30 de agosto de 2011

Kant em Luanda

Conta-se que Immanuel Kant (1724-1804), o filósofo do imperativo categórico («Age de modo a que a máxima da tua acção possa ser considerada como o princípio de uma lei universal.»), era um homem  de regularíssimos hábitos. Na pequena cidade natal de Königsberg, seguia sempre o mesmo percurso, às mesmas horas; de tal forma que os conterrâneos regulavam o tempo pelas caminhadas do autor da Crítica da Razão Pura, todos os dias, todos os anos.
Assim está o centenário Arcénio de Carpo, de A Conjura, cujos hábitos inalteráveis determinavam o horário de uma parte do comércio e dos serviços de Luanda: «Assim, de manhãzinha, mal o viam assomar ao topo da Rua Direita, os lojistas conheciam que era chegada a hora de estender os panos nos varais [...]. E quando, Sol alto, o velho, saindo da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, atravessava o Largo da Alfândega para entrar na tasca do Martins, meio mundo largava mão do que estivesse a fazer e ia almoçar sossegadamente [...]. Depois, Arcénio saía da tasca e ia sozinho passear [...] e o povo sabia que eram exactamente cinco horas da tarde. O velho regressava arrastado pelos primeiros ventos e era então que os lojistas fechavam as portas e os amanuenses trocavam os escritórios pelos pelos bancos das tabernas ou as bermas sujas dos passeios públicos.»

José Eduardo Agualusa, A Conjura, Alfragide, Leya, 2008, p. 114.

a nossa equipa

José Eduardo Agualusa

28 de agosto de 2011

A NOITE DESCE, Florbela Espanca

Como pálpebras roxas que tombassem
Sobre uns olhos castanhos, carinhosos,
A noite desce... Ah! doces mãos piedosas
Que os meus olhos tristíssimos fechassem!

Assim mãos de bondade me embalassem!
Assim me adormecessem, caridosas,
E em braçadas de lírios e mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!

A noite em sombra e fumo se desfaz...
Perfume de baunilha ou de lilás,
A noite põe-me embriagada, louca!

E a noite vai descendo, muda e calma...
Meu doce Amor, tu beijas a minh'alma
Beijando nesta hora a minha boca!



Poesia da Noite, selecção e prefácio de Urbano Tavares Rodrigues, Lisboa, Neo-Farmacêutica, 1970, p. 49


(lido numa sessão de 2011)

a nossa equipa

Florbela Espanca

24 de agosto de 2011

E nós? (quando a propósito de Júlio Dinis se fala em Garrett e Herculano...)

O Jerónimo Caninguili de A Conjura anda a ler à Judite As Pupilas do Senhor Reitor, do Júlio Dinis. E nós, quando agendaremos um dos quatro romances deste grande escritor de oitocentos?
Se a memória não me falha, é o único romancista do século XIX que resiste, ao lado de Camilo e Eça. Garrett é essencialmente as Viagens (o que não é pouco, tratando-se de um livro fundador e charneira); o Herculano, pelo menos o do Eurico, requer alguma profundidade no conhecimento da Alta Idade Média peninsular, para que não seja lido pela rama, o que o afasta do leitor comum. O bom do Júlio Dinis, esse -- como muito Camilo e todo o Eça -- mantém  actualidade e interesse.

P.S. Claro que me refiro a Garret e a Herculano enquanto romancistas. Garrett persiste também no teatro (e como!) e na poesia; Herculano é apenas o maior historiador português de sempre. Para além disso, as suas figuras históricas, como soldados na guerra civil entre liberais e absolutistas e as funções públicas que desempenharam dá-lhes, também neste campo, um lugar na História de Portugal. Enfim, dois homens superiores, que foram amigos, apesar dos temperamentos completamente opostos (Garrett, um dândi guloso dos prazeres da vida; Herculano, um homem rígido e austero. Um foi feito visconde, o outro recusou o título).

22 de agosto de 2011

Alfredo Troni



No dia anterior o afável Marimont havia surpreendido a clientela habitual com um exemplar do Diário da Manhã, que todas as semanas recebia de Lisboa, trazendo na segunda página um folhetim intitulado «Nga Muturi -- Cenas de Luanda». Assinava-a Alfredo Trony. [..] porque com todos Trony havia privado de perto e de todos tinha recolhido informações e confidências, qualquer deles se sentia um pouco autor da obra, querendo ver em cada frase uma sua contribuição, em cada palavra o eco da própria voz.
Alfredo Trony recebia os abraços e felicitações quase envergonhado, torcendo nervoso o farto bigode de vassoura:
-- Ora vamos -- repetia já enfastiado --, é apenas um ensaiozito; e ao meus amigos o devo.

José Eduardo Agualusa, A Conjura, Alfragide, Leya, 2008, p. 33.



imagens daqui e daqui

o calor do trópico

Abro A Conjura numa tarde de Guincho, encoberta, pouco ventosa, calor q.b., praia atlântica, em suma.
Reconheço um certo calor de trópico no contar do Agualusa, uma alegria que encontrei também na literatura brasileira (Jorge Amado above all), alegria até no meio dos escombros, algo raramente vislumbrado na literatura portuguesa, mais pesada, mais europeia.

21 de agosto de 2011

"A CONJURA"

Josephine era bonita: os olhos largos e macios, a quindumba cheirosa, o alto corpo ondulante como palmeira embalada pelas brisas. Josephine gostava dos homens e da forma como os homens gostavam dela. Gostava do pai Pedro e do miúdo Severino. E aos dois servia feliz e exuberante.

Mulher de quissanguela, ela? Mulher apenas. Senhora de quem a fizera escrava. Senhora de todos os corações onde poisassem os seus olhos quentes. E ofuscantes. Como o Sol.


José Eduardo Agualusa, A Conjura, Alfragide, Leya,SA, 2008, p. 36

19 de agosto de 2011

uma epígrafe de Camões

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas,
Me parecem belas
Como os meus amores

Endechas a Bárbara Escrava

(escolhida por Trindade Coelho para Os Meus Amores)

17 de agosto de 2011

e assim começa FOSTE TU QUE ME ESCREVESTE DE SINTRA?

Ralph Galbraith abanava-se lentamente com um belíssimo chapéu creme, com fita de couro, peça de luxo do seu novíssimo padrão colonial.

Carlos Daniel, Foste Tu que Me Escreveste de Sintra?, Sintra, Editora Vral, 2005, p. 13.

16 de agosto de 2011

PELAS LANDES, À NOITE, Eugénio de Castro

Pelas landes e pelas dunas
Andam os magros como pregos,
Os lobos magros como pregos,
Pelas landes e pelas dunas.

Olhos de fósforo, esfaimados,
Numa pavorosa alcateia,
Andam, andam buscando ceia,
Olhos de fósforo, esfaimados.

Nas landes grandes, junto às dunas,
Um menino perdido anda,
Anda perdido, a chorar anda,
Nas landes, junto às brunas dunas.

Senhor Deus de Misericórdia,
Protegei o róseo menino,
Protegei o róseo menino,
Senhor Deus de Misericórdia.

Porque nas landes e nas dunas
Andam os magros como pregos,
Os lobos magros como pregos,
Nas grandes landes e nas dunas.



Poesia da Noite, selecção e prefácio de Urbano Tavares Rodrigues, Lisboa, Neo-Farmacêutica, 1970, p. 37.


(lido numa sessão de 2011)

a nossa equipa

Eugénio de Castro

15 de agosto de 2011

e assim começa O VELHO E O MAR

Era um velho que pescava sòzinho num esquife da Corrente do Golfo, e saíra havia já por oitenta e quatro dias sem apanhar um peixe. Nos primeiros quarenta dias um rapaz fora com ele. Mas, após quarenta dias sem um peixe, os pais do rapaz disseram a este que o velho estava definitivamente e declaradamente salao, o que é a pior forma de azar, e o rapaz fora por ordem deles para outro barco que na primeira semana logo apanhou três belos peixes. Fazia tristeza ao rapaz ver todos os dias o velho voltar com o esquife vazio e sempre descia a ajudá-lo a trazer as linhas arrumadas ou o croque e o arpão e a vela enrolada no mastro. A vela estava remendada com quatro sacos de farinha e, assim ferrada, parecia o estandarte da perpétua derrota.

Ernest Hemingway, O Velho e o Mar, tradução de Jorge de Sena, Lisboa, Livros do Brasil, s. d., pp. 7-8.