Caro José,
Chegado à página 82 do
teu livro, epístola de 31 de Julho de 2020 em que se fala de hipnotismo, de
Cristóvão Colombo, da leitura do Alcorão e de Manuel Ribeiro, esse escritor d´A Catedral
que recentemente me foi apresentado no colóquio do Museu Ferreira de
Castro, tenho condições para escrever a presente carta.
Em primeiro lugar para enviar
parabéns pelo trabalho epistolar em confinamento, eu que não soube o que isso
era porque andei sempre na rua – embora com responsabilidade –, sem ligar às
ponderosas prescrições então lançadas sobre o pessoal, os velhinhos fechados em
casa, à força, pela devoção filial, os homens novos receosos de que o vírus
lhes entrasse pelas narinas ou pelas comissuras da boca, as criancinhas aceitando as explicações dos pais de que não
se podia dar beijinhos por causa do bicho que andava à solta. Ia com uma
amiga para as margens do Tejo ou para os
montes e vales do nosso concelho de Vila Franca de Xira e depois de jantar
andava sozinho pelas ruas do bairro (passeio higiénico) enquanto nas janelas e
varandas os cómicos do costume batiam palmas frenéticas pelas dez da noite.
Quando estava em casa,
aproveitava o tempo lendo e relendo a Montanha
Mágica, de Thomas Mann, também Humilhados
e Ofendidos e Crime e Castigo, de
Dostoievski. Ainda tentei Ulisses, de
Joyce, mas a coisa não resultou. À tua semelhança, embora à minha maneira,
seguia a máxima de Blaise Pascal: “Faire le bon usage des maladies”. Apesar de
não estar doente, havia, omnipresente, uma doença a tentar dar-nos cabo do
juízo.
Agora, vejo as tuas
considerações e do teu correspondente sobre a alma. Considerações atentas, bem
elaboradas, parece-me (independentemente de estar ou não estar de acordo com
elas), até com uma bibliografia sobre a matéria (epístola de 22 de Abril de
2020), devendo dizer, pobre de mim, que nunca passei do Fédon, de Platão, da Quarta Parte do Discurso do Método, de Descartes, do Tratado das Paixões da Alma, do mesmo autor, de Montaigne, que sem
o dizer também falava da alma, e dos rudimentos da psicanálise de Freud. Posso
estar a dizer uma grande barbaridade, mas acho que era da alma que o homem
tratava lá no seu lendário consultório de Viena.
Assim, acredito na
alma, mas não na sua imortalidade, esta é a posição atingida pelo meu fraco
saber. Disse Platão no diálogo citado qualquer coisa como ser a alma prisioneira
do corpo. A minha primeira dúvida é como é possível a vileza do corpo (sensível
e visível) aprisionar o espírito (não sensível e invisível)? Disse também que
com a morte do corpo a alma ficava finalmente livre, indo para o Hades, julgo
em definitivo, na companhia dos deuses e outros homens bons (caso procedesse de
uma vida justa, evidentemente) e não como por vezes se diz por aí à espera de
entrar em novo cárcere.
O discípulo de Sócrates,
ouso pensar, poderá ter errado e ser responsável por muitos erros da filosofia
medieval e moderna, porque é mais natural aceitar que a alma morra com o corpo,
ou seja, que o prisioneiro sucumba à derrocada do seu ergástulo. Mas que sei
eu? Tudo isto é matéria rebatível, de impossível certeza, e aqui devo avançar
com a célebre asserção, mais platónica do que socrática, «só sei que nada
sei!». Ponto final, parágrafo.
Estou a apreciar a
leitura. Havia um movimento maoísta que tinha como divisa «ousar lutar, ousar
vencer». Parece-me mais justo dizer «ousar pensar, ousar escrever». Foi o que
haveis feito.
Vou continuar a ler
quando me desembaraçar de uns trabalhos em que ando metido. Agora com os
feriados, as festas e a sardinha assada, quiçá a praia, pode ser que me atrase
um pouco… Mas um dia destes volto a escrever.
Até lá, caro amigo, paz
e saúde!
M.