LIBERDADE
Do espaço que libertámos um dia
Surgiu límpido o teu nome liberto
Era um pássaro a destruir a noite
Era uma voz a perfurar o silêncio
Era um grito a romper o muro
Um punho fechado em rosa aberta
Habitar o Tempo, Vieira de Freitas, 1975
LIBERDADE
Do espaço que libertámos um dia
Surgiu límpido o teu nome liberto
Era um pássaro a destruir a noite
Era uma voz a perfurar o silêncio
Era um grito a romper o muro
Um punho fechado em rosa aberta
Habitar o Tempo, Vieira de Freitas, 1975
A mim o que me mata,
querido efebo, digo-te:
desejo sem prazer,
versos sem graça ou ritmo
e ceias só com chatos.
Arquíloco (, Jónia, Séc. VII a. C.)
in Jorge de Sena, Poesia de 26 Séculos (1972)
O AMOR E A MORTE - MONÓLOGO A DOIS
Sábia talvez inconsciente,
Doseando, com volúpia, uma ancestral
sofreguidão,
Ali onde o desejo mais me dói, mais
exigente,
Me acaricia a tua mão.
De olhos fechados me abandono,
ouvindo
Meu coração pulsar, meu sangue
discorrer,
E, sob a tua mão, na asa do sonho,
eis-me subindo
Àquele auge em que todo, em alma e
corpo, vou morrer…
--- Filho do Homem, 1961
O AMOR E A
MORTE – POEMA
Crispou-se a
minha mão sobre o teu sexo.
Fecharam-se-me
os olhos sem querer…
De que
abismos voava até ao fundo?
E a minha
mão sondava
E triturava
Aquele mundo
Tão
pequenino e tão complexo:
O teu
mistério de mulher.
--- Filho do Homem, 1961
O PALÁCIO DA VENTURA
Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante,
O palácio encantado da Ventura.
Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!
Com grandes golpes, bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!
Abrem-se as portas d'ouro com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!
Antero de Quental, Sonetos
QUASE
Um pouco mais de sol -- eu era brasa.
Um pouco mais de azul -- eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho -- ó dor! -- quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim -- quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo... e tudo errou...
-- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... --
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
Momentos de alma que desbaratei...
Templo aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol -- vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
...............................................................
...............................................................
Um pouco mais de sol -- e fora brasa,
Um pouco mais de azul -- e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Mário de Sá-Carneiro (Lisboa, 1890 - Paris, 1916),
Dispersão (1914)
TRABALHAR CANSA
Atravessar uma rua para fugir de casa
só um rapaz é que o faz, mas este homem que vagueia
todo o dia pelas ruas já não é um rapaz
e não está a fugir de casa.
Há tardes
no verão em que até as praças ficam vazias, estendidas
sob o sol que está prestes a pôr-se, e este homem, vindo
por uma alameda de inúteis plantas, pára.
Vale a pena estar sozinho, para se estar cada vez mais sozinho?
Vaguear por elas apenas, as praças e as ruas
estão vazias. É preciso travar uma mulher
e falar com ela e convencê-la a viver a dois.
Ou então fica-se a falar sozinho. Daí que por vezes
haja o bêbedo nocturno que mete conversa,
e conta os projectos de uma vida inteira.
Não é certamente aguardando na praça deserta
que se encontra alguém, mas quem vagueia pelas ruas
detém-se por vezes. Se fossem dois,
mesmo a andar pela rua, a casa seria
onde está aquela mulher, e valeria a pena.
Volta a praça a ficar deserta à noite,
e este homem, que passa, não vê as casas
entre as luzes inúteis, já não ergue os olhos:
sente apenas a calçada, que outros homens fizeram
com mão endurecidas, como são as suas.
Não é justo ficar na praça deserta.
Andará com certeza pela rua a mulher
que, rogada, daria com gosto um jeito na casa.
Cesare Pavese (Santo Stefano Belbo, Piemonte, 1908 - Turim, 1950),
Trabalhar Cansa (1936)
Versão de Vasco Gato, Lisboa, 1978)
AMOR-METEORO
«Os ossos vão em caixinhas para Lisboa, para o Porto, para Coimbra.» Carlos Daniel, O Meu Tio de Nantes, Fundão e Amadora, Jornal do Fundão / Canto Redondo, 2023, p. 9.
FIM DO MUNDO
Salvo sem pressa um
cristal de rocha, uma
medalha; salvo um verso
e uma pluma no ar;
um cheiro a pão,
uma janela sobre o nada
aberta de par em par.
Ángel Crespo (Alcolea de Calatrava, 1926 - Barcelona, 1995)
30 Poemas (1984)
versão de Eugénio de Andrade (Póvoa de Atalaia, Fundão, 1923 - Porto, 2005)
O MEU TIO DE NANTES
"Nós íamos a pé para os aterros do rio e demorávamos mais de uma hora a chegar lá, troc, troc, por aquelas veredas abaixo e ele no seu cestinho de vime à cabeça da tia Teresa que já teria para aí uns dezoito ou dezanove anos (... ...) Depois pousava-o numa sombra, ou embrulhadinho em cobertores, no pino do inverno, e quando ele chorava muito ela dizia-me assim: «Ó Gilda toma lá conta dele que tu és ainda muito pequenina para andares aqui com as perninhas dentro desta água tão fria o dia inteiro.» E às vezes era eu que ficava com ele ao colo. Eu acho que ele chorava de fome, coitadinho, e eu abanava-o, abanava-o até a tia Teresa ter outra vez um bocadinho de leite para ele mamar porque ela tinha muito pouco leite. Ó filho, quando hoje me lembro disto tudo até me parece que aquilo não pode ter acontecido: irmos três garotas, no pino do frio e do calor, para o Cabeço do Pião com uma merendita para o dia inteiro e a tia Teresa com aquela cestinha de vime à cabeça, com o Floriano lá dentro, que veio a casar com uma Palmira de Moncorvo e eram primos da Fernanda do Lúcio que trabalhava na Câmara do Barreiro e que o marido a deixou. E passávamos o dia inteiro a arear, a arear dentro do rio... e aquele menino à cabeça para trás e para diante.
Ai filho(...)"
(Pg. 79-80)
Este belíssimo livro, que se lê com gula e deleite, é assinado por Carlos Daniel. Contudo, podemos afirmar que a verdadeira autora é a Senhora sua Mãe, Dona Gilda, que em grande parte lho 'ditou', através de longos telefonemas ou em conversas dispersas ao longo da vida. A Carlos Daniel coube a meritória tarefa de, com talento e arte, converter os monólogos telefónicos e os pitorescos relatos da anciã em belíssimas peças de prosa.
Um abraço de parabéns, Carlos Daniel. Antevejo uma sessão animada e enriquecedora, na qual, com muita pena minha, não poderei estar presente.
F. Faria
SONETO DA VISITAÇÃO
CANÇÃO DO NU
Lindo«(…) toda a poesia consiste fundamentalmente no desgosto que o homem tem sempre pelo que ainda é e nos seus braços estendidos para o que quer ser; consiste fundamentalmente na tal reconstrução sobre si próprio, no seu desejo eterno de ser mais, que é como quem diz: melhor.»
– Dissertação de licenciatura de MÁRIO DIONÍSIO, “Introdução à leitura da ‘Ode Marítima’", apresentada em 1938 à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
O
candidato foi reprovado no exame.
VIDA VITORIOSA
Foi uma vida vitoriosa, é certo,
A vida que vivi nesta jornada,
-- Não da vitória que se vê de perto,
E que se alcança, apenas desejada.
Não do triunfo que sorri, incerto,
E logo é fumo, e é pó, e é cinza, e é nada,
-- Mas doutra glória que ao meu peito aperto,
E só eu vejo, pura e recatada.
Porque em silêncio conquistei, lutando,
-- Quantas vezes perdido e miserando,
Quantas vezes vencendo a própria dor --
Esta alegria de passar na vida
Sendo uma força, que jamais duvida,
E uma voz clara, como a Voz do Amor!
João de Barros (Figueira da Foz, 1881 - Lisboa, 1960),
Vida Vitoriosa (1919)
A DOR DAS PEDRAS
POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL, XXIII
A VIDA
A vida é o dia de hoje,
a vida é ai que mal soa,
a vida é sombra que foge,
a vida é nuvem que voa,
a vida é sonho tão leve
que se desfaz como a neve
e como o fumo se esvai:
a vida dura um momento,
mais leve que o pensamento,
a vida leva-a o vento,
a vida é folha que cai.
A vida é flor na corrente,
a vida é sopro suave,
a vida é estrela cadente,
voa mais leve que a ave:
nuvem que o vento nos ares,
onda que o vento nos mares
uma após outra lançou,
a vida - pena caída
da asa de ave ferida -
de vale em vale impelida,
a vida o vento a levou.
JOÃO DE DEUS
COM O TEMPO A SABEDORIA
Embora muitas sejam as folhas, a raiz é só uma;
Ao longo dos enganadores dias da mocidade,
Oscilaram ao sol minhas folhas, minhas flores;
Agora posso murchar no coração da verdade.
original aqui
W. B. Yeats (Dublin, 1865 - Menton, 1939)
versão de José Agostinho Baptista (Funchal, 1948)
RELÍQUIA
OS ARAUTOS NEGROS
Há pancadas tão fortes na vida... Eu sei lá!
«O que os poemas querem dizer, só eles sabem o que querem dizer.»
ROSAS SEM ESPINHOS
MULHER
Não saíste, Mulher, inteiramente,
Das mãos de Deus! A sede e a formosura
Dos homens completam a figura
Divina que tu és, -- eternamente.
O amor do homem, na ansiedade ardente,
Vestiu de glória a mocidade pura
Da tua vida. Para ti procura
Um canto o Poeta, infatigàvelmente.
Sem descanso, o pintor, numa ansiedade,
Às tuas formas dá actividade,
Para adornar teu corpo alvo e risonho.
Jardins, o mar e a terra abrem o seio,
Dão-te oiro, flores, pérolas, enleio...
-- És metade Mulher, metade Sonho!
Rabindranath Tagore, (Jorasanko Takurban, Calcutá, 1861-1941)
Poesias de Tagore (O Músico e o Poeta)
versão de Augusto Casimiro (São Gonçalo, Amarante, 1889 - Lisboa, 1967)
«Com 19 anos incompletos, André viu-se forçado a emigrar.»
Manuel Tiago, Cinco Dias, Cinco Noites [1975], Lisboa, Editorial «Avante!», 1994, p. 9.
«[...] creio que é o silêncio que escreve o poema. As palavras estão lá para o testemunhar. Porque o poema não é a evidência, mas a interrogação, a sugestão, a lacuna, a fenda, a porta entreaberta, a possibilidade de viagem para cá e para lá dele.»
CANÇÃO DUMA SOMBRA
Ah, se não fosse a névoa da manhã
E a velhinha, para ouvir a voz das cousas,
Eu não era o que sou.
Se não fosse esta fonte, que chorava,
E como nós cantava e que secou...
E este sol que eu comungo de joelhos,
Eu não era o que sou.
Ah, se não fosse este luar, que chama
Os espectros à vida e se inflitrou,
Como fluido mágico, em meu ser,
Eu não era o que sou.
Ah, se não fosse o vento, que embalou
Meu coração e as nuvens, nos seus braços,
Eu não era o que sou.
Sem esta terra funda e fundo rio,
Que ergue as asas e sobe, em claro voo;
Sem estes ermos montes e arvoredos,
Eu não era o que sou.
Teixeira de Pascoais (Amarante, 1877 - Gatão, 1952),
As Sombras (1907) / Antologia Poética
(ed. por Ilídio Sardoeira)
Procuramos por toda a parte
o que está para lá das coisas,
e o que encontramos
são apenas coisas.
Novalis (Wiederstedt, Saxónia, 1772 - Weissenfels,idem, 1801)
versão de João Barrento (Alter do Chão, 1940)
«Em poesia, a realidade não é outra coisa senão a linguagem que a produz.»
VENDO A MORTE
Em todo o lado vejo a morte! E, assim, ao ver
Que a vida já vem morta cruelmente
Logo ao surgir, começo a compreender
Como a vida se vive inùtilmente...
Debalde (como um náufrago que sente,
Vendo a morte, mais fúria de viver)
Estendo os olhos mais àvidamente
E as mãos p'ra a vida... e ponho-me a morrer.
A morte! sempre a morte! em tudo a vejo,
Tudo ma lembra! E invade-me o desejo
De viver toda a vida que perdi...
E não me assusta a morte! Só me assusta
Ter tido tanta fé na vida injusta
...E não saber sequer p'ra que a vivi!
Manuel Laranjeira (Mozelos, Santa Maria da Feira, 1877 - Espinho, 1912)
Comigo (1912) / Líricas Portuguesas. 2.ª Série
(ed. de Cabral do Nascimento)
*
Boca
margem côncava
ângulo de amoras ruivas
esconderijo de águas marinhas
ou de pérolas (abrigadas)
manhã de caça
forrada a lâminas
de cedros
*
Se ao menos uma vez o poeta ordenasse
que as aves se despissem
que as aves não gritassem
que as aves a tão alto chegar não
chegassem
ou porque tão alto chegarem
outra ordem as parasse
ou um raio ou uma pedra
ou o sino de uma igreja
ou talvez uma palavra
o que calhando bastasse
*
Os mares são brancos em Marraquexe
de cal
ao longe
uma outra cor
de linho
a claridade dos trajes
as casas rasas de lágrimas
a rara circunstância das águas
do deserto
COMEÇO POR INVOCAR WALT WHITMAN
É por acção de amor ao meu país
que te reclamo, ó necessário irmão,
velho Whitman da cinzenta mão,
para que, com o teu apoio extraordinário,
verso a verso, matemos de raiz
Nixon, o presidente sanguinário.
Sobre a terra não há homem feliz,
ninguém trabalha bem no planeta
se em Washington respira o seu nariz.
Pedindo ao velho bardo que me invista,
os meus deveres assumo de poeta
armado do soneto terrorista,
porque devo ditar sem pena alguma
a sentença até agora nunca vista
de fuzilar um criminoso ingente
que apesar das suas viagens para a lua
já matou na terra tanta gente,
que até foge o papel e a pena se alevanta
ao escrever o nome do maldito,
do genocida, o da Casa Branca.
Pablo Neruda (Parral, Chile, 1904 - Santiago, 1973),
Incitamento ao Nixonicídio e Louvor da Revolução Chilena (1973)
versão de Alexandre O'Neill (Lisboa, 1924-1986)
original aqui
«A poesia é, por essência, mais do que e algo de diferente da própria poesia. Ou antes: a própria poesia pode encontrar-se onde não existe propriamente poesia. Ela pode mesmo ser o contrário ou a rejeição da poesia, e de toda a poesia»
CANTIGA PARA OS TRABALHADORES DOS CAMPOS
Sou cavador, cavo a terra
Donde nasce a flor e o grão.
Dou aos outros a fartura
E em casa não tenho pão.
Hoje planto árvor's e vinha,
Lavro a terra, rego a horta,
E amanhã, em sendo velho,
Pedirei de porta em porta.
O sol a todos aquece,
Não nega a luz a ninguém,
Ama os bons e ama os maus
E assim foi Jesus também.
A árvore, quanto mais fruto,
Mais baixa os ramos p'ra o chão.
O homem, quanto mais rico,
Mais ergue a sua ambição.
A vida do pobre é isto:
-- Trabalhar enquanto moço,
E em velho andar às esmolas
Como o cão que busca um osso.
Morre um rico, dobram sinos!
Morre um pobre, não há dobres!
Que Deus é esse dos padres
Que não faz caso dos pobres?
Se pão não tenho, e os meus filhos
Me pedem pão a chorar,
Dou-lhes beijos, coitadinhos!
Que mais não lhes posso dar...
Sinto no mundo um rumor
Que anuncia um dia novo,
Andam profetas na terra
Abrindo os braços ao povo!
O sol nasceu cor de sangue
E a lua da mesma cor.
Gritam as bocas: Mais pão!
E os corações: Mais amor!
Bernardo de Passos, (São Brás de Alportel, 1876-1930)
Refúgio (póst., 1938) / Líricas Portuguesas. 2.ª Série
(edição de Cabral do Nascimento)
QUERERIA ESCREVER POEMAS
Quereria escrever poemas à noite
E não posso.
Tenho de traduzir os textos
De promoção a
Um creme de beleza.
Vejo pessoas rapazes
Que não são aqueles
Que desejaria ver.
Os outros não os conheço.
Converso com raparigas na cantina
E dizemos coisas
Idiotas
Que não merecem ser ditas.
Tenho medo de habituar-me
«Não posso ver, hoje, a fome crescente e a chacina entre nações sem comoção. E a emoção pelos seres, pelos outros, pela natureza, pelo Cosmos, gera o poema.»
LEGENDA
Não me peças esmola, que sou pobre,
E avaro do meu pouco,
Se mo pedem!
Não me tragas esmola, que sou rico,
Se penso na miséria
Que poderias dar-me!
Dar-te-ei, sem que mo peças.
Dá-me, sem que eu o saiba.
Expulsei os mendigos do meu Reino!
Cá, só amor gratuito.
--- A Chaga do Lado, 1954
VILANCETE
INFÂNCIA ENTRE DISCÓRDIAS
Lá fora pendiam, látegos terríveis, os ramos dum freixo
E se de noite levantava o vento, a árvore chicote
Gemia e vergastava o vento como em navio
O sinistro cordame geme horrível na borrasca.
Em casa bradavam duas vozes: esguio chicote
Silvando fúria de fêmea desvairada e o medonho ruído
Da vergasta do macho que açoitava, rugia e sufocava enfim
A outra voz ao som do freixo num silêncio de sangue.
D. H. Lawrence (Notthingham, 1885 - Vence, 1930)
versão de João Almeida Flor, in D. H. Lawrence, Gencianas Bávaras e Outros Poemas (1983)
original aqui
«A poesia é um acto de insubordinação a todos os níveis, desde o nível da linguagem como instrumento de comunicação, até ao nível do conformismo, da conivência com a ordem, qualquer ordem estabelecida.»
MEU PAI
Os meus primeiros passos animaste,
Os meus primeiros erros corrigiste;
E o amor do trabalho que me incutiste
Com a própria lição que me legaste.
A ser honesto e digno me ensinaste,
E por igual também me transmitiste
O gosto pelo estudo, e o prazer triste
Do cultivo das musas, que ensaiaste...
Meu adorado Pai, quando me atrevo
A pensar no que sou, e no que devo
Ao teu conselho, auxílio e educação,
Que santo orgulho eu sinto em continuar-te!
Pois todo o meu engenho e a minha arte
Obras tuas, meu Pai, apenas são!
Delfim Guimarães (Porto, 1872 - Amadora, 1933),
Alma Portuguesa (1916)
NOSSA SENHORA
Tenho ao cimo da escada, de maneira
Que logo, entrando, os olhos me dão
nela,
Uma Nossa Senhora de madeira
Arrancada a um Calvário de capela.
Põe as mãos com fervor e angústia. O
manto
Cobre-lhe a testa, os ombros, cai
composto;
E uma expressão de febre e espanto
Quase lhe afeia o fino rosto.
Mãe das Dores, seus olhos enevoados
Olham, chorosos, fixos, muito além…
E eu, ao passar, detenho os passos
apressados,
Peço-lhe: – «A sua bênção, Mãe!»
Sim, fazemo-nos boa companhia,
E não me assusta a sua dor: quase me
apraz.
O Filho dessa Mãe nunca mais morre.
Aleluia!
Só isto bastaria a me dar paz.
– «Porque choras, Mulher?» – docemente
a repreendo.
Mas à minh´alma, então, chega de
longe a sua voz
Que eu bem entendo:
– «Não é por Ele…»
– «Eu
sei! teus filhos somos nós.»
--- Mas Deus É Grande, 1945
Todos sabem que eu nunca murmurei uma oração
Todos sabem que nunca tentei dissimular os meus defeitos.
Ignoro se existe uma Justiça e uma Misericórdia...
Entretanto, tenho confiança, porque sempre fui sincero.
Omar Khayyam (Nisahpur, Irão, c. 1048-c. 1131)
Rubaiyat - Odes ao Vinho
versão de Fernando Castro
«Não se pode ensinar alguém a amar a grande poesia quando esse alguém chega até nós sem esse amor. Como é que se pode ensinar a solidão?»
SONETO
ADOLESCÊNCIA
Na varanda, um instante
ficámos os dois sós.
Desde aquela manhã
tão doce, éramos noivos.
-- Sonolenta, a paisagem
dormia em vagos tons
sob o céu gris e rosa
do poente de outono --.
Disse que ia beijá-la;
baixou, serena, os olhos
e ofereceu-me as faces
como perdendo um tesouro.
-- Caíam folhas mortas
no jardim silencioso,
e no ar errava ainda
um olor de girassóis --.
Não se atrevia a olhar-me;
disse eu que éramos noivos,
... e as lágrimas rolaram-lhe
dos olhos melancólicos.
Juan Ramón Jimenez (Moguer, Huelva, 1881 - San Juan, Porto Rico, 1956),
Rimas (1902)
versão de José Bento (Pardilhó, Estarreja, 1932 - Venteira, Amadora, 2019)
original aqui