste Nada de Novo (1929), de Erich Maria Remarque, ou A Selva (1930), de Ferreira de Castro, ou ainda a desesperança sórdida da Viagem ao Fim da Noite (1932), de Céline;

- forma superior de jornalismo, é já literatura, uma literatura para a História.

31 de agosto de 2017

UMA PÁGINA...

"Correu o rumor de que os alemães tinham trazido à vila os nossos prisioneiros e quem reconhecesse os seus poderia levá-los. As nossas mulheres levantaram-se, correram para lá! À noite, umas trouxeram os seus, e outras trouxeram estranhos, contaram coisas inacreditáveis: as pessoas apodreciam vivas, morriam de fome, comeram todas as folhas das árvores... Comiam erva... Cavavam raízes... No dia seguinte, corri para lá também, não encontrei nenhum familiar, pensei que podia salvar o filho de alguém. Reparei num moreninho. Chamava-se Schakó, como agora o meu netinho. Tinha uns dezoito anos... Dei a um alemão toucinho e ovos, jurei: «É o meu irmão.» Fiz sinais da cruz. Chegámos a casa, ele não era capaz de comer um ovo, tão fraco estava. Não passou um mês sequer de estar connosco, apareceu um canalha. Vivia como outros, era casado, com dois filhos... Foi ao comando alemão e denunciou-nos, que tínhamos trazido gente estranha. No dia seguinte, os alemães vieram de moto. Suplicámos, caímos de joelhos, mas eles enganaram-nos, disseram que iam levá-los para mais perto das suas casas. Dei ao Schakó o fato do meu avô... Pensava que ele iria viver...
Levaram-nos para fora da aldeia... E abateram-nos a tiros de pistola metralhadora... Todos. Todinhos... Eram jovens, bonitos!"

A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER, pg. 324-325

(A escritora (ou a testemunha) chamou canalha ao delator. É pouco. Ando aqui à procura de palavra mais adequada... Talvez não haja. Os inventores da língua talvez não tivessem conhecido malvadez tamanha...)  

30 de agosto de 2017

uma epígrafe de Óssip Mandelstam,

a abrir os «Excertos do diário» de A Guerra não Tem Nome de Mulher (1985), de Svetlana Alexievich:

                                                        Milhões de mortos ao desbarato
                                                        Trilharam o seu caminho nas trevas...

fonte

2 de junho de 2017

atribulações de um autor

«Mais do que um livro sobre a inveja, este livro é sobre alguém tentando escrever um livro sobre a inveja.»


Zuenir Ventura, Inveja - Mal Secreto [1998], Lisboa, Planeta, 2009, p. 15.

31 de maio de 2017

V ENCONTROS FERREIRA DE CASTRO - OSSELA E BARALHAS, 26 E 27 DE MAIO

«De regresso à estrada, vê-se, logo adiante das Baralhas, um panorama surpreendente. É o vale de Cambra. Quase ignorado até há pouco, a sua beleza ganha, dia a dia, maior renome. (...) O espectáculo imponente pode-se contemplar da estr., onde existe um miradoiro próprio.» -- GUIA DE PORTUGAL, 3º volume, Beira e  Beira Litoral; Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, pp. 609 e 610, texto de Ferreira de Castro. -- Sábado, 27 de Maio, os participantes no miradoiro das Baralhas.
 
 

8 de maio de 2017

Sobre a Inveja de Zuenir Ventura

Desta feita, a leitura do mês é já uma antiga conhecida… há 10 anos. (Parece-me numa outra vida.) Na altura, estava empenhada em ler toda a coleção Planos Pecados da editora brasileira Objetiva… hoje continuo com a mesma contabilidade de leitura. 
No entanto, este foi um daqueles livros que contribuiu para uma transformação pessoal, talvez quase imperceptível, pelo menos para os outros. Ao acompanhar as pesquisas e reflexões apresentadas pelos autor, fui percebendo como a mesma agia e, como tal, percebi como minava alguma das minhas re(l)ações, o que me deu uma base para agir e introduzir algumas (pequenas) alterações no modo como lido/lidava com certas pessoas e situações. Sintetizei algumas dessas aprendizagens desta forma:
  • A inveja é o mais inconfessável dos pecados e realça as características mais vis das pessoas. Enquanto todos os outros pecados são contra uma virtude, ela é contra toda virtude.
  • A inveja necessita sempre de pelo menos dois indivíduos com uma relação de desigualdade e o invejoso é sempre aquele que se sente prejudicado. Ela é socialmente útil, pois controla a vaidade e o orgulho; além disso, estimula a inovação, impedindo a acomodação, reduzindo o desequilibro entre os indivíduos. Só se inveja quando se está triste e a quem está perto. A sua base é a busca do poder: a mais-valia; mas o que mais desperta é a impotência: ficar passivo, olhando, se corroendo por dentro. Muitas das vezes é a projecção nos outros da malícia que na verdade está dentro de nós.
  • A inveja é mais azeda entre as mulheres por causa de uma vivência de privação. Elas têm de lutar mais, ter mais talento, mais competência. A maioria das coisas invejadas pertence à esfera do narcisismo: beleza, juventude, honra, glória, fama, poder, coisas tangíveis mas que se podem perder facilmente.
  • A inveja é a exploração de nosso campo magnético por outra pessoa e está sempre associada ao olhar, ao mau-olhado. E a inocência não serve para proteger. Mascara-se muitas vezes sob a forma de elogio, que é sempre recebido com reservas, porque se teme que ele funcione como mau agouro. Ninguém elogia com boas intenções.
  • A inveja tem sempre uma energia negativa e não há diferenciação entre boa e má inveja: destrói e corrói sempre.
Espero que apreciem esta leitura. Eu vou fazer o exercício de ler o livro 10 anos depois.

J

Altarriba & Kim, A Arte de Voar: «3.º andar 1910-1931 - O carro de madeira»


vinheta p. 37, com um eco de Hergé