5 de setembro de 2017

A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER - Notas de leitura

- querer devorar o livro, mas, ao contrário de outros que ficam no palato como um vinho bom quando o estilo é superior, ou se debicam continuamente como um petisco num fim de tarde de praia, sem querer nem saber como parar a leitura, querer e não querer que esta acabe, tal a pressão psicológica a que somos sujeitos;

- testemunho indirecto da saga da mulher soviética de armas (e outros artefactos) na mão, enfrentando o invasor germânico, uma miríade de histórias pessoais e contraditórias, tendo por comum pano de fundo a bestialidade da guerra e sofrimento generalizado. Por vezes, uma centelha de humanidade, o milagre da humanidade no meio do inferno que os homens engendram;

- A Guerra não Tem Rosto de Mulher (1985), de Svetlana Alexievich pertence àquela categoria de obras que nos retratam cruamente, como realmente podemos ser em situações-limite. No testemunho pode emparceirar com Se Isto É um Homem (1947), de Primo Levi, ou O Arquipélago Gulag (1973), de Alexander Soljenitsin; em ficção, podemos verificar uma clima opressivo correspondente em narrativas de inspiração autobiográfica, como A Oeste Nada de Novo (1929), de Erich Maria Remarque, ou A Selva (1930), de Ferreira de Castro, ou ainda a desesperança sórdida da Viagem ao Fim da Noite (1932), de Céline;

- forma superior de jornalismo, é já literatura, uma literatura para a História.

8 comentários:

  1. Literatura é a Arte de Escrever com Arte, e ponto final!
    Sejam lá relatos jornalísticos, receitas de cozinha, cartas de amor, histórias da carochinha ou... romances!

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    1. Receitas de cozinha -- provavelmente existem algumas assim...
      Foi pena a questão, verdadeiramente interessante, de reduzir a literatura à ficção ou se ela abrange outras formas de expressão para além da narrativa ficcional, a poesia ou a escrita teatral, ter ficado pela rama na sessão de sexta-feira.
      Quanto a mim, literatura consiste no trabalhar da língua de forma pessoal com o fito de lograr um sentido. Aí temos um escritor e temos literatura. Por isso um relato de viagem como a «Peregrinação», do Fernão Mendes Pinto, a maioria das cartas do Eça ou as «Memórias» do Raul Brandão são, não só literatura, mas grande literatura.

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    2. Eu, pessoalmente, também entendo que literatura não se limita à ficção. Basta pensar no argumento que aponta no segundo parágrafo...
      Mas, como não sou teórico e a literatura que estudei foi por cima da rama e há muito tempo, admito perfeitamente que os mestres digam o contrário... Estão no seu direito (tal como eu...)

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    3. Ah... E já li receitas de cozinha deliciosas (literariamente)!

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    4. Ricardo, conceda-me o favor de não pensar que eu possa recusar o estatuto literário à poesia e ao teatro. É claro que o teatro (o bom) é literatura; é claro que a poesia (a boa) é literatura. A dimensão ficcional está presente em ambos os modos, até houve quem dissesse que o poeta é um fingidor, embora a ficcionalidade não indicie só por si o carácter literário de um texto. A um livro de anedotas reconhece-se facilmente a sua dimensão ficcional, mas não o estatuto de texto literário. Num livrinho que manuseamos na universidade, O Conhecimento da Literatura, do professor Carlos Reis, pode ler-se o seguinte: «Se é indubitável que o romance Madame Bovary de Flaubert ou o livro de poemas Clepsidra de Camilo Pessanha se inscrevem no campo da literatura, já uma narrativa como a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto pode ser considerada uma obra híbrida, na medida em que nela se mesclam eventos e situações ficcionais, com eventos e situações históricas, a par de uma acentuada projecção de índole autobiográfica e confessional (…)». Estas afirmações levam-nos ao âmago da questão, embora eu possa não concordar inteiramente com elas. Para mim a autobiografia e as memórias (até os diários) podem ser literatura. Nenhuma dúvida a respeito das Memórias de Raul Brandão ou da autobiografia de Ruben A., O Mundo à Minha Procura. Também a respeito do livro de Primo Levi, porque está escrito com arte e porque tudo o que ele narra, tendo acontecido de facto, se calhar não aconteceu exactamente como é narrado. Sucede que num clube de leitura não têm de ser lidas só obras literárias, pois é um clube de leitura e não de literatura. Enfim, não dá para mais em simples comentário, o assunto é vasto. Mas porque não, numa sessão do próximo ano, lermos um ou mais capítulos de um livro de introdução aos estudos literários? Se calhar não se perdia nada.

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    5. Caríssimo,

      não me fiz entender. É claro que a frase pressupunha pacífico o entendimento do teatro e da poesia como literatura!, e literatura de ficção.

      Quanto ao que escreve o Carlos Reis, no meu modesto entender, o carácter evidentemente híbrido de um livro como «Peregrinação», relato de viagens e 'aventuras', não lhe retira o carácter de obra literária, tal é a magnificência do estilo do homem de Montemor. O que os relatos de viagem, as memórias, etc., não são é literatura de ficção, isso é óbvio.

      Por outro lado, todos sabemos que mesmo um relato memorialístico, autobiográfico, tem sempre uma componente, já não digo de ficção, mas de subjectividade e composição que, em conjugação com o estilo, lhe dão um óbvio carácter literário. Os exemplo são inúmeros.

      Aliás, não há narrativas objectivas. Nem na historiografia, por muito que uma perspectiva cientista (de cientismo), tenha querisdo transformar a História em ciência, coisa que obviamente não é, mas antes uma disciplina que se serve de ciências suas auxiliares.

      Acho a ideia sensacional. Aliás, fiquei guloso do Carlos Reis, mas parece-me que este, nas suas mais de 500 páginas, será um pouco pesado para os nossos confrades -- ou não? E o preço (cerca de 30 aéreos) também não me parece convidativo. Não quer fazer uma pesquisa, por forma a entrar na lista do próximo semestre? Acho que, de facto, só teríamos a ganhar.

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    6. Sim, meu caro, o Carlos Reis a peso de ouro desmoraliza um pouco, porque a extensão do texto nem seria problema: ficava-se pelos dois primeiros capítulos, "A literatura como instituição" e "A linguagem literária" (este só parcialmente), cerca de 100 páginas. Em certa parte agora mesmo consultada, o autor refere a «transferência institucional» operada em alguns textos em princípio não literários pelo reconhecimento da sua peculiar elaboração formal. E dá como exemplos os sermões de António Vieira, os discursos parlamentares de Garrett e as crónicas de imprensa de Eça. Isto vai ao encontro do que já ficou dito. Outro livro que acho do máximo interesse para uma sessão é "Se numa Noite de Inverno um Viajante", de Italo Calvino, uma reflexão romanceada sobre a arte do romance, a leitura e os leitores, a tradução, a edição e tudo o que rodeia, para o bem e para o mal, o trabalho literário.

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    7. A proposta do Calvino parece-me óptima. Terei, contudo, de ver se o livro está disponível. Aliás, creio que poderemos alinhavar o próximo semestre na sessão de Outubro.

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