22 de outubro de 2013

1 parágrafo de Carlos Daniel

De todas as vidas se pode escrever um livro, é verdade, mais que não seja para narrar ao pormenor a sua infindável rotina quotidiana. Mas nem de todas se pode fazer uma nota marcante, breve e verdadeira. Quem tiver dúvidas que retire dos escaparates meia dúzia de calhamaços, com mais de quatrocentas páginas, e pratique esse exercício na parte de dentro de uma carteira de fósforos, relendo depois o que lá conseguiu meter. Se encontrou matéria suficiente para precisar da tal folha de papel de máquina, essa vida já valeu a pena.

A Morte do Rei de Espanha, Lisboa, Chiado Editora, 2012, p. 203.

5 de outubro de 2013

e assim termina OS MILAGRES DO ANTICRISTO

«Ninguém pode livrar as pessoas dos seus males, mas muito se deverá perdoar àquele que fizer nascer nelas nova coragem para carregá-los.»
O Anticristo, neste extraordinário romance de Selma Lagerlöf, materializou.se numa pequena imagem, alegadamente do Salvador, ostentando a inscrição: "O meu reino é deste mundo." Publicado em 1897, quando as forças socialistas estão pujantes e parecem imparáveis, o anticristo, necessário e fundamental ante a miséria que as sociedades modernas exorbitavam, é o socialismo. Conciliar "a Terra com o Céu" (p. 348), porque nem todos se bastam com a matéria, parece-me ser o sentido (ou um dos sentidos) desta narrativa da escritor sueca -- não distante, aliás, do que preconizava o seu contemporâneo e confrade russo, Tólstoi.

Luca Signorelli, Os Milagres do Anticristo
(Catedral de Orvieto)

3 de outubro de 2013

outro soneto de Camões

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!

in José Régio, Poesia de Ontem e de Hoje para o Nosso Povo Ler, Lisboa, Campanha Nacional de Educação de Adultos, 1956, pp. 16-17.

(lido na sessão de 7 de Setembro)