15 de junho de 2022

COLOMBO EM VALE DO PARAÍSO

SALVADOR DALI, A descoberta da América por Cristóvão Colombo (1959), óleo sobre tela, dim. 410x284cm., Salvador Dali Museum, St. Petersburg, Florida, USA

Nas cartas de J. A. Marcos Serra e Carlos Paiva Neves compiladas em Entrementes encontram-se várias referências a Cristóvão Colombo, aliás Cristóvão Colon, antropónimo que faz jus à tese da nacionalidade portuguesa do navegador. Fosse ele português, genovês ou catalão, a verdade é que se equivocou na sua ideia de chegar à Índia por Ocidente, possibilidade que em Portugal parecia ser aceite como não válida.

Há uns anos visitei em Vale do Paraíso (Azambuja) o “Centro de Interpretação Colombo”. Foi naquele lugar que o navegador se reuniu com D. João II ao regressar, em 1493, da sua primeira viagem à América. Há lá uma placa assinalando o local do encontro.

 Trata-se de mais um mistério do descobridor das Índias Ocidentais. Como conta Rui de Pina (Crónica de D. João II), o rei estanciava em Vale do Paraíso, por causa da peste que grassava em Lisboa, quando foi informado da entrada de Colombo no Tejo. Porque não rumou a nau do capitão a um porto espanhol? É certo que houve uma tempestade que dispersou a frota, mas isso talvez não explique tudo.

Chamado à presença do Príncipe Perfeito, ter-lhe-á dado informações que só depois daria aos Reis Católicos? De acordo com o cronista, Colombo «era de sua condição um pouco levantando» e «no recontamento de suas cousas excedia sempre os termos da verdade», pelo que o encontro com D. João II dispunha de todos os ingredientes para correr mal. Tal não sucedeu - garante Rui de Pina - por o rei ser «muito temente a Deus», triunfando a ponderação e acabando «por lhe fazer honra e muita mercê».   

Como ainda não li todo o livro, não sei se este episódio é referido nalguma carta. O colega José Serra logo nos dirá. E talvez nos possa dar a sua interpretação de mais este “mistério” associado ao misterioso Colombo, ou Colon. 


8 de junho de 2022

ENTREMENTES - CONVERSAS (DES)CONFINADAS (2)

Caro José,

Afinal ainda consigo escrever-te antes dos feriados. Sobre espiritismo, fenómenos mediúnicos, etc., transcrevo parte de uma entrada do diário de José Régio (estudava naquele tempo em Coimbra, tinha 23 anos):

«Coimbra, 4 de Novembro de 1924

 – Tenho passado noites horríveis.

Assisti (e colaborei) a algumas sessões de espiritismo, entre rapazes. O que a eles passou quase indiferente perturbou-me a mim em excesso. Invocámos numa delas o espírito de António Nobre, que disse querer dirigir-se a mim. Transcrevo algumas perguntas:


Eu – Tens alguma coisa a dizer-me?


– Só.


  Que queres tu dizer? referes-te a mim, ou a ti?

            – A ti.

– Sabes porque gosto tanto de ti?

– Só.

– Queres dizer que sou como tu?

– Sim.

(…)

– Qual é a poesia do teu livro que preferes?

– Todas.

– Qual é o poeta do teu tempo que mais amaste?

– Eu.

– Quem mora agora na Torre de Anto?

– Eu

etc.


Como se vê, são respostas dignas do meu Príncipe. Este interrogatório chocou-me até às lágrimas. Deixei de assistir a estas sessões, porque elas me perturbavam extraordinariamente:  Tive pesadelos e terrores nocturnos (…)»*

Pela minha parte, imaginava um espírito de António Nobre loquaz, no género de “Lusitânia no Bairro Latino” e “Males de Anto”, mas afinal não...

Votos de bom fim-de-semana e até à próxima.

M.

 * JOSÉ RÉGIO, Páginas do Diário Íntimo, Obra Completa, Lisboa, IN-CM, 2004.

 

5 de junho de 2022

ENTREMENTES - CONVERSAS (DES)CONFINADAS (1)


Caro José,

Chegado à página 82 do teu livro, epístola de 31 de Julho de 2020 em que se fala de hipnotismo, de Cristóvão Colombo, da leitura do Alcorão e de Manuel Ribeiro, esse escritor d´A Catedral que recentemente me foi apresentado no colóquio do Museu Ferreira de Castro, tenho condições para escrever a presente carta.

Em primeiro lugar para enviar parabéns pelo trabalho epistolar em confinamento, eu que não soube o que isso era porque andei sempre na rua – embora com responsabilidade –, sem ligar às ponderosas prescrições então lançadas sobre o pessoal, os velhinhos fechados em casa, à força, pela devoção filial, os homens novos receosos de que o vírus lhes entrasse pelas narinas ou pelas comissuras da boca, as criancinhas  aceitando as explicações dos pais de que não se podia dar beijinhos por causa do bicho que andava à solta. Ia com uma amiga  para as margens do Tejo ou para os montes e vales do nosso concelho de Vila Franca de Xira e depois de jantar andava sozinho pelas ruas do bairro (passeio higiénico) enquanto nas janelas e varandas os cómicos do costume batiam palmas frenéticas pelas dez da noite.

Quando estava em casa, aproveitava o tempo lendo e relendo a Montanha Mágica, de Thomas Mann, também Humilhados e Ofendidos e Crime e Castigo, de Dostoievski. Ainda tentei Ulisses, de Joyce, mas a coisa não resultou. À tua semelhança, embora à minha maneira, seguia a máxima de Blaise Pascal: “Faire le bon usage des maladies”. Apesar de não estar doente, havia, omnipresente, uma doença a tentar dar-nos cabo do juízo.

Agora, vejo as tuas considerações e do teu correspondente sobre a alma. Considerações atentas, bem elaboradas, parece-me (independentemente de estar ou não estar de acordo com elas), até com uma bibliografia sobre a matéria (epístola de 22 de Abril de 2020), devendo dizer, pobre de mim, que nunca passei do Fédon, de Platão, da Quarta Parte do Discurso do Método, de Descartes, do Tratado das Paixões da Alma, do mesmo autor, de Montaigne, que sem o dizer também falava da alma, e dos rudimentos da psicanálise de Freud. Posso estar a dizer uma grande barbaridade, mas acho que era da alma que o homem tratava lá no seu lendário consultório de Viena.  

Assim, acredito na alma, mas não na sua imortalidade, esta é a posição atingida pelo meu fraco saber. Disse Platão no diálogo citado qualquer coisa como ser a alma prisioneira do corpo. A minha primeira dúvida é como é possível a vileza do corpo (sensível e visível) aprisionar o espírito (não sensível e invisível)? Disse também que com a morte do corpo a alma ficava finalmente livre, indo para o Hades, julgo em definitivo, na companhia dos deuses e outros homens bons (caso procedesse de uma vida justa, evidentemente) e não como por vezes se diz por aí à espera de entrar em novo cárcere.

O discípulo de Sócrates, ouso pensar, poderá ter errado e ser responsável por muitos erros da filosofia medieval e moderna, porque é mais natural aceitar que a alma morra com o corpo, ou seja, que o prisioneiro sucumba à derrocada do seu ergástulo. Mas que sei eu? Tudo isto é matéria rebatível, de impossível certeza, e aqui devo avançar com a célebre asserção, mais platónica do que socrática, «só sei que nada sei!». Ponto final, parágrafo.

Estou a apreciar a leitura. Havia um movimento maoísta que tinha como divisa «ousar lutar, ousar vencer». Parece-me mais justo dizer «ousar pensar, ousar escrever». Foi o que haveis feito.

Vou continuar a ler quando me desembaraçar de uns trabalhos em que ando metido. Agora com os feriados, as festas e a sardinha assada, quiçá a praia, pode ser que me atrase um pouco… Mas um dia destes volto a escrever.

Até lá, caro amigo, paz e saúde!

M.


2 de junho de 2022

OLHEM QUE CINCO!

Fotografia tirada em 1884 no Palácio de Cristal. E que dizer daquele quase juvenil da direita, sem as barbas prodigiosas com que teria assustado todos os espectros da Casa de Bragança se eles lhe tivessem aparecido como apareceram ao anafado Rei? Estava então à beira de publicar em livro o seu poema "O Melro", lição da Natureza a um abade ocioso:

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
E arremessando a bíblia, o velho abade
Murmurou:
                    «Há mais fé e  há mais verdade ,
            Há mais Deus com certeza
Nos cardos secos dum rochedo nu
Que nessa bíblia antiga... Ó Natureza,
A única bíblia verdadeira és tu!...»

(Guerra Junqueiro, A Velhice do Padre Eterno)