27 de abril de 2013

uma epígrafe de Carlos Ceia

Bem se esforçou o Autor real deste livro encontrar uma epígrafe apropriada para a abertura, mas não encontrou nada no mercado de citações que servisse a boa interpretação do romance e as suas personagens também não ajudaram nada.

Carlos Ceia, O Professor Sentado, Lisnoa, Edições Duarte Reis, 2004, p. 7.

19 de abril de 2013

um poema de Filipa Leal

Apontas para o rosto sarcástico do sol de Inverno
E disparas. Há tantos meses que não chove – reparaste?
É o próprio céu a desistir de ti. E mesmo assim tu disparas, só sabes disparar.
Estás enganada, Europa. Envelheceste mal e perdeste a humildade.
Não é contra o sarcasmo que disparas, não é contra o Inverno,
Nem sequer contra o insólito, contra o desespero.
Tu disparas contra a luz.
Podes atirar-nos tudo à cara, Europa: bombas, palavras, relatórios de contas.
Podes até atirar-nos à cara um deputado, uma cimeira.
Mas os teus filhos não querem gravatas. Os teus filhos querem paz.
Os teus filhos não querem que lhes dês a sopa. Os teus filhos querem trabalhar.
Há tantos meses que não chove – reparaste?
A terra está seca. Nem abraçados à terra conseguimos dormir.
Enquanto te escrevo, tu continuas a fazer contas, Europa.
Quem deve. Quem empresta. Quem paga.
Mas os teus filhos têm fome, têm sono. Os teus filhos têm medo do escuro.
Os teus filhos precisam que lhes cantes uma canção, que os vás adormecer.
Eu acreditei em ti e tu roubaste-me o futuro e o dos meus irmãos.
Se estamos calados, Europa, é apenas porque, contrários ao teu gesto,
Nós não queremos disparar.

(lido na sessão de 5 de Abril de 2013)

6 de abril de 2013

Os Fragmentos -- Um Romance e Algumas Evocações

Livro híbrido, como indica o subtítulo, completando a designação principal da obra: fragmento, o que ficou estilhaçado, o que não se completou. Trata-se de um melancólico acerto de contas de Ferreira de Castro com uma parte do trabalho literário (e também jornalístico) que a Censura suprimiu.
Morto em 29 de Junho de 1974, o percurso do autor de A Selva foi marcado por essa circunstância, de Emigrantes (1928) a O Instinto Supremo (1968) -- e mesmo estes fragmentos tiveram de aguardar pela revolução do 25 de Abril para que pudessem ver a luz do dia.
Foi importante termos lido no ano passado os textos dos Ecos da Semana, crónicas publicadas  no suplemento de A Batalha, entre 1924 e 1926, para verificarmos que, descontado o arrebatamento quase juvenil desses escritos anarquistas, Ferreira de Castro, se manteve visceralmente libertário.
Presumo que ele soubesse que este livro não acrescentaria nada à relevância da sua obra literária e do lugar que ela ocupa na ficção narrativa portuguesa novecentista; mas fora-lhe um imperativo a subtracção desses textos ao esquecimento:
     O Intervalo, o tal romance com pano de fundo na Revolta da Andaluzia (1931), que fazia parte dum painel mais vasto, intitulado «Biografia do Século XX», nunca concretizado, com pretexto para a contextualização epocal em «Origem de "O Intervalo"»;
     «O Natal em Ossela», inofensivo (ou nem por isso...) conto alusivo à quadra, que não escapou ao lápis azul, motivando uma importante reflexão a propósito do sentido de pertença a essa «Aldeia Nativa», para além dos artifícios nacionalistas;
     o sensacional «Historial da Velha Mina», evocação duma reportagem nunca publicada junto dos homens das Minas de São Domingos, exploradas por capital britânico; e sensacional, acima de tudo, pela extrema contensão do tom castriano, característica da generalidade da sua escrita madura.
Os Fragmentos são, pois, a um tempo, testemunho, (re)afirmação de um ideário e de uma concepção da literatura impregnada de sentido no tempo que lhe coube.

2 de abril de 2013

BIOGRAFIA DO SÉCULO XX

“Os socialistas, que haviam lançado a greve de Badajoz, tornaram-se pele de bombo constantemente surrada. Não escaparam sequer os que tinham assento nas Cortes, nem mesmo a mais bela de todas as deputadas, porque tempos antes palmilhara as pobres terras estremenhas, a pregar essas modestas reformas que constituíam o breviário do seu partido. Ansiosas de a castigarem, damas aristocráticas e da alta burguesia, formando copioso grupo, dirigiram-se ao Parlamento. E ao seu presidente solicitaram que a formosa palradora fosse despida das imunidades que usufruía e levada imediatamente à fronteira, pois embora nada e criada em Espanha, trazia glóbulos rubros germânicos no sangue provadamente venenoso.”
(FERREIRA DE CASTRO, O Intervalo, cap. VI.)
Margarita Nelken  (Madrid, 1896 - México, 1968), feminista e deputada socialista das Cortes Constituintes republicanas a quem Ferreira de Castro, provavelmente, se refere.

1 de abril de 2013

O SONHO SEM DESTINO, Natércia Freire

Se os caminhos são breves
e os dias tão compridos,
e as tuas mãos mais leves
que a espuma dos vestidos;

se é de ti que me ondeia
uma brisa subtil...
E a vaga diz: -- Sereia!
E o sonho diz: -- Abril!

Se cresces e dominas
os campos que acalento,
e inundas as colinas
de fontes que eu invento;

se tens na luz dos olhos
o misterioso apelo
das cidades de fogo,
das cidades de gelo;

se podes bem guardar
na tua mão fechada
o meu altivo Tudo
e o meu imenso Nada;

se cabe nos meus braços
a bruma que tu és,
e em algas e sargaços
te abraço nas marés;

se, puro, na presença
da nossa grande Casa,
pões na voz de horizonte
um lume de asa e brasa.

Não sei porque te sonho
na sombra matinal,
e ao meu lado te vejo,
real e irreal.

Sabeis -- adaga fria,
que ao meu peito cintilas --
onde se oculta o dia
das aragens tranquilas?

Se tudo sabes, mata
com dedos de oiro fino,
ou com gume de prata,
o sonho sem destino!

in Ana Hatherly, Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa, Lisboa, Direcção-Geral do Ensino Primário, 1960, pp. 73-74.
(lido na sessão de 1 de Março)