8 de dezembro de 2024

101 poemas portugueses #56

 

POEMA DA VOZ QUE ESCUTA


Chamam-me lá em baixo.

São as coisas que não puderam decorar-me:

As que ficaram a mirar-me longamente

E não acreditaram;

As que sem coração, no relâmpago do grito,

Não poderam colher-me.

Chamam-me lá em baixo,

Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,

Onde a multidão formiga

Sem saber nadar.

Chamam-me lá em baixo

Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante

E transparente e desgraçado e vil

Quando a noite vem, criança distraída,

Que debilmente apaga os traços brancos

Deste quadro negro -- a Vida.

Chamam-me lá em baixo:

Voz de coisas, voz de luta.

É uma voz que estala e mansamente cala

E me escuta.

 

Março de 1939


Políbio Gomes dos Santos (Ansião, 1911-1939)

A Voz que Escuta (1944)

3 comentários:

  1. “Poderam” ou puderam?

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  2. Sim, lá em baixo me chamam
    Onde o negro verme a cor
    E todos os corpos rançam
    Onde os sonhos são bolor

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