Rua da Amargura, de subtítulo “Episódios de uma comarca de província”, é
constituído por nove narrativas decorrentes de experiências do autor durante o
período em que, nos anos oitenta do século XX, desempenhou funções de delegado
do Procurador da República na comarca de Figueiró dos Vinhos.
A transposição
ficcional dá como espaço de acção Vilar de Prantos, topónimo que se ajusta ao espírito da matéria
narrada, tendo em conta a vida miserável de algumas personagens, os episódios
de violência e os suicídios cometidos nas diferentes histórias (ao todo,
quatro!), embora haja nelas, por vezes, um acento de picaresco e
trágico-cómico.
Na diversidade do
narrado, há figuras que aparecendo em várias ou todas as histórias reforçam a
unidade dos textos já por si subordinados ao denominador comum de «episódios de
comarca» : o funcionário judicial Gonçalves, o médico Dr. Teófilo Assunção, o
cabo da GNR Secundino Dias e, naturalmente, Feliciano Feijó, cujos nomes são formados com as mesmas iniciais dos nomes do autor, Fernando Faria.
Quem esperar destas narrativas
um desenvolvimento literário na tradição dos vultos da modernidade habitualmente
citados – Allan Poe, Kafka, Borges, etc. – pode desiludir-se. Fernando Faria
escreve nos moldes de um realismo focado nos estratos sociais mais
desfavorecidos, com situações e personagens típicas, mas ultrapassando o mero memorialismo
ou o testemunho chão com apontamentos de valor artístico como este do conto “A
barragem da Feitosa (Cesaltina)”:
«Afastado, um pouco, do parapeito mágico e, consequentemente,
liberto do síndrome vertiginoso, Feliciano pôde apreciar a jusante da barragem
o fundo desfiladeiro cavado pelo rio ao longo de milénios, de cujas margens
calcárias brotavam carvalhos e medronheiros, os quais, à distância, dir-se-ia
não passarem de simples arbustos. A água, terminado o cativeiro da represa e
vencida a provação das turbinas, retomara o trilho no velho leito e deslizava
já, álacre como uma escolopendra, abrindo caminhos por entre arbustos e calhaus
brancos.» p. 70.
De salientar as múltiplas
referências técnicas ao trabalho do delegado, o qual até chega a funcionar como
uma espécie de Juiz de Paz (conto “Rua da Amargura (Gertrudes)”), promovendo a
concórdia entre os esposos e tentando evitar, em relação ao filho, o abandono
escolar e o trabalho infantil. Igualmente os processos de investigação dos
pequenos crimes – o porco roubado em “Só ficaram os ossos… (Pencas)” – e
aspectos de medicina legal – cremos poder chamar-lhes assim –, nas considerações feitas
em “O homem pênsil (Serafim)” – um título perfeito! – relativamente às várias
possibilidades do «aspecto do enforcado»:
«(…) expressão serena ou terrífica?; olhos abertos ou
fechados?; língua projectada ou mantida entre os maxilares?; cabeça decaída
para o peito ou tombada para um dos lados (dependendo da posição do laço)?;
maior ou menor profundidade do sulco causado pela corda na cerviz?; presença ou
ausência de protuberância nas calças, indiciadora de erecção peniana? Havia
casos, explicados pela neurologia.» p. 86
Estamos – como desde
logo fica exposto na nota introdutória –, perante um conjunto de ficções de
pendor autobiográfico, mostrando na sua vertente testemunhal a pobreza
existente no interior- centro do país num período já marcado pela consolidação
do regime democrático. Como Feliciano Feijó de imediato verificou, não iria
encontrar naquela vilória pastores da Arcádia, nem Lianores descalças a caminho
da fonte, nem sequer moleirinhas, toc, toc, toc, sobre os seus jumentinhos,
como nos versos de Guerra Junqueiro. A realidade era outra!
Diga-se que a Igreja e
a Política– normalmente presentes em histórias de província através de
personagens determinantes como o padre e o regedor – estão ausentes deste livro. Tudo se passa no
seio do povo e dos agentes da Justiça, havendo entre estes grande lisura e
cooperação, situação talvez idílica, mas que foi a adoptada pelo autor na sua
estratégia narrativa.
Feliciano Feijó não
fala muito da sua vida pessoal, sabendo-se apenas que está familiarmente
acompanhado e que tem dois filhos de dois e quatro anos que são deixados
diariamente no infantário. Situação comovente, aquela da separação imposta aos
pequenos em cada dia de trabalho dos progenitores, já sentida em algum momento
por todos os que são pais e até, em contexto mais adiantado, quando arribam à
condição de avós.
Outro ponto digno de
nota: o facto de a cada título de história se associar o nome do protagonista,
revelador do cunho pessoal das narrativas, da dimensão humanista que as enforma.
Para além disto – e abreviando,
para não roubar muito tempo aos visitantes do blogue – , cumpre dizer que se
sente neste livro a grande alegria de narrar. Alegria antiga, vinda dos poemas
homéricos, das Mil e Uma Noites e de
obras imortais como o Decameron.
Que seria do homem sem
narrativas? Ouvir ou ler o que é narrado é um imperativo de sobrevivência. Pelo
poder da narrativa se salvou Sherazade da morte anunciada, também por via dele
resistiram Pimpinea e os seus jovens amigos e amigas ante a peste que grassou
em Florença no ano de 1348, tal como nos relata a ficção admirável de
Boccaccio.
Todos nos salvamos um
pouco quando escrevemos ou lemos ficções. E
especialmente nós, leitores, quando estamos perante livros, como este Rua da Amargura, que se lêem com
simpatia e agrado.