12 de novembro de 2019

A propósito de ATÉ AO FIM

Na sessão de dia 8 de novembro, induzido pelo livro de Virgílio Ferreira, foi lido o texto (poema?) que transcrevo:

CONDENAÇÃO? MISSÃO?


Largam-me, na Terra, como farrapo em sangue,
Condenado a morrer, tão só por ter nascido.
Clamo, grito; no primeiro hausto, protesto…
E sem respeito algum, apenas sorrisos satisfeitos.
Como ousam?! Não veem quanto sofro,
Saído de uma asfixia martirizante,
Para um mundo glacial que não desejo?
Que cobardia! Que egoísmo atroz!
Não sou coisa; queria ser nada, mas sou gente.
Onde está o meu livre-arbítrio que apregoam?
Onde as leis e decretos que arquitectam a bel-prazer?
Rasguem-nos; queimem-nos; não os quero agora:
Para quê agora, se me condenaram antes?
Cínicos! Mil vezes e hediondamente cínicos.
A lei única, com justiça, era a exigência de ser ouvido…
Quando alguém decidiu que queria um filho,
Alguém me questionou se eu queria pais?
Não, sabichões, não me trapaceiem; não se enganem,
Nem me venham com a dádiva da vida,
Porque não passa de um preâmbulo fútil para a morte.
Grito de novo, e mais sorrisos: «o fedelho tem bofes!»
Ah! Se eu pudesse, partia já…
Condenado a morrer, porque condenado a viver.
Nu.

Engordam-me; criam-me; educam-me; moldam-me.
«Há de fazer-se um homem!»
Atafulham-me de regras, sabichonices, tiradas pomposas,
Ambições, roteiros e caminhos, experiências alheias,
Fitos, habilidades, competições, mil sugestões repetidas…
E quando fizeram de mim um boneco de fantocheiro,
Disseram-me que era livre e estava pronto a ganhar a vida.
Mas a vida?! Mas não foi isso que me impuseram,
Quando me expeliram, num espasmo?!
Eis o homem”! Oferecido como escravo, ao mercado, à engrenagem.
Para a vida que não quis, vendo pedaços de vida.
«Tens de comer, beber, vestir-te, abrigar-te, ganhares conforto
E… e… prevenir para a doença.»
Doença… sim, porque a vida, na bandeja dourada,
É afinal um livro corroído por traças persistentes.
Se isto é um homem.”

Terá sido este o pecado em que Adão foi engodado?
Mas os frutos de Eva são frutos da mesma morte.
Ah Deus! Ah Criador, porque misturas no homem instinto e razão?
Que faço, agora, comigo, enquanto a gadanha não aparece,
Envolta em trapos hediondos, para tentar assustar-me?
Recuso sacrificar mais nascituros ao holocausto:
Basta! Não mais reses para a matança.
E amar: amar estes tontos que se aturdem
Na vaidade de máscaras de eternidade.
Ajudar: ajudar perguntando sempre,
Implorando ao juízo o que a tontaria escamoteia.
Apontar a Terra, Água e Céu, inquirindo, duro:
Que fazeis, loucos, que vos devorais em orgia?
E se houver um só que escute e pense,
Terei deixado melhor o universo que encontrei,
E na hora em que Ela baixar a espada sobre mim,
Possa sorrir, em desafio, mas duvidando:
Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.
Depois, aniquilo-me na chama que consome e purifica.
Nu.
.

4 comentários:

  1. O Homem, a Vida, o Universo... Só interrogações. Só dúvidas...
    Mas o homem do seu poema não tem dúvidas: simplesmente não gosta do que vê nem da forma como o tratam! Lá terá as suas razões!
    Parabéns pelo poema, Zé Serra!

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