20 de junho de 2014

Ramalho Ortigão e os prazeres da caça

   
 [Querida...]

     [...] Enquanto se esperava pelo almoço eu saí com um cão, uma espingarda e seis cargas e fui dar uma volta à lagoa*. Matei cinco galinhas do mar e um pato bravo. Apesar de haver 14 anos (quem tal diria!) que eu não caçava, não errei um tiro, e quando vim para o almoço tinha empregado optimamente as minhas seis cargas. Parecia-me que tinha voltado aos 18 anos, e achei-me resignado e feliz com o modo como me tem passado o tempo e a vida desde a minha última caçada até esta.
     Do almoço ao jantar matámos coelhos, uma codorniz, uma rola, e mais dois patos. Voltámos carregado para Porto Brandão. Os coelhos são magníficos aqui. A carne é branca como a da vitela e tem um sabor bravio que sabe às ervas ao cheiro e à amargura da charneca. [...] Quando tornámos a passar a lagoa já havia luar. Que solidão, que silêncio, que imensa concentração naquelas águas imóveis do lago! Não imaginas que beleza! Depois de mais a mais sem a estúpida companhia de ninguém que fizesse literatura nem poesia. Eram apenas honrados caçadores singelos e robustos, habituados à fadiga e ao monte. [...] Do lado de cá da Lagoa montámos os nossos burros e lá viemos de pernas a bamboar pelo tojo, embrulhados nos nossos mantos, com as espingardas de baixo do braço. Cansa-me muito andar em burro e aquele movimento que eles têm quando principiam a cansar e que parece com o de uma pessoa que nada, faz-me dores nas costas e nos rins, de modo que das quatro léguas para lá e quatro para cá andei quase tudo a pé com a minha firmeza sólida e proverbial. [...]

     * Lagoa d'El-Rei, Sesimbra
[excert de carta a sua mulher, Emília, s.ll., s.d.]

Cartas a Emília, Lisboa, Lisóptima / Biblioteca Nacional, 1993
edição: Beatriz Berrini. 

(excerto lido na sessãp de 4.VI.2014)

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