30 de junho de 2014

um parágrafo de Ferreira de Castro

«Estes velhos e velhas, em cujo rosto a charrua do tempo lavrou profundos sulcos, estas crianças maltrapilhas, criadas ao deus-dará, entre a lama dos pobres burgos e os animais domésticos, esta gente simples e despecuniada, que me faz sentir o frio que ela sente nas noites invernais e me recorda os seus desolados casebres quando percorro algumas ruas de Lisboa, onde se exibem sumptuosas moradias, demonstra-nos que se a felicidade não se obteve com as conquistas da civilização, também não existia, senão em casos singulares, antes de o homem ter colocado o seu génio ao serviço da sua ansiedade.»

Excerto do «Pórtico» de Terra Fria [1934], 12.ª edição, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1980
(lido na sessão de 27.VI.2014)

27 de junho de 2014

um parágrafo de Sophia de Mello Breyner Andresen


«É uma cidade antiga onde estagnada se desagrega e se dissolve lentamente uma vida desvivida gesto por gesto, sílaba por sílaba.»

«Vila d'Arcos», Histórias da Terra e do Mar, Lisboa, Edições Salamandra, 1984, pp. 115-117.
(lido na sessão de 25.VI.2014)

24 de junho de 2014

1 parágrafo de Manuel Alegre

«De certo modo não havia lugar para o pai nem para mim. Havia lugar para a nossa presença na ordem incessante dos ritos, a horas certas. Não para as cavalgadas solitárias que cada um tinha necessidade de fazer sem ser interrompido pela tarefa do dia. Mesmo que fosse o dia de receber visitas, com chá e bolos. Não tínhamos direito à nossa desordem interior, éramos prisioneiros de um espaço contantemente invadido por obrigações cujo sentido não podíamos entender. Não era por mal, era assim.»
«A grande subversão», O Homem do País Azul (1989), 7.ª edição, Lisboa, Dom Quixote, 2009, pp. 51-56.
(lido na sessão de 18 de Junho de 2014)

Ambrose Bierce, 172

Ambrose Bierce nasceu no Meigs County, Ohio, em 24 de Junho de 1842.

23 de junho de 2014

2 parágrafos de Bruce Chatwin

«O que faço eu aqui? Deitado num hospital dos Serviços Nacionais de Saúde, espero, rezando para que as dores e a febre que há três meses me atormentam sejam realmente sintomas de malária -- apesar das numerosas análises que me fizeram, nenhum para sita foi detectado. Há treze horas que tomo comprimidos de quinino, mas a temperatura parece não baixar. Toco nas orelhas. Estão frias. Meto a mão entre as pernas. Vá lá... Basta um pouco de excitação para que a febre aumente.
Entra, então, uma das pessoas que aqui trabalha de quem eu mais gosto: Assunta, a mulher a dia e encarregada de servir o chá.» 
Excerto de «Assunta -- Uma história», O que Faço Eu Aqui?, tradução de José Luís Luna, Quetzal Editores, Lisboa, 1993.
(lido na sessão de 18.VI.2014)

20 de junho de 2014

LIDO NA SESSÃO DE 18 DE JUNHO DE 2014



"O ofício de cão é um mau ofício, um ofício sem meio-termo: pelos vistos entre os cães não há classe média, mas sim áurea aristocracia e sebenta e faminta vulgaridade. Uns cães vivem como duques e comem peitinhos de frango e bebem leite, e outros, pelo contrário, farejam nos matadouros, levam pauladas e, quando chega o carnaval, até voam pelos ares com o espinhaço partido em dois. Os cães, pelo entrudo, são pintados às riscas para maior e mais cauteloso escárnio do próprio e regozijo dos outros, e assim, quando vão pelos ares, as pessoas dizem: «Parecem borboletas!», e divertem-se honestamente e sem fazer mal a ninguém [...]
A Blas Tronchón, Harinita, quando o jogo acabou, puseram-no no meio da manta e começaram a atirá-lo ao ar e a divertir-se com ele, como fazem aos cães no entrudo. A cena foi de muita graça e crueldade, e o público, enquanto moíam os ossos a Blas Tronchón, Harinita, com uma circunspecção muito recatada.
- Que não tivesse falhado o penalty, não é verdade?
- Pois claro, é como eu costumo dizer: que não tivesse falhado o penalty. Assim vai aprender a afinar a pontaria!
Blas Tronchón, Harinita, tinha um chuto potente e impiedoso que era o orgulho dos seguidores da equipa do clube e o terror dos guarda-redes inimigos. Blas Tronchón, Harinita, era muto habilidoso e tanto chutava com um pé como com o outro; a cabeça, por fora, também a usava bem e oportunamente. Blas Tronchón, Harinita, era o verdugo dos penalties, o feroz e frio executor da pena de morte do futebol. Às vezes, no entanto, falhava, e então os companheiros, ao terminar o jogo, manteavam-no como fazem aos cães no entrudo, para lhes servir de escarmento.
- Mas o que é que estão a fazer com esse desgraçado?
- Nada, minha senhora; estão a manteá-lo para que aprenda a ter pontaria. [...]

(do conto COMO UM CÃO NO ENTRUDO)

Ramalho Ortigão e os prazeres da caça

   
 [Querida...]

     [...] Enquanto se esperava pelo almoço eu saí com um cão, uma espingarda e seis cargas e fui dar uma volta à lagoa*. Matei cinco galinhas do mar e um pato bravo. Apesar de haver 14 anos (quem tal diria!) que eu não caçava, não errei um tiro, e quando vim para o almoço tinha empregado optimamente as minhas seis cargas. Parecia-me que tinha voltado aos 18 anos, e achei-me resignado e feliz com o modo como me tem passado o tempo e a vida desde a minha última caçada até esta.
     Do almoço ao jantar matámos coelhos, uma codorniz, uma rola, e mais dois patos. Voltámos carregado para Porto Brandão. Os coelhos são magníficos aqui. A carne é branca como a da vitela e tem um sabor bravio que sabe às ervas ao cheiro e à amargura da charneca. [...] Quando tornámos a passar a lagoa já havia luar. Que solidão, que silêncio, que imensa concentração naquelas águas imóveis do lago! Não imaginas que beleza! Depois de mais a mais sem a estúpida companhia de ninguém que fizesse literatura nem poesia. Eram apenas honrados caçadores singelos e robustos, habituados à fadiga e ao monte. [...] Do lado de cá da Lagoa montámos os nossos burros e lá viemos de pernas a bamboar pelo tojo, embrulhados nos nossos mantos, com as espingardas de baixo do braço. Cansa-me muito andar em burro e aquele movimento que eles têm quando principiam a cansar e que parece com o de uma pessoa que nada, faz-me dores nas costas e nos rins, de modo que das quatro léguas para lá e quatro para cá andei quase tudo a pé com a minha firmeza sólida e proverbial. [...]

     * Lagoa d'El-Rei, Sesimbra
[excert de carta a sua mulher, Emília, s.ll., s.d.]

Cartas a Emília, Lisboa, Lisóptima / Biblioteca Nacional, 1993
edição: Beatriz Berrini. 

(excerto lido na sessãp de 4.VI.2014)

Desperdício 3, Sebastião Belfort Cerqueira



Desperdicei ouvintes muitas vezes
Na esperança de poder mais que falar
Sem planos para lá das intenções
Tiros limpos quis fazê-los difíceis
Com excesso de barulho e desrazões
E ainda assim ter sol até à porta
E a porta até à tarde e até à estrada.
Admito que houve vezes que sorri
Que se pudesse agora retirava
Que espero que quem viu tenha esquecido
E que parecem pouco ou quase nada
Ao lado do que já disse ao ouvido.

Lido na sessão de 18-06-2014.

Desperdício 4, Sebastião Belfort Cerqueira

Desperdizes ao vento muito embora
Cada vez mais embora
E um último cartucho
Cheguei a casa e joguei-o fora
Ao lixo
Por luxo.
Desperdizes ao vento muito ao vento
E eu morto
E agora
De tudo.

Lido na sessão de 18-04-2014

Desperdício 1, Sebastião Belfort Cerqueira


Desperdisse ao ouvido muitas coisas
Só pra provar o toque de uma orelha
Sem planos especiais para depois
E queria fazer disso como o outro
Uma linha que acaba em nós os dois
Pra rirmos e acompanhar à guitarra
Mas não tenho mais música pra dar.
Já fui visto na doca a perder tempo
A dizer coisas parvas sobre o mar
A um gajo que ninguém sabe quem era
E oh meu amor eu gosto de aqui estar
Mas nem aquilo que eu fiz foi estar à espera
Nem o que tu fizeste foi chegar
E se um dia leres isto vai-se andando.
 
in Forma de Vida nº4, www.formadevida.org
 
 
Lido na sessão de 18-06-2014.

19 de junho de 2014

LEITURAS DAS QUARTAS


A CAMA, SE AO MENOS MUDASSE A CAMA

Excertos do conto filosófico “Maridos”, de Fernando Pessoa:

«Não há mulher nenhuma neste mundo – nem a mais séria, senhor juiz – que não tenha invejado essas que lá andam nas ruas à procura  dos homens – nenhuma, senhor juiz (…)
Isto, senhor juiz, e para que Vossa Excelência saiba, e os senhores jurados, é o que todas as mulheres sentem.
(…) E vem uma vontade de meter a costura pela pia abaixo, e de ir para longe ao menos só para chorar à vontade.
(…) Sempre o mesmo homem, senhor juiz – o mesmo homem todos os dias, com o mesmo corpo e a mesma maneira! Todas as noites, senhor juiz, e na mesma cama – nem a cama muda ao menos. E aquilo ao fim de tempo já não era viver, nem coisa que se parecesse – era uma coisa entre comer para não ter fome e fazer o serviço da casa… Se os homens soubessem o que custa a aturar! Se soubessem o nojo que a gente tem por eles quando está encostada a eles!
E eu, senhor juiz, não tinha outro remédio senão matá-lo para estar bem com a minha consciência e com a Igreja.
Foi por isto, senhor juiz e senhores jurados que matei o meu marido.»

18 de junho de 2014

13 de junho de 2014

B

BACO, n.  Uma divindade conveniente, inventada pelos antigos como desculpa para se embriagarem.
BANDEIRA, n.  Um trapo colorido que se usa acima das tropas e nos quartéis e navios. Parece ter a mesma função de certos cartazes que se podem ver nos terrenos baldios de Londres: «Pode atirar-se lixo para aqui».
BANDIDO, n. Uma pessoa que, à força, tira a A aquilo que A, com manhas, tirou a B.
BAPTIZAR, v.t.  Infligir cerimoniosamente um nome a uma criança indefesa.
BARBEIRO, n.  (Do Latim barbarus, selvagem, a partir de barba, a barba.) Um selvagem que nos faz esquecer a laceração da nossa cara, perante o tormento superior que é ter de ouvir a sua conversa.
BIOGRAFIA, O tributo literário que um pequeno homem presta a uma grande homem.
BRUTO, n. Ver MARIDO.
BRUXA, n. (1) Uma mulher feia e repelente, que fez um pacto demoníaco com o Diabo. (2) Uma jovem mulher bela e atraente, muito mais demoníaca que o próprio Diabo.

Ambrose Bierce, Dicionário do Diabo, Lisboa, Tinta da China, 2006, pp. 25-29.

Alguma entradas da letra B, lida na sessão de 11 de Junho de 2014. 

11 de junho de 2014

um parágrafo de José Eduardo Agualusa

 
«Porém, quando estávamos quase a chegar ao Sumbe, o lagarto começou a rir. Sei que parece estranho, mas é a pura verdade: Leopoldino ria. Não ria exactamente como uma pessoa, claro, ria como uma pessoa semelhante a um lagarto, mas ria. Eram gargalhadas secas, cínicas, que estalavam dentro do jipe de uma forma vagamente assustadora. Eu ouvi-o e não tive vontade de rir. O meu amigo, que conduzia o jipe, ficou ainda mais inquieto:»

Do conto «Dos perigos do riso», lido na sessão de 21 de Maio de 2014
in Fronteiras Perdidas (1999), 5.ª edição, Lisboa, Dom Quixote, 2009, pp. 15-19.

solidão absoluta


Os últimos anos de D. João V, em deslocações regulares às Caldas da Rainha (de onde o autor é natural), para enfrentar um mal que o deixara semiparalizado, talvez um avc. Um bom pretexto para falar-se do lugar, a que se junta uma história de amor entre Pedro Fontes, escudeiro do infante D. Manuel, irmão mais novo do rei e Sara, uma filha ilegítima d'o Magnânimo -- o episódio mais eminentemente ficcional do livro, pois trata-se de romance histórico.
Neste aspecto, a pesquisa parece-me ter sido muito conseguida, não faltando o episódio de conspiração (ou alucinação visionária de um certo Pedro de Rates Henequim, personagem verídica, sentenciada pela Inquisição), que procurara fazer do infante D. Manuel um futuro imperador do Brasil, como forma de instaurar o V Império bandarro-vieirino.
O mais interessante da narrativa é a solidão do rei absoluto diante da doença e da aproximação da morte. Menos interessante, para mim, a história de amor, central, prejudicando, talvez, alguns aspectos que gostaria de ter visto mais desenvolvidos.

Carlos Querido, A Redenção das Águas, Lisboa, Arranha-céus, 2013

5 de junho de 2014

O início de A REDENÇÃO DAS ÁGUAS


O rei morreu. O dobre de finados dos 114 sinos do convento de Mafra espalha a notícia pelos céus do oeste com uma cadência grave e desolada, que se propaga por um vasto território, para norte, entre a serra e o mar, até à vila das termas, até aos sinos da igreja de Nossa Senhora do Pópulo.

Carlos Querido, A Redenção das Águas -- As Peregrinações de D. João V à Vila das Caldas, Lisboa, Arranha-céus, 2013.

um parágrafo de Ruben A.

«Pusemos arraial na encosta, pedra ao pé de pedra. Lá fomos entre o formigueiro. A capela é mesmo viva pelas coisas de pedra colorida e pela situação escondida do altar-mor. Tem uma estátua do Santo Miguel a cutilar o Senhor Diabo que é uma maravilha. Todos entre Lima e Minho têm respeito ao Senhor Diabo para ele estar quietinho. Nada de obras do Diabo! O Senhor Diabo merece toda a consideração. Deitei lá umas cinco coroas para não ter nada com as iras e más disposições do Senhor Diabo.»

Ruben A., «S. João d'Arga», Antologia, organização de Liberto Cruz e Madalena Carretero Cruz, Lisboa, Roma Editora, 2009, pp. 89-94.

Lido na sessão de 28 de Maio de 2014.