31 de janeiro de 2013

OS SAPATOS DE HERMES

Sandro Boticcelli, Alegoria da Primavera,1482, Galeria Uffizi, Florença
 
Hoje, lendo o relatório de Molero, comentado por Austin perante o espanto de Mister DeLuxe (ainda não tinha intervindo no processo o lápis regulador de John Computer do Departamento de Correcções e Acertos), lembrei-me dos sapatos voadores de Hermes, exemplarmente retratados na Alegoria da Primavera de Sandro Botticelli. Sapatos incomparáveis que o Maior Vendedor de Sapatos do Mundo, referido por Molero, não ousou citar.  Falou dos sapatos que andaram “nos pés de Proust à procura do tempo perdido”, dos que afagaram os pés de Gene Kelly em plena execução da Serenata à Chuva, dos sapatos calçados pelas bailarinas do Bolshoi, pelos evadidos das penitenciárias, pelos que costumam andar nas nuvens com as suas solas aéreas e os seus "atacadores de bruma". Dos sapatos de Hermes, nada. Não há vendedores perfeitos!


27 de janeiro de 2013

é um ponto de vista

A gente só tem uma vida, e portanto só tem uma história. Quando se precisa de contá-la é porque ela tem um erro em qualquer parte. Se estivesse certa, a gente só a vivia, e nem dela falava. Quando a gente a conta, é porque está errada. Quanto mais errada, mais falamos dela. O que é absurdo, claro, porque não se pode emendá-la.

Teolinda Gersão, «Uma orelha«, Histórias de Ver e Andar, 3.ª ed., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2002, pp. 88-89.

12 de janeiro de 2013

ciência demasiado humana

A história é feita de argumento e contra-argumento. Ou impomos as nossas ideias ou alguém no-las impõe.

Philip Roth, O Animal Moribundo, 2.ª ed.,trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006, p.96.

7 de janeiro de 2013

Dois ou três lugares-comuns a pretexto duma obra maior

     Gostaria de escrever aprofundadamente sobre este livro de Primo Levi, mas não me é possível. Não posso, por outro lado, deixar de me referir a uma das melhores obras que vieram a debate no Clube de Leitura do Museu Ferreira de Castro.
     Assim, com toda a disposição mas pouco tempo, direi a primeira banalidade: a ficção realista é sempre ultrapassada pela realidade, trate-se de um ambiente concentracionário na floresta amazónica (A Selva, de Ferreira de Castro), uma migração colectiva na América da Grande Depressão (As Vinhas da Ira, de John Steinbeck) ou uma exploração mineira em França (Germinal, de Émile Zola).
Se Isto É um Homem, de 1947, é um relato verídico de um sobrevivente, escrito ao longo de mais de um ano, tão intensamente vivo como profundamente meditado. E, por isso, o horror pôde ser descrito com objectividade, a benefício da narrativa, que não se deixa seduzir pela magnitude do tema (a vivência do próprio autor no infame campo de Auschwitz, até à libertação pelas tropas soviéticas, em Janeiro de 1944), conduzindo a narrativa porventura com uma grandiloquência que só a prejudicaria. Como Levi é um grande escritor, serve o texto com absoluta mestria, num estilo contido e recurso frequente a frases curtas, remates de períodos que nos deixam k.o.
Se Isto É um Homem: a condição simultaneamente trágica e patética do bicho-homem que conhecemos de nós próprios, mas que aqui outrém -- o autor -- revela. E, embora revelando-se, apenas o faz parcialmente, pois o autor/narrador fala de um eu que só em determinados e ocasionais momentos o é, porque do que se trata é a confirmação à outrance, e pelos meios conhecidos, do desiderato dos alemães nesta perseguição insana: a de retirar os judeus da humanidade -- não apenas exterminando-os, mas, naqueles que não eram desde logo executados, esvaziando-os dessa mesma humanidade, como que para comprovar teorias rácicas tão dementes quanto extraordinariamente estúpidas (um racista biológico, quando não for um doido varrido, será sempre um cretino, ignorante e por vezes perigoso).
    

à margem, mas a propósito

Outro lugar-comum, que por o ser não é menos verdadeiro, é o da natureza excepcionalmente maligna do feixe de ideias imbecil e mal cozinhado que foi o nacional socialismo, pior do que o estalinismo, na medida em que este, entre outras coisas, pintava o despotismo com as cores do humanismo (como embuste, talvez nada lhe leve a palma); o nazismo, pelo contrário, não ocultou a sua natureza degeneradamente maligna: a da suposta e absurda existência de uma raça superior, doutras inferiores, e até de uma categoria que estava -- nas cabeças deformadas dos --, abaixo da humanidade e que havia que exterminar, não sem  antes ser sugada, metodicamente, pelo trabalho até à exaustão, com rigor e cultura germânicos.
    

5 de janeiro de 2013

SE ISTO É UM HOMEM, Primo Levi

Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
   Considerai se isto é um homem
   Quem trabalha na lama
   Quem não conhece paz
   Quem luta por meio pão
   Quem morre por um sim ou por um não.
   Considerai se isto é uma mulher,
   Sem cabelos e sem nome
   Sem mais força para recordar
   Vazios os olhos e frio o regaço
   Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
   Ou então que desmorone a vossa casa,
   Que a doença vos entreve,
   Que os vossos filhos vos virem a cara.

Poema de Primo Levi em epígrafe no seu livro homónimo. Tradução de Simonetta Cabrita Neto.
Lido na sessão de 4 de Janeiro de 2013.

4 de janeiro de 2013

um poema de Ruy Cinatti

Quem pode impedir a Primavera
Se as árvores se vão cobrir de flores
E o homem se sentiu sorrir à Vida?

Quem pode impedir a surda guerra
Que vai nos campos deslocando as pedras
-- Mudas comparsas no ritmo das estações --
E da terra inerte ergueu milhares de lanças

Que a tremer avançam, cintilantes, para o limite
Em que a luz aquosa se derrama
Como um ar infinito onde o arado
Abre caminhos misteriosos à seiva inquieta?

Quem pode impedir a Primavera
Se estamos em Maio e uma ternura
Nos faz abrir a porta aos viandantes
E o amor se abriga em cada um dos nossos gestos?

Quem?...
Se os sonhos maus do Inverno dão lugar à Primavera?

Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa, edição de Ana Hatherly, Lisboa, Direcção-Geral do Ensino Primário, 1960, p. 70-71.

lido na sessão de 7 de Dezembro