17 de outubro de 2021

Geografias Literárias

 Estão online, em acesso aberto ao público, os dois livros que a Ana Cristina Carvalho organizou em 2020 e 2021, início da coleção “Literatura e Ambiente”, inédita em Portugal, que “correrá” todas as regiões do país e envolve dezenas de autores e revisores de várias universidades de Portugal, Brasil e Espanha:

Amazónia – Reflexos do Lugar nas Literaturas Portuguesa e Brasileira:

https://research.unl.pt/ws/portalfiles/portal/20273278/AmzoniaReflexosLugar.pdf

Alentejo(s) – Imagens do Ambiente Natural e Humano na Literatura de Ficção:

https://research.unl.pt/ws/portalfiles/portal/33755593/Carvalho_Raposo2021ALENTEJO_S_.pdf

 

Os livros em papel podem ser adquiridos na Almedina, Bertrand, FNSC e outras livrarias de Portugal e do Brasil.


Sendo verdadeiramente um "trabalho coletivo que poderá constituir um manual de promoção de novas leituras, novos debates e novas reflexões", é uma obra de leitura e/ou de consulta indispensável e merecedora de ampla divulgação.

8 de outubro de 2021

NOTAS SIMPLES SOBRE "RUA DA AMARGURA", DE FERNANDO FARIA

Rua da Amargura, de subtítulo “Episódios de uma comarca de província”, é constituído por nove narrativas decorrentes de experiências do autor durante o período em que, nos anos oitenta do século XX, desempenhou funções de delegado do Procurador da República na comarca de Figueiró dos Vinhos.

A transposição ficcional dá como espaço de acção Vilar de Prantos, topónimo que se ajusta ao espírito da matéria narrada, tendo em conta a vida miserável de algumas personagens, os episódios de violência e os suicídios cometidos nas diferentes histórias (ao todo, quatro!), embora haja nelas, por vezes, um acento de picaresco e trágico-cómico.

Na diversidade do narrado, há figuras que aparecendo em várias ou todas as histórias reforçam a unidade dos textos já por si subordinados ao denominador comum de «episódios de comarca» : o funcionário judicial Gonçalves, o médico Dr. Teófilo Assunção, o cabo da GNR Secundino Dias e, naturalmente, Feliciano Feijó, cujos nomes são formados com as mesmas iniciais dos nomes do autor, Fernando Faria.

Quem esperar destas narrativas um desenvolvimento literário na tradição dos vultos da modernidade habitualmente citados – Allan Poe, Kafka, Borges, etc. – pode desiludir-se. Fernando Faria escreve nos moldes de um realismo focado nos estratos sociais mais desfavorecidos, com situações e personagens típicas, mas ultrapassando o mero memorialismo ou o testemunho chão com apontamentos de valor artístico como este do conto “A barragem da Feitosa (Cesaltina)”:

 

«Afastado, um pouco, do parapeito mágico e, consequentemente, liberto do síndrome vertiginoso, Feliciano pôde apreciar a jusante da barragem o fundo desfiladeiro cavado pelo rio ao longo de milénios, de cujas margens calcárias brotavam carvalhos e medronheiros, os quais, à distância, dir-se-ia não passarem de simples arbustos. A água, terminado o cativeiro da represa e vencida a provação das turbinas, retomara o trilho no velho leito e deslizava já, álacre como uma escolopendra, abrindo caminhos por entre arbustos e calhaus brancos.»  p. 70.

 

De salientar as múltiplas referências técnicas ao trabalho do delegado, o qual até chega a funcionar como uma espécie de Juiz de Paz (conto “Rua da Amargura (Gertrudes)”), promovendo a concórdia entre os esposos e tentando evitar, em relação ao filho, o abandono escolar e o trabalho infantil. Igualmente os processos de investigação dos pequenos crimes – o porco roubado em “Só ficaram os ossos… (Pencas)” – e aspectos de medicina legal – cremos poder chamar-lhes assim –, nas considerações feitas em “O homem pênsil (Serafim)” – um título perfeito! – relativamente às várias possibilidades do «aspecto do enforcado»:

 

«(…) expressão serena ou terrífica?; olhos abertos ou fechados?; língua projectada ou mantida entre os maxilares?; cabeça decaída para o peito ou tombada para um dos lados (dependendo da posição do laço)?; maior ou menor profundidade do sulco causado pela corda na cerviz?; presença ou ausência de protuberância nas calças, indiciadora de erecção peniana? Havia casos, explicados pela neurologia.» p. 86

 

Estamos – como desde logo fica exposto na nota introdutória –, perante um conjunto de ficções de pendor autobiográfico, mostrando na sua vertente testemunhal a pobreza existente no interior- centro do país num período já marcado pela consolidação do regime democrático. Como Feliciano Feijó de imediato verificou, não iria encontrar naquela vilória pastores da Arcádia, nem Lianores descalças a caminho da fonte, nem sequer moleirinhas, toc, toc, toc, sobre os seus jumentinhos, como nos versos de Guerra Junqueiro. A realidade era outra!

Diga-se que a Igreja e a Política– normalmente presentes em histórias de província através de personagens determinantes como o padre e o regedor  – estão ausentes deste livro. Tudo se passa no seio do povo e dos agentes da Justiça, havendo entre estes grande lisura e cooperação, situação talvez idílica, mas que foi a adoptada pelo autor na sua estratégia narrativa.    

Feliciano Feijó não fala muito da sua vida pessoal, sabendo-se apenas que está familiarmente acompanhado e que tem dois filhos de dois e quatro anos que são deixados diariamente no infantário. Situação comovente, aquela da separação imposta aos pequenos em cada dia de trabalho dos progenitores, já sentida em algum momento por todos os que são pais e até, em contexto mais adiantado, quando arribam à condição de avós.

Outro ponto digno de nota: o facto de a cada título de história se associar o nome do protagonista, revelador do cunho pessoal das narrativas, da dimensão humanista que as enforma.

Para além disto – e abreviando, para não roubar muito tempo aos visitantes do blogue – , cumpre dizer que se sente neste livro a grande alegria de narrar. Alegria antiga, vinda dos poemas homéricos, das Mil e Uma Noites e de obras imortais como o Decameron.

Que seria do homem sem narrativas? Ouvir ou ler o que é narrado é um imperativo de sobrevivência. Pelo poder da narrativa se salvou Sherazade da morte anunciada, também por via dele resistiram Pimpinea e os seus jovens amigos e amigas ante a peste que grassou em Florença no ano de 1348, tal como nos relata a ficção admirável de Boccaccio.  

Todos nos salvamos um pouco quando escrevemos ou lemos ficções. E  especialmente nós, leitores, quando estamos perante livros, como este Rua da Amargura, que se lêem com simpatia e agrado.