31 de janeiro de 2024

JOSÉ RÉGIO: 11 OBRAS, 22 POEMAS - IX

 

NOSSA SENHORA

 

Tenho ao cimo da escada, de maneira

Que logo, entrando, os olhos me dão nela,

Uma Nossa Senhora de madeira

Arrancada a um Calvário de capela.

 

Põe as mãos com fervor e angústia. O manto

Cobre-lhe a testa, os ombros, cai composto;

E uma expressão de febre e espanto

Quase lhe afeia o fino rosto.

 

Mãe das Dores, seus olhos enevoados

Olham, chorosos, fixos, muito além…

E eu, ao passar, detenho os passos apressados,

Peço-lhe: – «A sua bênção, Mãe!»

 

Sim, fazemo-nos boa companhia,

E não me assusta a sua dor: quase me apraz.

O Filho dessa Mãe nunca mais morre. Aleluia!

Só isto bastaria a me dar paz.

 

– «Porque choras, Mulher?» – docemente a repreendo.

Mas à minh´alma, então, chega de longe a sua voz

Que eu bem entendo:

– «Não é por Ele…»

                                   – «Eu sei! teus filhos somos nós.»

 

--- Mas Deus É Grande, 1945



25 poemas passados para português - #12.


Todos sabem que eu nunca murmurei uma oração

Todos sabem que nunca tentei dissimular os meus defeitos.

Ignoro se existe uma Justiça e uma Misericórdia...

Entretanto, tenho confiança, porque sempre fui sincero.


Omar Khayyam (Nisahpur, Irão, c. 1048-c. 1131)

Rubaiyat - Odes ao Vinho

versão de Fernando Castro

30 de janeiro de 2024

Pelo Tejo vai-se para o mundo (02)

 UMA ESPÉCIE DE PERDA

Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma
cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados,
gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos.
E estendemos sempre a mão.

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por
Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma
cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis, 
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada.

(-o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.

Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor
mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.


Ingeborg Bachmann em O Tempo Aprazado: poemas (1953-1967)
Tradução de João Barrento e Judite Berkemeier
Assírio & Alvim, 1992

29 de janeiro de 2024

15 formulações poéticas - #9 - Harold Bloom

«Não se pode ensinar alguém a amar a grande poesia quando esse alguém chega até nós sem esse amor. Como é que se pode ensinar a solidão?»

26 de janeiro de 2024

101 poemas portugueses - #19.


SONETO


Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado,
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz do esquecimento.
Pára surpreso, escutando, atento,
Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado:
Pára e fica e demora-se um momento.
Pára e fica; na doida correria
Pára à beira do abismo e se demora:
E mergulha na noite escura e fria
Um olhar d'aço que essa noite explora;
Mas a espora da dor seu flanco estria
E ele galga e prossegue sob a espora.

Ângelo de Lima (Porto, 1872 - Lisboa, 1921),
in Cabral do nascimento, Líricas Portuguesas - 2.ª Série (1946)

24 de janeiro de 2024

25 poemas passados para português - #11.


ADOLESCÊNCIA


Na varanda, um instante

ficámos os dois sós.

Desde aquela manhã

tão doce, éramos noivos.

 

-- Sonolenta, a paisagem

dormia em vagos tons

sob o céu gris e rosa

do poente de outono --.

 

Disse que ia beijá-la;

baixou, serena, os olhos

e ofereceu-me as faces

como perdendo um tesouro.

 

-- Caíam folhas mortas

no jardim silencioso,

e no ar errava ainda

um olor de girassóis --.

 

Não se atrevia a olhar-me;

disse eu que éramos noivos,

... e as lágrimas rolaram-lhe

dos olhos melancólicos.


Juan Ramón Jimenez  (Moguer, Huelva, 1881 - San Juan, Porto Rico, 1956),

Rimas (1902)

versão de José Bento (Pardilhó, Estarreja, 1932 - Venteira, Amadora, 2019)

original aqui

23 de janeiro de 2024

JOSÉ RÉGIO: 11 OBRAS, 22 POEMAS - VIII

 

FADO ALENTEJANO

 

Alentejo, ai solidão,

Solidão, ai Alentejo,

Pátria que à força escolhi!

Quando cheguei, quis-te mal,

Alentejo-ai-solidão…

Julguei eu que te quis mal.

Chegava do vendaval,

Tão cego que te nem vi!

 

Alentejo, ai solidão,

Solidão, ai Alentejo,

Adro da melancolia!

Tua tristeza me pesa!

Alentejo-ai-solidão…

Quanto, às vezes, me não pesa!

Mas fora de essa tristeza,

Pesa-me toda a alegria.

 

(…)

 

Alentejo, ai solidão,

Solidão, ai Alentejo,

Convento do céu aberto!

Nos teus claustros me fiz monge,

Alentejo-ai-solidão…

Em ti por ti me fez monge.

Perdeu-se-me a terra ao longe,

Chegou-se-me o céu mais perto.

 

Alentejo, ai solidão,

Solidão, ai Alentejo,

Padre-nosso de infelizes!

Vim coberto de cadeias,

Alentejo-ai-solidão…

Coberto de vis cadeias!

Mas estas com que me enleias,

Deram-me asas e raízes.

 

--- Fado, 1941 (poema incluído na obra a partir da 3ª edição, de 1969)



19 de janeiro de 2024

101 poemas portugueses - #18.


INCÊNDIO


Daqui, desta falésia cor de lava,
Dum amarelo rútilo e sangrento,
Outrora debruçava-se um convento
Sobre a maré tumultuosa e brava...

E, à noite, quando no clamor do vento,
Ao largo, o temporal se anunciava,
E a voz das águas, soluçante e cava,
Punha um trovão nas furnas, agoirento,

Logo, piedosamente, cada monge
Suspendia uma lâmpada à janela,
E tangia a sineta para o coro...

E, no mar alto, o navegante, ao longe,
Via um farol luzir em cada cela,
E cada rocha a arder, em sangue e ouro...


Cândido Guerreiro (Alte, Loulé, 1871 - Lisboa, 1953),
Promontório Sacro (1929) 

18 de janeiro de 2024

25 poemas passados para português - #10


Entre o meu País -- e os Outros --

Há um Mar --

Mas Flores -- negoceiam entre nós --

Como embaixadas


Emily Dickinson (Hamherst, Massachusetts (1830-1866)

versão de Jorge de Sena, 80 Poemas de Emily Dickinson (1978)

(original aqui)

17 de janeiro de 2024

POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL. XXII

 

SONETO JÁ ANTIGO


Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás-de

Dizer aos meus amigos aí de Londres,

Embora não o sintas, que tu escondes

A grande dor da minha morte. Irás de


Londres p'ra York, onde nasceste (dizes...

Que eu nada que tu digas acredito),

Contar àquele pobre rapazito

Que me deu tantas horas tão felizes,


Embora não o saibas, que morri...

Mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,

Nada se importará... Depois vai dar


A notícia a essa estranha Cecily

Que acreditava que eu seria grande...

Raios partam a vida e quem lá ande!...


ÁLVARO DE CAMPOS

15 de janeiro de 2024

BEIRAS

 

Se Alentejo(s)… teve o condão de atrair-me à leitura, deduzam o volume do apelo que este BEIRAS – imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção instalou na cabeça deste leitor, nascido ao lado dos fundões do Zêzere! E então, quando descobri que a fotografia que preenche a capa é do pequeno paraíso do Covão da Ametade, na minha Estrela…
A nossa confreira, Ana Cristina Carvalho, desta vez, em parceria com Cristina Costa Vieira, resolveu brindar-nos com mais uma obra de cultura e interesse, coligindo trabalhos e referências aos autores portugueses que encontraram, na geografia natural e humana deste coração do país, inspiração para as suas obras literárias.
Sempre que aprendo, delicio-me, e aconteceu mais uma vez: servi-me de poesia, filosofia, análise investigativa, literatura, erudição, visões originais, trabalho que se evidencia, riqueza de termos locais (anotei alguns da minha terrinha, que o nevão da idade tinha tapado), descoberta de autores que não sabia ligados às Beiras…
O preço que pago é, de vez em quando, amentar o termo que define quem não sabe… e «ignorante» não soa nada bem; mas tem cura.
Grato, Ana Cristina, por mais esta oportunidade.
Nem tudo são planuras de leitura, mas as Beiras também são assim.
Se não leu, recomendo.

15 formulações poéticas - #7. Alberto de Lacerda

 «Palavras / Quase todas a mais»

JOSÉ RÉGIO: 11 OBRAS, 22 POEMAS - VII

 

ROMANCE DE VILA DO CONDE

 

Vila do Conde, espraiada

Entre pinhais, rio e mar…

– Lembra-me Vila do Conde,

Já me ponho a suspirar.

 

Vento norte, ai vento norte,

Ventinho da beira-mar,

Vento de Vila do Conde,

Que é minha terra natal!,

Nenhum remédio me vale

Se me não vens cá buscar,

Vento norte, ai vento norte,

Que em sonhos sinto assoprar…

 

Bom cheirinho dos pinheiros,

A que não sei outro igual,

Do pinheiral de Mindelo,

Que é um belo pinheiral

Que em Azurara começa

E ao Porto vai acabar…,

Se me não vens cá buscar,

Nenhum remédio me vale!

Nenhum remédio me vale,

Se te não posso cheirar…

 

Vila do Conde, espraiada

Entre pinhais, rio e mar!

– Lembra-me Vila do Conde,

Mais nada posso lembrar.

 

(...)

 

--- Fado, 1941


13 de janeiro de 2024

101 poemas portugueses - #17


A ESCADA DA VIDA

Encontrou-se a Caridade
Com o Orgulho, certo dia:
Subia o Orgulho uma escada,
E a Caridade descia.

Ela humilde, ele arrogante,
No patamar dessa escada
Os dois, cruzando-se, viram
Uma rosinha pisada.

Emproado, o Orgulho, vendo-a,
Deu-lhe nova pisadela;
De joelhos, a Caridade
Deitou-se aos beijos a ela.

Mas nobres passos se ouviram
De som divino e tremendo:
O Orgulho seguiu subindo,
E a Caridade descendo...

E a voz de Deus, entretanto,
Disse, bramindo e sorrindo,
-- «Tu, que sobes, vais descendo!»
-- «Tu, que desces, vais subindo!»


Eugénio de Castro (Coimbra, 1869-1944)
in José Régio, Poesia de Ontem e de Hoje para o Nosso Povo Ler (1956)

12 de janeiro de 2024

JOSÉ RÉGIO: 11 OBRAS, 22 POEMAS - VI

 

MEU MENINO, INO, INO

 

3

 

– Acabaste?

 

– Meu amor, acabei.

 

– Apagaste a candeia? apagaste?

 

– Meu amor, apaguei.

 

– E fechaste o postigo? e fechaste?

 

– Meu amor…, sim, fechei.

 

– Que rumor é aquele? não sentes?

 

– Meu amor, que te importa?

É a vida a dar socos na porta.

É lá fora. São eles. É o mundo. São gentes…

 

– São gentes? Quem são?

 

– São colegas, amigos, parentes…

 

– Vai dizer-lhes que não! Vai dizer-lhes que não!

 

--- As Encruzilhadas de Deus, 1936


11 de janeiro de 2024

POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL. XXI

 

BILHETE PARA O AMIGO AUSENTE


Lembrar teus carinhos induz

a ter existido um pomar

intangíveis laranjas de luz

laranjas que apetece roubar


Teu luar de ontem na cintura

é ainda o vestido que trago

seda imaterial seda pura

de criança afogada no lago.


Os motores que entre nós aceleram

os vazios comboios do sonho

das mulheres que estão à espera

são o único luto que ponho.


NATÁLIA CORREIA, O Vinho e a Lira

10 de janeiro de 2024

Poesia Portuguesa (03)

 SINGULAR TEMPO PLURAL

Em outubro passado
saí à noite com a cunhada de um amigo
o que me pareceu sexualmente correto.

Tratava-se o espécime de alguém bem alinhavado
o que também me pareceu sexualmente correto.

Levei-a a jantar a um bonito restaurante
trocámos umas ideias
trocámos uns olhares
engraçámos com os pontos em comum
e tudo estava a correr bem.
Falava eu das castas e tradições
do vinho que bebíamos
quando, sentindo-lhe o bouquet
ao dar um gole em grã seigneur
o estafermo do líquido
me entrou para os pulmões, circunstância infeliz
que provocou de imediato
imponente e borrifada engasgadela
mesmo ali à frente da carinha dela
o que francamente me pareceu
sexualmente incorreto.

Mais tarde, quando já tinha
a algum custo recuperado o élan
fui com ela dar uma volta pela linha costeira.
Durante o passeio,
disse-me que estava a gostar muito
de ouvir os Roxette
o que me pareceu sexualmente correto.
Depois abordou a política,
explicou-me que já não era
mas que tinha sido daquele partido
que agora, por sinal, está bastante partido
no mau sentido do termo.

Foi logo a seguir que me falou do mar.
Disse-me que o mar, poucos quilómetros adiante
era lindo!

Eu estava já a afiambrar as ideias
e não tardava muito ia entrar naquela fase
em que nos armamos em carapau.
Mas naqueles poucos quilómetros
que faltavam para o sítio turquesa
onde o mar é lindo
o carro ficou sem bateria.
Ainda esgrimi, atrapalhado
um incómodo diálogo com o démarreur
mas o carro, pois sim, já dali não saiu
o que, convenhamos
foi de todo sexualmente incorreto.

Passou-se uma semana, um mês
sucederam-se os outubros
e, talvez pelo que se passou naquela noite -
mas creio que não -, as nossas vidas
levaram rumos diferentes.

Através do tempo,
quando levo alguém a ver
o sítio onde o mar é lindo
fico com a sensação
de que é sempre um pouco depois.



Daniel Maia-Pinto Rodrigues em A Sorte Favorece Os Rapazes
Retirado da antologia Turquesa
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
1ª edição, Dezembro de 2019
Páginas 181 a 183

25 poemas passados para português - #9.


ON HIS BLINDNESS


Ao cabo dos anos o que me rodeia

é uma obstinada neblina luminosa

que reduz a coisas a uma coisa

sem forma nem cor. Quase uma ideia.

A vasta noite elementar e o dia

cheio de gente são essa neblina

de luz incerta e fiel que não declina

e que se oculta na madrugada. Quereria

ver uma cara uma vez. Ignoro

a inexplorada enciclopédia, o prazer

de livros que é dado à minha mão reconhecer,

as altas aves e as luas de oiro.

Aos outros cabe-lhes o universo;

a mim, penumbra, o hábito do verso.


Jorge Luis Borges (Buenos Aires, 1899 - Genebra, 1896),

Os Conjurados (1985)

versão de Maria da Piedade Ferreira e Salvato Teles de Meneses

(original aqui)

JOSÉ RÉGIO: 11 OBRAS, 22 POEMAS - V

 

COLEGIAL

 

Em cima da minha mesa,

Da minha mesa de estudo,

Mesa da minha tristeza

Em que, de noite e de dia,

Rasgo as folhas, leio tudo

Desses livros em que estudo,

E me estudo,

(Eu já me estudo…)

E me estudo,

A mim,

Também,

Em cima da minha mesa,

Tenho o teu retrato, Mãe!

 

À cabeceira do leito,

Dentro dum lindo caixilho,

Tenho uma Nossa Senhora

Que venero a toda a hora…

Ai minha Nossa Senhora

Que se parece contigo,

E que tem, ao peito,

Um filho

(O que ainda é mais estranho)

Que se parece comigo,

Num retratinho,

Que tenho,

De menino pequenino…!

 

No fundo da minha mala,

Mesmo lá no fundo, a um canto,

Não lhes vá tocar alguém,

(Quem as lesse, o que entendia?

Só riria

Do que nos comove a nós…)

Já tenho três maços, Mãe,

Das cartas que tu me escreves

Desde que saí de casa…

Três maços – e nada leves! –

Atados com um retrós…

 

Se não fora eu ter-te assim,

A toda a hora,

Sempre à beirinha de mim,

(Sei agora

Que isto de a gente ser grande

Não é como se nos pinta…)

Mãe!, já teria morrido,

Ou já teria fugido,

Ou já teria bebido

Algum tinteiro de tinta!

 

--- As Encruzilhadas de Deus, 1936



9 de janeiro de 2024

JOSÉ RÉGIO: 11 OBRAS, 22 POEMAS - IV

 

SONETO DE AMOR

 

Não me peças palavras, nem baladas,

Nem expressões, nem alma… Abre-me o seio,

Deixa cair as pálpebras pesadas,

E entre os seios me apertes sem receio.

 

Na tua boca sob a minha, ao meio,

Nossas línguas se busquem, desvairadas…

E que os meus flancos nus vibrem no enleio

Das tuas pernas ágeis e delgadas.

 

E em duas bocas uma língua…, – unidos,

Nós trocaremos beijos e gemidos,

Sentindo o nosso sangue misturar-se.

 

Depois… – abre-me os teus olhos, minha amada!

Enterra-os bem nos meus; não digas nada…

Deixa a vida exprimir-se sem disfarce.

 

--- Biografia, 1929



8 de janeiro de 2024

INSOLÚVEL FLAUTIM - notas breves

 

Há sempre um esgar quando pego num livro de poesia. Quando abri este, para folhear, a careta foi mais amena, suavizada pela recordação da leitura de Cadernos do Verão que o confrade, Manuel Nunes, tinha escrito antes.
O espreitar levou-me de rajada até à página 40. Para quem repete não gostar de poesia…
Depois de ter chegado ao fim, como leitor comprometido, rumei ao princípio para uma análise crítica, tendo acabado por concluir que a larga maior parte dos poemas me diziam alguma coisa.
E porque é que apreciei? Umas vezes, por coincidência de linha de pensamento; outras, por achar graça, simplesmente; muitas vezes, as mensagens, explícitas e implícitas; ou referências a geografias também visitadas; fazer sorrir, enquanto lia; a ironia suave ou contundente; acicatar memórias.
Mais uma vez julguei que aquilo que faz bulir a imaginação e sentimento do autor é mais uma leitura sintónica, ou visitas culturais, lugares invocativos, mais raramente uma figura humana em si.
Não tenho a cultura poética abrangente da nossa confreira, Paula Silva, que afirmou encontrar-se aqui a melhor poesia contemporânea publicada, mas, se até eu gostei, é porque vale mesmo a pena a leitura.

15 formulações poéticas - #6. Jorge de Sena

 «A melhor poesia tem sempre um tom de conversa intelectual, que é inimigo da brilhante e má retórica.»

JOSÉ RÉGIO: 11 OBRAS, 22 POEMAS - III

 

SONETO DO JOSÉ MATIAS

 

Aquela aparição, aquela espuma

Que finge ter também um corpo…, aquela

Que é por de mais subtil, por de mais bela,

Para existir aquém do sonho e a bruma,

 

Aquela em quem amei nem sei que suma

De nuvem, flor, árvore, névoa, estrela,

Aquela que a mim próprio me revela,

E me é todas as mais sem ser nenhuma,

 

Sim, tem um nome, é quase uma qualquer,

(Tem o nome de Elisa…) e foi mulher

Dum que a deixou, morrendo, ao dono actual.

 

Esses, não eu!, te gozem, corpo triste.

A Beleza que encarnas e traíste

Só desce até cá baixo ao meu portal…

 

--- Biografia, 1929


7 de janeiro de 2024

XXVIII

 


Uma criança descalça

de imensos olhos tristes

vem pela rua molhada

com miúdos passos mudos


pela rua molhada

traz um fumo na manga

e nos braços vazios braçadas

de votos de paz



MÁRIO DIONÍSIO, O riso dissonante (1950)

6 de janeiro de 2024

101 poemas portugueses - #16.


AO LONGE OS BARCOS DE FLORES


Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na solidão tranquila.
-- Perdida voz que entre as mais se exila,
-- Festões de som dissimulando a hora

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém... Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora...

Camilo Pessanha (Coimbra, 1867 - Macau, 1926),
Clepsidra (1920)

5 de janeiro de 2024

os nossos livros

 Por aqui, não se lê apenas, escreve-se de diferentes maneiras. . Por isso, o que já deveria ter sido feito, acontece agora. Publicita-se os nossos livros (se não fromos nós...), agora na coluna da direita. Creio que não falta ninguém...














TEM DIAS XXVII

 


Regras do esquecimento


Não esqueças sobretudo a armadura

da noite,

a aspereza das estrelas

quando os olhos são recentes

e a gravitação é como um poder

sucinto nas mãos.


Não esqueças sobretudo como os cereais

lavram os campos estafados, destilam

prodígio pelos sulcos da memória,

oferecem-te uma vida maior

em troca do sal

das pálpebras.


Não esqueças sobretudo de olhar devagar.



VASCO GATO, Imo (2003)

4 de janeiro de 2024

POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL. XX

 

AS FRÁGEIS HASTES


Não voltarei à fonte dos teus flancos

ao fogo espesso do verão

a escorrer infatigável

dos espelhos, não voltarei.


Não voltarei ao leito breve

onde quebrámos uma a uma

todas as frágeis

hastes do amor.


Eis o outono: cresce a prumo.

Anoitecidas águas

em breve em fúria em fogo

arrastam-me para o fundo.


EUGÉNIO DE ANDRADE

3 de janeiro de 2024

25 poemas passados para português - #8


SALMO 

Ninguém nos moldará de novo em terra e barro,
ninguém animará pela palavra o nosso pó.
Ninguém.

Louvado sejas, Ninguém.
Por amor de ti queremos
florir.
Em direcção a ti.

Um Nada
fomos, somos continuaremos
a ser, florescendo:
a rosa do Nada, a
de Ninguém.

Com
o estilete claro-de-alma,
o estame ermo-de-céu,
a corola vermelha
da purpúrea palavra que cantámos
sobre, oh sobre
o espinho.

Paul Celan (Czernovitz, Roménia, 1920 - Paris, 1970)
versão de Yvette Centeno (Lisboa, 1940) e João Barrento (Alter do Chão, 1940)
Um Ramo de Rosas -- Colhidas por José da Cruz Santos na Poesia Portuguesa e Estrangeira (2010) 


Psalm

Niemand knetet uns wieder aus Erde und Lehm,
niemand bespricht unseren Staub.
Niemand.

Gelobt seist du, Niemand.
Dir zulieb wollen
wir blühn.
Dir
entgegen.

Ein Nichts
waren wir, sind wir, werden
wir bleiben, blühend:
die Nichts-, die
Niemandsrose.

Mit
dem Griffel seelenhell,
dem Staubfaden himmelswüst,
der Krone rot
vom Purpurwort, das wir sangen
über, o über
dem Dorn.

JOSÉ RÉGIO: 11 OBRAS, 22 POEMAS - II

 

A JAULA E AS FERAS

 

Vivem centos de doidos nesse hospício

(Quem no diria, olhando cá de fora…?!)

E o portão dança já no velho quício,

Dança, e faz entrar mais a toda a hora…

 

Trazem todos um sonho, um crime, um vício,

E foram reis lá muito longe, outrora…

E em seus rostos de espanto ou de flagício

Não sei que ausência atroz se comemora!

 

Faz medo e angústia olhá-los bem nos olhos;

E, lá por trás de grades e ferrolhos,

Estoiram de ansiedade desmedida.

 

– Meu corpo, ó meu hospício de alienados!

Abre-te aos meus desejos enjaulados,

Deixa-os despedaçar a minha vida!

 

--- Poemas de Deus e do Diabo, 1925

(Republicado em Biografia, 1929)

 


2 de janeiro de 2024

JOSÉ RÉGIO: 11 OBRAS, 22 POEMAS - I

  

ÍCARO  

                       ao Fernando Lopes Graça          

 

A minha Dor, vesti-a de brocado,

Fi-la cantar um choro em melopeia,

Ergui-lhe um trono de oiro imaculado,

Ajoelhei de mãos postas e adorei-a.

 

Por longo tempo, assim fiquei prostrado,

Moendo os joelhos sobre lodo e areia.

E as multidões desceram do povoado,

Que a minha Dor cantava de sereia…

 

Depois, ruflaram alto asas de agoiro!

Um silêncio gelou em derredor…

E eu levantei a face, a tremer todo:

 

Jesus! ruíra em cinza o trono de oiro!

E, misérrima e nua, a minha Dor

Ajoelhara a meu lado sobre o lodo.

 

--- Poemas de Deus e do Diabo, 1925

(Republicado em Biografia, 1929)


1 de janeiro de 2024

15 formulações poéticas - #5. Manuel Antunes

 «[...] nada mais ambíguo, nada mais fugidio, nada mais delicado, nada mais subjectivo, nada mais rebelde à análise que uma mundividência poética.»

TEM DIAS XXVI

Azulejo Holandês, sec.XVII
                    Casa-Museu Frederico Freitas
                    Funchal 



Os Dias Galgos


O tempo era um galgo


animal da pura velocidade

no manto esverdeado 

da manhã


esperando 

com as suas patas firmes.


O tempo é um galgo

de costas voltadas

para o crepúsculo,

perscrutando a infância

do nome.


O tempo é um galgo

na companhia do branco

gémeo

horizonte da luz

e do medo

que nos galga em segredo.


O tempo é um galgo

animal da pura velocidade

no horizonte da luz

esperando


 com as suas patas

firmes.



JORGE AUGUSTO MAXIMINO, in Praça Nova 2, revista literária da Guarda, (2019).