«--Compreende?»
Acabei, mais uma vez, com agrado, a leitura de Terra Mãe de Fernando Faria, dando razão à profecia de Ricardo Alves, citada na contracapa desta segunda edição, revista e ampliada.
Além do que já conhecíamos, as histórias sobre os avós do autor vieram enriquecê-lo, e neles descobrimos uma comoção latente que contagia e, como todo o livro, desperta lembranças.
Se não leu, é dos livros a não perder; se leu, vá redescobrir as suas memórias e delicie-se com os novos pedaços sentidos de prosa.
CARLOS DANIEL publicou
dois romances – Foste tu que me
escreveste de Sintra? em 2005 e A
Morte do Rei de Espanha em 2012 – e desde 2017 que tem vindo a afirmar-se no “obscuro
ofício” da poesia com o Prémio Albano Martins (Município do Fundão) e no ano
seguinte com o livro Os Meus Dias,
editado por “A.23 Edições”.
Este livro estrutura-se
em três secções: “os dias de hoje”, “os dias de ontem” e “os dias de amanhã”, o
que de imediato nos remete para uma noção do devir poético e sentimental do
predicador: tempo presente (a primeira) e abertura à memória (na segunda) e à expectativa
do futuro (na terceira), qual rio, como o de Heraclito, de águas sempre mudáveis
e irrepetíveis.
Se quisermos caracterizar
cada uma destas partes, poderíamos dizer que "os dias de hoje" é a tentativa
de explicar o real vivido; "os dias de ontem", a mesma tentativa maturada pela
memória e pela consciência de uma identidade que se foi forjando num caldo de
viagens e experiências de vida; e "os dias de amanhã", talvez a assunção de um
desencanto, porque afinal não se pode explicar o perecível para lá da
constatação daquilo que ele é e como é sentido. Diz-se no poema “60”: «Os dias
são felizes nadas». E no “71”: «CANSAM-ME AS PALAVRAS DEPOIS DE PRONUNCIADAS
UMA BREVIDADE HUMILHANTE EXCEPTO SE AS MARCAR COM RISCOS NA COFRAGEM DO MEU
CORPO».
Noutro poema, o “63”, é
dito:
OS CAVALOS DO TEMPO MARCHAM SOBRE AS NOSSAS FERIDAS E SOMOS
DUPLAMENTE FELIZES
Enfiamos os dias
Em argolas de louça
E partimos os dentes se os quisermos mastigar
De versos
predominantemente curtos e relativamente enxutos de adjectivação, a poesia de Os Meus Dias parece simples, mas não é. Ela
parte de uma tentativa de explicar as coisas, logo presente no primeiro poema:
Se as quiséssemos ver
– as coisas –
Como elas são
Acabariam as angústias.
Perpassando essa
“explicação das coisas” – expressa pelo mesmo sintagma – em mais poemas do
livro: “21. Perenes”, “42. Palavra incompleta”, “47. Origem”. Explicar as
coisas, explicar o amor – se é que o amor é explicável – nas suas vertentes eufórica e disfórica:
“26. Alvorada”
(…)
Foi bom pensar-te
Cozinhar para ti
Desenhar um céu
Para os meus pássaros
Quando tu vens»
ou
“40. Sara”
(…)
Perder-te-ei num Verão
E nos Invernos também
Ficará longe o teu corpo
Num porto de fantasias»
Os Meus Dias é um livro seguro de um poeta que de forma consciente ou não
tem presente a lição de Cesário e Caeiro. Ou seja, fala de coisas simples e
tangíveis, mas vai para além delas. Dizia Caeiro: «O que nós vemos das coisas
são as coisas.» (poema XXIV de O
Guardador de Rebanhos) e «(…) o único sentido oculto das coisas / É elas
não terem sentido oculto nenhum,» (poema XXXIX do mesmo livo). Ora esta negação
do transcendente é filosofia, mesmo que não pareça e o predicador o negue.
Também há uma certa filosofia
em Os Meus Dias. E até na peculiar
predicação de ordem metafísica – tendo em vista a condição humana, a fugacidade
do tempo e o eterno retorno – expressa no poema “20. Brevidade”:
Se acreditarmos no que somos
Seremos breves
Nos discursos.
As pernas serão pilares perecíveis
Sob lintéis apoiados
Em ombros descomunais.
A cor desaparecerá em mil anos
Os frescos encher-se-ão de poeira
E dos ossos descarnados dos templos
Far-se-ão novas colunas
Outros pigmentos
Bronzes por cima
Mas nada impedirá o retorno da brevidade volátil
Esquecida a sua passagem
Escrever sobre um livro
de poesia é trabalho arriscado. Por várias razões e, sobretudo, por aquelas que
Mário Dionísio aponta no “antiprefácio” da sua Poesia Incompleta: «Como toda a arte, a poesia não se explica. A
experiência acaba por fazer-nos aceitar que não podemos explicar um quadro, um
soneto, uma máscara, que temos de contentar-nos com o trabalho muito mais
modesto e certamente muito mais demorado de, por meios diferentes e
simultâneos, forjar condições de aproximação.»
Assim, nada mais é
possível senão ensaiarmos as ditas aproximações, tentames, experiências
inacabadas, e daí o nome de “ensaio”, consagrado
desde Montaigne para os escritos que indagam sobre a natureza e o sentido da
arte. Sempre com o desejo firme de chegar a algum ponto, mas com a consciência
de se ficar muitas vezes pelo caminho.
Estes os juízos sumários, próprios para um blogue, que me é dado fazer sobre Os Meus Dias, livro de Carlos Daniel que as Musas, certamente, não deixarão de acolher.