Com edição da Âncora saiu em Abril de 2021 o volume II de Cadernos de Santiago, colectânea de
poetas da Madeira com objectivos que apontam para a sua eventual extensão a autores da região biogeográfica da
Macaronésia, constituída para além da Madeira pelos arquipélagos dos Açores,
Canárias e Cabo Verde.
JOSÉ LAURINDO LEAL DE GÓIS, nosso colega do Clube de Leitura, participa
no volume com dez poemas sob o título Águas,
Memórias.
O conjunto poemático articula-se
entre as águas do tempo e a magoada voz
da memória, desde um primeiro poema,
“Cabeça sobre a Relva” – que é uma arte
poética no vero sentido da expressão – , até “Lembras-te Brígida Amada,” em que o conteúdo
da predicação se estabelece como súmula temática do conjunto.
Rasgadas as águas do tempo, é a infância e a juventude do predicador que
afloram na matéria dos poemas. «Evocação inatingível do eterno», diz-se em
“águas, memórias”, poema que dá título à participação do poeta na colectânea.
Poemas do «tempo derramado», ou
do «tempo transfigurado», do «rumor das águas» no seu incessante labor de
descobrir o sentido último do que se perdeu – a praia, agora «virtual», despojada
do ouro das areias; a «ânfora quebrada de água cristalina»; a casa, esse «navio
de sensações» que vem «do tempo ingénuo da infância». Algumas das expressões
citadas pertencem a “Tempo derramado”, poema de uma única estrofe de cinco
versos em que irrompe a figura matricial da casa – a casa a que sempre se
volta, se não fisicamente, pela via possível da memória.
Centrando-nos no derradeiro poema – “Lembras-te Brígida Amada,” –, diríamos
que ele surpreende pela serena dolência da predicação («Embora esteja sol lá
fora eu não o sinto»), pela adjectivação inesperada («lua maneirista»), pela
estilística da contradição («sonhos de ouro e lama»), pela quase-metáfora do «tanque» e das
«trutas» que, de resto, surge igualmente no poema “Raras luzes”. Para além do
mais, é uma canção de amor na sua exacta definição. E porque falamos de amor e
de um poeta madeirense, é impossível não recordar a trágica lenda da descoberta
mítica da Ilha de Madeira – os amantes Ana d´Arfet e Roberto Machim –, tal como
é narrada na Epanáfora Amorosa III, de D. Francisco Manuel de Melo.
A poesia de hoje, como a de sempre, faz-se de sedimentos da tradição
oral e escrita, e muito do que aí está
nestes segundos Cadernos de Santiago bem o demonstra.
NOTA: JOSÉ LAURINDO LEAL DE GÓIS interveio igualmente no volume Cadernos de Santiago I (Âncora Editores,
Maio de 2016) com um conjunto de doze poemas
intitulado A Penas Poemas.