16 de novembro de 2020


 

CAMINHO DA MANHÃ

"Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada sobre os teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta  e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor-de-prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem no pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre ma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada. Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível"

De como uma penosa ida ao mercado de uma cidade costeira e decrépita numa manhã de sol escaldante se transfigura numa belíssima peça de prosa lírica. 

FF

13 de novembro de 2020

o início de O LEOPARDO

 «Nunc et in hora mortis. Amen.» Tomasi di Lampedusa, O Leopardo [1958], tradução de Rui Cabeçadas, lisboa, Círculo de Leitores, 1987. p. 7.


9 de novembro de 2020

as aberturas de CORES, de Ruben A. (1960)

«Branca». «D. Branca morava no Porto e sofria, por vezes, de chiliques inofensivos.»

«Roxo». «Tinha os olhos roxos, de vidente.»

«Amarelo». «Findo o espectáculo, em toda assistência se notava um contentamento pouco expressivo.»

«Azul». «A transfusão de sangue tinha operado o seu milagre -- realmente o sangue azul corria-lhe nas veias em caudal abundante, até mesmo para um bom aproveitamento sanguíneo eléctrico.»

«Pardos». «Os Pardos viviam fora da cidade.»

«Vermelho». «Todas as vezes que entrava numa sala onde estava gente ele fazia-se vermelho.»

«Preto». «A morte do Preto começava na terça-feira».

«Verde». «Foi gratuitamente e por acaso que estando ontem na Ribeira das Naus a olhar para um Tejo verde me espantei a trouxe-mouxe.»

Ruben A. (1920-1975), Cores, 2.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 1989