27 de fevereiro de 2019

ELOGIO DA INFERTILIDADE



"Simplício viu o do bigodinho aprisioná-los juntos, sem ciúme aparente, por detrás da barra de segurança, viu as estrelas principiarem a mover-se num arco perfeito e transformarem-se em missangas, viu os pés a mulher, também eles perfeitos, nas sandálias rasas. Um instante soberbo.
Custava-lhe muito subir os olhos por ela acima porque o vinho evaporava rapidamente e com ele a coragem, mas de alguma forma conseguiu fazê-lo e viu-a devolver-lhe o olhar com uma imperturbabilidade demovedora. Mirava-lhe sobretudo as costas curvas, que ele se apressou a endireitar. Depois, muito inesperadamente, ela tocou-o, sacudindo-lhe os ombros. Apesar da vergonha da caspa, ele gostou que ela o tivesse tocado. - És um homem muito estranho - disse-lhe ela, continuando as escovar-lhe para fora das costas, com a mão, qualquer hipótese de desgraça. - O destino brinca às escondidas contigo. - E Simplício, em vez de lhe responder, encomendou a alma ao criador e beijou-a. O beijo durou o resto do tempo da viagem na roda gigante, mas assim que parou Irondina afastou-se a passo largo." 

(Do conto 'Irondina', pag. 46-47)

Gostei muito do livro. Revela-nos uma escritora madura, dona de uma escrita inteligente, fluida e ritmada, hábil no uso da linguagem e na caracterização das personagens, e possuidora da arte do pormenor, que é, para mim, uma das pedras de toque da boa Literatura.

22 de fevereiro de 2019

A Batalha

Não podia faltar a referência à colaboração de Ferreira de Castro e não faltou.
A Batalha dos 100 anos

CM 1339 - Serranilha das bombas de Candedo

A estrada é serrana, erma, ventosa;
vi venir senhora obesa, torpe, andrajosa.

Vi-a venir detrás de barraca indecorosa;
cheguei-me per'ela com grã cortesia.

Cheguei-me per'ela de grã cortesia,
disse-lhe: senhora, tendes gasolina?

Disse-me: forasteiro, segui vossa via,
aqui só temos gasóleo agrícola.


Rui Lage, Estrada Nacional (2015)

18 de fevereiro de 2019

Beldemónio e Bel-Adam (e Zola)

«Dans la pleine rase, sous la nuit sans étoiles, d'une obscutité et d'une épaisseur d'encre, un homme suivait seul la grande route de Marchiennes à Montsou, dix kilomètres de pavé coupant tout droit les champs de betteraves. Émile Zola, Germinal (1885)

«Na planície rasa, sob a noite sem estrelas, de uma escuridão crassa de tinta, um homem seguia sozinho a estrada de Marchiennes a Montsou, dez quilómetros de caminho a direito, por entre campos de beterrabas.» Tradução de Beldemónio (Eduardo Barros Lobo, 1885)

«Na planície rasa, por uma noite escura, sem estrelas, um homem seguia sozinho a estrada real de Marchiennes a Montsou, dez quilómetros de caminho a direito, através os campos de beterraba.» Tradução de Bel-Adam (Severino de Carvalho, 1903)

«Devant lui, il ne voyait même pas le sol noir, et il n'avait la sensacion de l'immense horizon plat que par les souffles du vent de mars, des raffales larges comme sur une mer, glacées d'avoir balayé des lieues de marais et de terres nues.»

«Adiante do nariz não via nem sequer o chão negro; e não tinha a sensação do imenso horizonte plano senão pelos bafos do vento de Março, rajadas largas como no mar alto, glaciais de terem varrido léguas e léguas de pântanos e de terras escalvadas.» (Beldemónio)

«Não via sequer o chão negro, e do imenso horizonte chato só tinha a sensação pelos corpos rijos do vento de Março, rajadas largas como no mar, glaciais de terem varrido léguas e léguas de pântanos e terrenos escalvados.» (Bel-Adam)

«Aucune ombre d'arbre ne tachait le ciel,  le pavé se déroulait avec la rectitude d'une jetée, au milieu de l'embrun aveuglant des ténèbres.»

«Nem sombra de árvore manchava o céu; a estrada desenrolava-se com a prumada de um quebra-mar, em meio das trevas obcecantes» (Beldemónio)

«Nem sombra de árvore manchava a atmosfera; a estrada desenvolvia-se com a planeza dum quebra-mar, no meio da cerração obcecante das trevas.» (Bel-Adam) 

espreitar aqui e aqui

1 de fevereiro de 2019

MAUS, a vinheta inicial


Art Spiegelman, Maus - A História de um Sobrevivente (1980)
trad., Fernando Amorim, Lisboa, Difel, 1988, p. 4