16 de janeiro de 2017

o final de MENDEL DOS LIVROS

«Pois ela, aquela mulher sem estudos ao menos guardara um livro para se recordar melhor dele, mas eu, eu tinha-me esquecido durante anos de Mendel dos livros, precisamente eu que tinha a obrigação de saber que os livros só se criam com o fim de unir as pessoas para além da sua própria existência e, assim, de se defender do inexorável oponente de tudo o que vive: fugacidade e o esquecimento.»

Stefan Zweig, Mendel dos Livros, tradução de Álvaro Gonçalves, Porto, Assírio & Alvim, 2014, p. 87.

10 de janeiro de 2017

TERRA MÃE, de Fernando Faria

Sou da infância como se é de um país -- escreveu o grande Saint-Exupéry, que cito de memória. Um país distante, de que permanecem, nos mais afortunados, as reminiscências da descoberta da vida e do mundo, na presença rediviva dos que nos foram (nos são) queridos.
Este Terra Mãe, que traz o subtítulo Crónicas da Idade Menor, faz-nos participar dessa revelação jubilosa dos primeiros anos, ainda no conforto da segurança (e da disciplina) familiar. É, no conjunto, um relato na primeira pessoa da vida aldeã de lavradores humildes de Maceira, Leiria, saborosíssimos quadros contados com sabedoria,  aprumo  e instinto literários. E refiro-me expressamente a esse aprumo e a esse instinto, pois trata-se de um livro inicial de alguém que, por profissão, lidou durante anos com a linguagem árida dos códigos do Direito. Nada dessa sintaxe obscura nem dessa semântica labiríntica perpassa por aqui; antes um fio de água pura, uma singeleza que não é simplória ou desprovida de humor. Das pequenas transgressões aos medos infantis, umas e outros tomando proporções gigantescas ao palmo-e-meio que o narrador nos deu a conhecer em pouco mais de centena e meia de páginas; o fascínio diante dos oficiais de vários ofícios, de práticas ancestrais (a aldeia portuguesa da década de 1950 permanece, em muitas situações, num contexto de Antigo Regime [não confundir, por favor, com alusões ao Estado Novo!...]); as evocações impressivas da marginalidade, assumida ou forçada, dos pedintes, dos bêbados, dos deficientes mentais; o gozo das prendas da Natureza, a estesia dum nascer do Sol, o impacte do primeiro avistamento do mar, o universo bem delimitado da floresta, com os seus segredos e zonas de sombra; o convívio com pais, avós e demais família que connosco é partilhado. 
Dum ponto de vista mais utilitário, registe-se ainda a fonte que um livro como este é para quem, historiador ou antropólogo, se debruce sobre a vida rural duma aldeia da Estremadura em meados do século XX, facilitado pelo extremo rigor com que são mencionados artefactos, práticas culturais e espécimes animais e vegetais, na sua relação com o homem e no uso que deles se faz, ou fazia.
Crónicas de outro mundo, outro tempo, outro país, escritas por quem, sendo deste mundo, tempo e país logrará, disso estou certo, projectá-los no futuro, já que um livro como este tem um destino marcado, invejável destino: ser periodicamente revisitado ao longo dos tempos, como repositório de património imaterial da comunidade de que se originou.
(também aqui)

6 de janeiro de 2017

ÚLTIMAS PÁGINAS, de Eça de Queirós

Nas «Lendas de Santos» de Eça de Queirós (Últimas Páginas, 1912, edição póstuma organizada por Luís de Magalhães), biografias ficcionadas de santos. «São Cristóvão», aliás o único que o escritor concluiu, é um dos textos queirosianos que prefiro. Numa imprecisa Idade Média francesa, Cristóvão é um ser disforme (um gigante) e simples, cheio de amor para dar; amor forjado no conhecimento da incrível história do Menino-Deus, que por amor virá a morrer na cruz ("Cristóvão", o que tem Cristo em si...). De tal forma Cristóvão é possuído por esse amor ao semelhante, que nunca é abalado pelas inúmeras rasteiras e traições que lhe são infligidas pelos seus irmãos em humanidade; o mesmo amor e coração puro que, não suportando a miséria o leva a chefiar  jacqueries... Eça mantinha bem viva a leitura do seu Proudhon. Da narrativa desprende-se  um ambiente benfazejo e etéreo, no meio de guerra e de opressão do forte em relação ao fraco (a mesma atmosfera que se evola do magnífico «O Suave Milagre», trazendo-me à memória, por essa mesma atmosfera miraculosa do indizível «O Gigante Egoísta», do Oscar Wilde). 
Em Eça sempre adorei a sua paixão pela História e a forma simultaneamente séria e lúdica com que lhe pegava. «Santo Onofre» é um dos padres do deserto, indivíduos que fugiam do mundo para encontrar Deus através da oração e da renúncia, sujeitando-se a todas as solicitações do Demónio, que mais não eram do que alucinações provocadas pela carência física e psicológica de tudo... Talvez o menos conseguido.
«S. Frei Gil», cujo plano da obra chegou até nós, poderia ser uma das grandes narrativas queirosianas, provavelmente abandonada (e isto é um palpite; precisaria de verificar cronologias) pelo felizmente concluído A Cidade e as Serras. Várias vezes me veio à memória a dispersão e a inconsistência do Jacinto de A Cidade e as Serras, ou mesmo de Gonçalo Mendes Ramires. Em todo o caso, ficamos com pena do corte abrupto da narrativa quando o volúvel Gil a caminho de Paris, na companhia do escudeiro Pêro, para estudar Medicina, é desviado do intento por um misterioso cavaleiro...
O segundo bloco desta Últimas Páginas, consiste num conjunto de «Artigos Diversos», textos todos de primeira água, em que avulta o também incompleto «O "Francesismo"», um magnífico ensaio de irónica autobiografia cultural.
Eça é sempre Eça. Imortal.
(também aqui)