4 de abril de 2014

desrazões

Narrativa habilmente entretecida entre passado e presente, fluindo à medida dessa Helena comedida, mas de ideias firmes, oriunda da pequena burguesia lisboeta. O tempo é o dos últimos sessenta anos, da opressão à libertação, da PIDE ao Facebook, da carência à abundância para a qual, dizem, não tínhamos possibilidades. Opressão e libertação, não apenas da cidadania, mas da própria condição da mulher portuguesa, cidadã de terceira num universo de preconceito e tabus, ontem; emancipada, em boa medida, hoje -- inclusivamente na sexualidade, de que a filha, Yolanda, é exemplo; ou, ainda, o mundo novo da net, protagonizada por Joana, em paternalista interacção com a avó.
Na noite de mediocridade e pobreza (também moral) que foi o Estado Novo, Delgado foi o fogo-fátuo que a iluminou brevemente, para desaparecer de imediato -- excepto na memória de todos quantos viveram aquele período de ilusão.
O Eléctrico 16 é igualmente um relato dos amores possíveis, os que se efectivaram, uns na carne, no espírito, outros, sabendo-se que os vários homens e mulheres que existem dentro de nós nunca se conformam com a domesticação que a (des)razão e a civilidade impõem.

Filomena Marona Beja, O Eléctrico 16, Lisboa, Divina Comédia, 2013.

2 comentários:

  1. Não diga mais. As suas palavras são de arrepiar quem passou pelos silêncios forçados e esses tabus todos. Que marcaram, e de que maneira, a escrita e o comportamento de muitos poetas. Apesar do salto, que este povo merecia, que todos nós merecíamos, preocupa-me a "sociedade da abundância", e de tudo à distância de um clik ou dum bater de pálpebras.Mas esse já é um problema da humanidade. Ouvi há pouco um dos nossos poetas dizer que estamos perante uma geração - estou a parafrasear - cómoda à qual lhe falta a experiência do passado recente para o valorizar. Creio ter perdido uma sessão muito animada a verificar pelo seu texto excelentemente construído. Já não digo que perdi um bom livro, pois posso lê-lo a qualquer momento e situar-me.

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  2. Ninguém falou, parece-me, da personagem de mestre Garção, professor do ensino técnico oficial onde os docentes não licenciados recebiam esse titulo e não o de "senhor doutor". Mestre Garção é a expressão de uma saudável transmissão do ideário das liberdades de pai para filho, da luta consequente por elas e do sofrimento inerente aos que não se dispõem a dobrar a cerviz. Nesta matéria, lamentações são (é) o que faz menos falta.
    Belo e revelador apontamento o do mealheiro da serviçal Fernanda - bilha gazcidla de plástico: as poupanças começaram por ser para um cordão de ouro, depois para um relógio e, finalmente, destinaram-se a comprar uma passagem a salto para França!

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