20 de junho de 2014

LIDO NA SESSÃO DE 18 DE JUNHO DE 2014



"O ofício de cão é um mau ofício, um ofício sem meio-termo: pelos vistos entre os cães não há classe média, mas sim áurea aristocracia e sebenta e faminta vulgaridade. Uns cães vivem como duques e comem peitinhos de frango e bebem leite, e outros, pelo contrário, farejam nos matadouros, levam pauladas e, quando chega o carnaval, até voam pelos ares com o espinhaço partido em dois. Os cães, pelo entrudo, são pintados às riscas para maior e mais cauteloso escárnio do próprio e regozijo dos outros, e assim, quando vão pelos ares, as pessoas dizem: «Parecem borboletas!», e divertem-se honestamente e sem fazer mal a ninguém [...]
A Blas Tronchón, Harinita, quando o jogo acabou, puseram-no no meio da manta e começaram a atirá-lo ao ar e a divertir-se com ele, como fazem aos cães no entrudo. A cena foi de muita graça e crueldade, e o público, enquanto moíam os ossos a Blas Tronchón, Harinita, com uma circunspecção muito recatada.
- Que não tivesse falhado o penalty, não é verdade?
- Pois claro, é como eu costumo dizer: que não tivesse falhado o penalty. Assim vai aprender a afinar a pontaria!
Blas Tronchón, Harinita, tinha um chuto potente e impiedoso que era o orgulho dos seguidores da equipa do clube e o terror dos guarda-redes inimigos. Blas Tronchón, Harinita, era muto habilidoso e tanto chutava com um pé como com o outro; a cabeça, por fora, também a usava bem e oportunamente. Blas Tronchón, Harinita, era o verdugo dos penalties, o feroz e frio executor da pena de morte do futebol. Às vezes, no entanto, falhava, e então os companheiros, ao terminar o jogo, manteavam-no como fazem aos cães no entrudo, para lhes servir de escarmento.
- Mas o que é que estão a fazer com esse desgraçado?
- Nada, minha senhora; estão a manteá-lo para que aprenda a ter pontaria. [...]

(do conto COMO UM CÃO NO ENTRUDO)

2 comentários: