31 de agosto de 2021

o início de A AMANTE HOLANDESA

 


«--Compreende?»

J. Rentes de Carvalho, A Amante Holandesa (2003), Lisboa, Bertrand Editora - 11x17, 2016, p. 9.

7 de agosto de 2021

Revisitando TERRA MÃE

Acabei, mais uma vez, com agrado, a leitura de Terra Mãe de Fernando Faria, dando razão à profecia de Ricardo Alves, citada na contracapa desta segunda edição, revista e ampliada.
Além do que já conhecíamos, as histórias sobre os avós do autor vieram enriquecê-lo, e neles descobrimos uma comoção latente que contagia e, como todo o livro, desperta lembranças.
Se não leu, é dos livros a não perder; se leu, vá redescobrir as suas memórias e delicie-se com os novos pedaços sentidos de prosa.

4 de agosto de 2021

"OS MEUS DIAS", DE CARLOS DANIEL: OS DIAS, O TEMPO E A EXPLICAÇÃO DAS COISAS

CARLOS DANIEL publicou dois romances – Foste tu que me escreveste de Sintra? em 2005 e A Morte do Rei de Espanha em 2012 – e desde 2017  que tem vindo a afirmar-se no “obscuro ofício” da poesia com o Prémio Albano Martins (Município do Fundão) e no ano seguinte com o livro Os Meus Dias, editado por “A.23 Edições”.

Este livro estrutura-se em três secções: “os dias de hoje”, “os dias de ontem” e “os dias de amanhã”, o que de imediato nos remete para uma noção do devir poético e sentimental do predicador: tempo presente (a primeira) e abertura à memória (na segunda) e à expectativa do futuro (na terceira), qual rio, como o de Heraclito, de águas sempre mudáveis e irrepetíveis.

Se quisermos caracterizar cada uma destas partes, poderíamos dizer que "os dias de hoje" é a tentativa de explicar o real vivido; "os dias de ontem", a mesma tentativa maturada pela memória e pela consciência de uma identidade que se foi forjando num caldo de viagens e experiências de vida; e "os dias de amanhã", talvez a assunção de um desencanto, porque afinal não se pode explicar o perecível para lá da constatação daquilo que ele é e como é sentido. Diz-se no poema “60”: «Os dias são felizes nadas». E no “71”: «CANSAM-ME AS PALAVRAS DEPOIS DE PRONUNCIADAS UMA BREVIDADE HUMILHANTE EXCEPTO SE AS MARCAR COM RISCOS NA COFRAGEM DO MEU CORPO».

Noutro poema, o “63”, é dito:

 

OS CAVALOS DO TEMPO MARCHAM SOBRE AS NOSSAS FERIDAS E SOMOS

DUPLAMENTE FELIZES

 

Enfiamos os dias

Em argolas de louça

E partimos os dentes se os quisermos mastigar

 

De versos predominantemente curtos e relativamente enxutos de adjectivação, a poesia de Os Meus Dias parece simples, mas não é. Ela parte de uma tentativa de explicar as coisas, logo presente no primeiro poema:

 

Se as quiséssemos ver

– as coisas –

Como elas são

Acabariam as angústias.

 

Perpassando essa “explicação das coisas” – expressa pelo mesmo sintagma – em mais poemas do livro: “21. Perenes”, “42. Palavra incompleta”, “47. Origem”. Explicar as coisas, explicar o amor – se é que o amor é explicável –  nas suas vertentes eufórica e disfórica:

 

“26. Alvorada”

 

(…)

Foi bom pensar-te

Cozinhar para ti

Desenhar um céu

Para os meus pássaros

Quando tu vens»

 

ou

 

“40. Sara”

 

(…)

Perder-te-ei num Verão

E nos Invernos também

Ficará longe o teu corpo

Num porto de fantasias»

 

Os Meus Dias é um livro seguro de um poeta que de forma consciente ou não tem presente a lição de Cesário e Caeiro. Ou seja, fala de coisas simples e tangíveis, mas vai para além delas. Dizia Caeiro: «O que nós vemos das coisas são as coisas.» (poema XXIV de O Guardador de Rebanhos) e «(…) o único sentido oculto das coisas / É elas não terem sentido oculto nenhum,» (poema XXXIX do mesmo livo). Ora esta negação do transcendente é filosofia, mesmo que não pareça e o predicador o negue.

Também há uma certa filosofia em Os Meus Dias. E até na peculiar predicação de ordem metafísica – tendo em vista a condição humana, a fugacidade do tempo e o eterno retorno – expressa no poema “20. Brevidade”:

 

Se acreditarmos no que somos

Seremos breves

Nos discursos.

As pernas serão pilares perecíveis

Sob lintéis apoiados

Em ombros descomunais.

A cor desaparecerá em mil anos

Os frescos encher-se-ão de poeira

E dos ossos descarnados dos templos

Far-se-ão novas colunas

Outros pigmentos

Bronzes por cima

Mas nada impedirá o retorno da brevidade volátil

Esquecida a sua passagem 

 

Escrever sobre um livro de poesia é trabalho arriscado. Por várias razões e, sobretudo, por aquelas que Mário Dionísio aponta no “antiprefácio” da sua Poesia Incompleta: «Como toda a arte, a poesia não se explica. A experiência acaba por fazer-nos aceitar que não podemos explicar um quadro, um soneto, uma máscara, que temos de contentar-nos com o trabalho muito mais modesto e certamente muito mais demorado de, por meios diferentes e simultâneos, forjar condições de aproximação.»

Assim, nada mais é possível senão ensaiarmos as ditas aproximações, tentames, experiências inacabadas, e daí o nome de “ensaio”, consagrado desde Montaigne para os escritos que indagam sobre a natureza e o sentido da arte. Sempre com o desejo firme de chegar a algum ponto, mas com a consciência de se ficar muitas vezes pelo caminho.  

Estes os juízos sumários, próprios para um blogue, que me é dado fazer sobre Os Meus Dias, livro de Carlos Daniel que as Musas, certamente, não deixarão de acolher.