25 de fevereiro de 2013

Amin Maalouf, 64

Amin Maalouf nasceu em Beirute, a 25 de Fevereiro de 1949.

24 de fevereiro de 2013

uma epígrafe de Joaquim de Carvalho

As nações com a responsabilidade histórica da gente portuguesa, não podem imobilizar-se estaticamente, nem devem iludir-se infantilmente; têm que desentranhar sucessivamente da massa das suas tradições e aspirações um ideal coerente com a conjuntura histórica, que exprima e defina o seu estar mudável em concordância com o seu ser permanente. (Compleição do Patriotismo Português, 1953).

in Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade -- Psicanálise Mítica do Destino Português (1978), Lisboa, Círculo de leitores, 1988.

18 de fevereiro de 2013

torna-se o amador na cousa amada...

     Tu estás a matar-me, peixe, pensou o velho. Mas tens todo o direito. Nunca vi uma coisa maior, ou mais bela, ou mais serena, ou mais nobre do que tu, meu irmão. Vem e mata-me. Não quero saber qual de nós mata.

Ernest Hemingway, O Velho e o Mar, trad. Jorge de Sena, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., p. 102.

11 de fevereiro de 2013

a grande literatura de Dinis Machado

Grande literatura é isto:  domínio da palavra a benefício da narrativa, espessa, sumarenta, cheia de coisas a dizer e de indícios doutras que ficam por enunciar. Estórias e estorietas, há muito quem conte, alguns até reputados de bons escritores; mas O que Diz Molero (1977) é a história, narrada de forma múltipla, dum escritor de obra escassa, sete títulos, três dos quais sob o pseudónimo Dennis McShade.
Li-o por volta de 1983, e voltei agora a ele, no Clube de Leitura do Museu Ferreira de Castro. Por esse então, final da adolescência, apesar de muitas referências me escaparem -- que não as da BD (Dinis Machado terá sido o único escritor português a ter aposto numa obra literária os nomes de Zig e Puce...) ou as dos Westerns de John Ford; é um livro cheio de cinema (até na prosa) e quadradinhos --, havia também uma memória que me era familiar: o imaginário lisboeta das décadas de 1930-1940, que me foi transmitido pelo meu pai, da mesma geração do autor: as figuras populares, suas alcunhas e seus maneirismos; a Guerra Civil de Espanha e a II Guerra Mundial, o modo como eram ansiosamente seguidas e as próprias implicações sociais e políticas desses dois cataclismos entre nós; o cinema de Hollywood e os filmes em 31 partes do Flash Gordon; os comics americanos, Dick Tracy e Mandrake, os combates de boxe... Referências pulp e eruditas, de Camilo Pessanha a Jorge Luis Borges, fluindo naturalmente, porque reflexo da vida e da vivência.  Não sei se algum vez um livro me deu tanto prazer a reler.
A verdade é que em que O que Diz Molero a prosa é rigorosamente vigiada e calibrada, tão fundamental quanto o inventário da infância se presta  a todas as derrapagens do sentimentalismo : não há lamechice, mas ternura, um humor terno e nunca boçal.
Nota aos jovens leitores: tem até vampiros... -- não daqueles de ecrã, que ocupam os escaparates dos híperes, mas o tenebroso "Vampiro Humano", tenebroso para o rapaz (o protagonista do romance, ou um dos protagonostas) e para os seus amigos de correrias e partida pelo Bairro.

7 de fevereiro de 2013

"A MORTE DO REI DE ESPANHA", de Carlos Daniel

Tínhamos falado – eu e o Carlos Daniel – em se fazer uma crítica ao seu livro nas páginas do blogue. Acertámos que após essa crítica o autor faria um comentário.
O resultado é o que aqui fica.  

INSCIÊNCIA E AMBIGUIDADE NO NARRADOR DE A MORTE DO REI DE ESPANHA
 
Depois de Foste tu que me escreveste de Sintra? (2005), Carlos Daniel publicou em Julho do ano passado um segundo romance com o título A Morte do Rei de Espanha. Vamos tentar uma leitura deste seu trabalho a partir da compreensão da figura do narrador, instância do romance  que intervém em três peças fundamentais do seu paratexto: a que é designada por “Narrador – apresentação” (p. 7), a transcrição da decisão do 3º Juízo da Vara Criminal de Cádis (pp. 381-387) e o posfácio (pp. 388-390).
O narrador, que não deve ser confundido com o autor empírico, é a instância em que recai a lógica da construção romanesca.  Normalmente, o leitor pode desconfiar de tudo, menos de que a história por ele contada possa não ser a história “verdadeira”. Omnisciente ou nem tanto, o narrador  é, normalmente, uma personagem de rectas intenções, confiável tanto quanto pode ser, o que não significa que não trate com simpatia diferenciada cada uma das personagens que coloca em cena. Zé Fernandes, narrador intradiegético de A Cidade e as Serras, deverá ter-nos contado a história tal como ela “aconteceu”, embora se perceba o favorecimento da sua pessoa e se saiba da admiração que nutre por Jacinto, protagonista do romance, por ele referido como “o meu Príncipe”.  O narrador de Madame Bovary parece equidistante de Charles  e  Emma, salientando a mediocridade do primeiro e a conduta imoral da segunda, mas sente-se que é impiedoso no tratamento que dispensa aos amantes da heroína e a alguns comparsas  como, por exemplo, o farmacêutico Homais.
Se o leitor aceita com naturalidade a bondade do narrador (a inversa seria razão suficiente para nem sequer pegar no livro) é porque acredita que ele é a chave de entrada nos mistérios da história que deseja conhecer.
Como diz Roland Barthes, o narrador é um “ser de papel”, uma invenção do autor, mas um ser que sabe coisas que as outras personagens não sabem e que, em princípio, está interessado em contá-las. Assim, parece invulgar que o narrador de A Morte do Rei de Espanha se disponha a perturbar a confiança do leitor através de uma declaração prévia sobre a verdade do seu relato. Leia-se o que nos diz: “Não me quero desculpar por, de vez em quando, ter revelado alguma parcialidade e um pouco de precipitação na descrição dos acontecimentos”. Para  acrescentar no parágrafo seguinte: “Mas posso garantir-vos que relatei as verdades essenciais ou, pelo menos, a interpretação que fiz delas” (p.7). Não sendo uma narrativa referencial, o romance não pode ser submetido a uma prova de verdade, pelo que aquilo que o narrador conta – e só ele sabe o que deve contar – é lei. O romance é ficção (veja-se a epígrafe retirada de Histórias Falsas de Gonçalo M. Tavares) e as tentativas de o apresentar como “história verdadeira” são próprias de períodos histórico-literários em que o género ainda não tinha conquistado a dignidade que o Romantismo e o Realismo viriam a conceder-lhe. No actual estádio dos gostos literários, os leitores amam a ficção, sendo esta entendida como condição básica da literariedade duma obra.
A disposição do narrador de A Morte do Rei de Espanha tem, porém, uma lógica interna. Carlos Daniel move as suas personagens num quadro de ambiguidade  de que participa a instância narrativa. Porque, afinal, este consciencioso narrador que diz relatar as “verdades essenciais” conta uma história que se verifica não conhecer por completo. Vejamos então que história é essa.
Pedro Olivares, cabeça de um grupo económico andaluz, é acusado de um triplo homicídio e acaba por ser condenado em juízo. Seu filho, Juan Muriel, na altura ainda criança, não acredita que o pai seja o autor desses crimes e por tal razão toma a decisão de matar o rei de Espanha, primeira figura do estado que ele vê como primeiro responsável da injustiça cometida. Note-se que esta ideia, aparentemente bizarra, é verosímil. Pela exposição obsessiva da sua imagem – nos ministérios, gabinetes da polícia e salas de tribunal –, um chefe de estado como o rei de Espanha pode muito bem ser visto pelo cidadão comum (e também por uma criança) como a figura tutelar de todos os erros e injustiças cometidos pela administração pública. São os inconvenientes da personalização do poder, do uso e abuso da imagem do rei como símbolo desse mesmo poder.
Entrado na idade adulta, Juan Muriel vai urdindo sucessivos planos para liquidar o monarca. Só que o filho do poderoso Pedro Olivares, entretanto licenciado em Direito e preparado para assumir o controle dos negócios da família, reencontra Sara Marques, a sua namorada da adolescência, e algo de novo começa e nascer em si. Juan Muriel terá percebido, talvez ao princípio de forma não muito consciente, que a vida dum rei ou o poder dum grupo económico poderão valer um ou mais crimes, mas não valerão certamente a emoção dum grande amor. Ou, se quisermos seguir outra pista, que o afecto pode e deve dirigir-se a uma pessoa digna de o receber, não se deixando ficar pelo melancólico despir e vestir do “manequim lindíssimo”, mas imóvel, com que ornamenta a sala de sua casa (capítulo 10, p. 185).
No final do romance, Juan Muriel tem o rei sob a mira da sua arma, poderia ter consumado o atentado, mas não o faz. Sara Marques, curiosamente agente de informação dos serviços secretos espanhóis, está do outro lado da rua por onde o rei passa numa visita oficial em Lisboa. Nem ela o impediu, nem ele avançou para o atentado. A vingança não se consuma, talvez por não ser compatível com o amor.
Voltando ao narrador, note-se que a narrativa encerra, conforme data que consta do livro, em 17 de Novembro de 2003, enquanto a decisão judicial que iliba Pedro Olivares do crime de triplo homicídio (repetição do julgamento face a novas provas surgidas, a segunda peça a que nos referimos) é de 26 de Abril de 2007. Vem a saber-se por essa peça que foi a sua mulher, Maria Mercedes Olivares, a mandante dos crimes depois atribuídos ao marido. Pedro Olivares seria amante de uma das vítimas, Isabella Perrugini, pelo que a matança, perpetrada com a ajuda de apaniguados, teria, além de outros motivos, razões passionais. 
Não sendo omnisciente  como poderia o narrador  intradiegético de A Morte do Rei de Espanha antecipar tão decisiva reviravolta judicial? Note-se que, embora inominado, ele é, com toda a probabilidade, um dos dois amigos do protagonista referidos no romance pelos nomes de Tiago e Clemente. Com a narrativa fechada, o recurso do narrador é anexar-lhe a cópia da nova decisão do tribunal e lançar-se num posfácio em que pretende justificar o desconhecimento dos factos. Referindo-se à mistificação organizada pela mulher de Pedro Olivares, diz: “Durante muito tempo todos fomos enganados pela sua actuação maquiavélica e uma boa parte das especulações que se seguiram, e às quais eu dei voz, revelaram-se infundadas”(p. 388). Mas não se fica por aqui o seu mea culpa. Ele mesmo declara ter participado numa mistificação: o encobrimento do verdadeiro estado mental de Pedro Olivares depois do atentado de que foi vítima na prisão. Assim se confessa: “ Não é verdade que Pedro Olivares tenha ficado diminuído, física ou mentalmente, após o atentado na prisão. A estratégia desenhada por ele, que o dava inutilizado para qualquer acto de gestão, tinha como único objectivo garantir a sua segurança. (…) Dada a proximidade deste relato com os factos ocorridos, e estando prevista a publicação deste livro muito antes de Pedro Olivares ter cumprido a sua pena, não hesitei em participar nesta mistificação, por me parecer uma boa garantia para a sua sobrevivência” (pp. 388-389).
Enfim, um narrador pouco confiável, metido num papel que o aproxima das restantes personagens do romance. Errou e mistificou, tendo assumido os seus desvios, da mesma forma que Juan Muriel parece ter admitido o erro da sua vingança e a Justiça de Cádis reconheceu e remediou a falha da instrução criminal do processo.
E isto leva-nos a considerar que, em rigor, as três peças paratextuais (assim lhes chamámos) em que o narrador intervém (duas por declaração própria e a outra por simples transcrição da decisão judicial), não funcionarão como paratexto, mas como parte integrante do texto romanesco. O autor manipula o narrador de forma a que se dê ao leitor o suspense duma história que, no final, por uma peça jurídica e algumas declarações, se revela razoavelmente diferente daquilo que o texto principal deixa entrever.
Não situaríamos este expediente narrativo nos domínios da originalidade, pois cremos que na arte do romance já tudo foi feito ou experimentado e nada surgirá que seja verdadeiramente novo. Mas lá que é curioso, é. E inusitado: um narrador insciente e ambíguo mas que, pelo menos, tem a humildade de reconhecer as suas limitações e tentar emendar os erros que cometeu. Este é um aspecto interessante do romance de Carlos Daniel, um texto articulado com outros textos a que não falta imaginação e arte de contar.
Manuel Nunes

Passado um ano sobre a conclusão deste livro a crítica do Manuel Nunes despertou-me para ele.
Vem de novo a propósito esta ideia recorrente, que muitas vezes me assalta, de que somos feitos de duas metades: aquela que nós percepcionamos e a outra, talvez mais importante, que reside naquilo que os outros vêem em nós.
Falta ainda uma "terceira metade", que refiro no livro, e que é o valor intangível das coisas.
Quando alguém mete uma mão tão competente naquilo que escrevemos (que somos?), ficamos libertos de explicações, ganhamos liberdade. Mas ao mesmo tempo sentimo-nos obrigados a olharmo-nos com mais profundidade.
Penso que o meu narrador, inconstante e imperfeito, sou eu.
Nunca quero sobrevalorizar importância de escrever um livro como se isso fosse uma grande coisa, uma tarefa maior e mais nobre do que as vidas que nos rodeiam e que contêm uma grandeza e uma miséria que nunca conseguiremos reproduzir. E se nos conseguirmos aproximarmos delas isso corresponderá sempre a um mérito e a um talento relativos, cuja verdadeira "propriedade" pertence aos donos dessas vidas, aquilo que eles "são", aquilo que fizeram de nós.
Apropriamo-nos despudoradamente de outras vidas, de outras histórias e fazemos delas uma coisa nossa:
... "e já será um privilégio se alguém se reconhecer nelas e disser "é isso que eu sou" , ainda que se não reconheça naquilo que acabou de ler"...
Como diz o Manuel já tudo foi testado e inventado. É por isso que privilegio o plano das emoções e das convicções nunca o da verdade, e da segurança que é sempre uma presunção.
Essa é a história do meu "honesto" narrador.

1- Este livro tem três pontas: o enfrentar das paixões, a procura do carácter e a prepotência(?) do acaso.
Sobre as paixões é preciso não fugir delas com o pretexto de "não sofrer". É bom usá-las, gastá-las, vivê-las para podermos sair delas mais estóicos e mais felizes. Elas não são a razão de viver mas são uma boa razão para viver. "Amar é preciso, viver não é preciso". Perseguirei sempre as paixões nos meus livros.

2- O carácter é outra ponta. Ele não corresponde a coisas formais e tangíveis como a verdade e a honestidade. É antes um acerto com os condicionalismos da nossa existência, com a definição da nossa posição no mundo, com a busca de um equilíbrio que sejamos capazes de afirmar e defender.
Contém a permeabilidade à aprendizagem, à busca de sabedoria, à consonância com o instinto, ao assumir do erro, ao confronto com as nossas forças e fraquezas.
Pedro Olivares procurava esse carácter.

3- A nossa vida constrói-se nas entrelinhas do acaso.
O nosso intelecto é uma brincadeira de crianças.
As imagens que acumulamos arrastam-nos para a ideia de alma.
Estamos no dia 1 da humanidade e temos à nossa frente um puzzle para adultos. E já descobrimos que lhe faltam peças.
Trocar um Deus ausente por um acaso omnipresente, trágico e divertido, pode ser bom negócio.

Carlos Daniel