29 de maio de 2024

25 poemas passados para português - #24


SE


Se podes conservar o teu bom senso e a calma
No mundo a delirar para quem o louco és tu...

Se podes crer em ti com toda a força de alma
Quando ninguém te crê... Se vais faminto e nu,

Trilhando sem revolta um rumo solitário...
Se à torva intolerância, à negra incompreensão,
Tu podes responder subindo o teu calvário
Com lágrimas de amor e bênçãos de perdão...

Se podes dizer bem de quem te calunia...
Se dás ternura em troca aos que te dão rancor
(Mas sem a afectação de um santo que oficia
Nem pretensões de sábio a dar lições de amor)...

Se podes esperar sem fatigar a esperança...
Sonhar, mas conservar-te acima do teu sonho...
Fazer do pensamento um arco de aliança,
Entre o clarão do inferno e a luz do céu risonho...

Se podes encarar com indiferença igual
O triunfo e a derrota, eternos impostores...
Se podes ver o bem oculto em todo o mal
E resignar sorrindo o amor dos teus amores...

Se podes resistir à raiva e à vergonha
De ver envenenar as frases que disseste
E que um velhaco emprega eivadas de peçonha
Com falsas intenções que tu jamais lhes deste...

Se podes ver por terra as obras que fizeste,
Vaiadas por malsins, desorientando o povo,
E sem dizeres palavra, e sem um termo agreste,
Voltares ao princípio a construir de novo...

Se puderes obrigar o coração e os músculos
A renovar um esforço há muito vacilante,
Quando no teu corpo, já afogado em crepúsculos,
Só exista a vontade a comandar avante...

Se vivendo entre o povo és virtuoso e nobre...
Se vivendo entre os reis, conservas a humildade...
Se inimigo ou amigo, o poderoso e o pobre
São iguais para ti à luz da eternidade...

Se quem conta contigo encontra mais que a conta...
Se podes empregar os sessenta segundos
Do minuto que passa em obra de tal monta
Que o minuto se espraie em séculos fecundos...

Então, ó ser sublime, o mundo inteiro é teu!
Já dominaste os reis, os tempos, os espaços!...
Mas, ainda para além, um novo sol rompeu,
Abrindo o infinito ao rumo dos teus passos.

Pairando numa esfera acima deste plano,
Sem receares jamais que os erros te retomem,
Quando já nada houver em ti que seja humano,
Alegra-te, meu filho, então serás um homem!


Rudyard Kipling (Malabar Hill, Bombaím, 1965 - Londres, 1936),
in Rewards and Fairies (1910)
verão de Félix Bermudes (Porto, 1874 - Lisboa, 1960)

28 de maio de 2024

101 poemas portugueses - #39


 INCONSTÂNCIA

A Aquilino Ribeiro


Tenho, às vezes, vontade de deixar-te.
E tenho, às vezes, medo de perder-te.
Não sei, às vezes, se hei-de abandonar-te,
Não sei, às vezes, se hei-de mais prender-te.

Por mais que queira, às vezes, esquecer-te,
Por mais que entenda, às vezes, ignorar-te,
Sinto o desejo enorme só de ter-te
Junto de mim na ânsia de abraçar-te.

Por mais que feche os olhos p'ra não ver-te
Ainda te encontro mais por toda a parte,
Tenha embora vontade de esconder-te.

Vivo nesta tortura de buscar-te,
Nesta inconstância atroz de não querer-te,
-- Meu fugidio sonho da minha Arte.

Alexandre de Córdova (Santo Tirso, 1896-1969)
Primavera Voluptuosa (1953)

21 de maio de 2024

25 poemas passados para português - #23


ÁRVORE

Era uma árvore sem nome que à noite
não em todas as noites mas em algumas
se tornava quase luminescente
como um tic vegetal da sua alegria

mas as corujas e os morcegos
as corujinhas e os mochos
ficavam tão perplexos
que desapareciam

e no entanto ela era assim
porque aquela árvore albergava
um sentimento em cada folha
e a luminescencia apenas era
a excitaçao do seu coração

numa noite de tempestade
um raio abrigou-se na sua copa
mas esta não apagou as suas luzes
e o raio desfez-se

há que ter em atenção
que em cada amanhecer
a árvore apagava-se
isto é dormia

às vezes despertava
cheia de passarinhos
mas não era a mesma coisa


Mario Benedetti (Paso de los Toros, 1920 - Montevidéu, 2009),
El Mundo que Respiro (2001)
versão de Ricardo António Alves



ÁRBOL

Era un árbol sin nombre que en las noches
no en todas las noches sino algunas
se volvía casi fosforescente
como un tic vegetal de su alegría

pero las lechuzas y los murciélagos
y los mochuelos y los búhos
quedaban tan perplejos
que se desvanecían

y sin embargo ello era así
porque aquel árbol albergaba
un sentimiento en cada hoja
y la fosforescencia apenas era
el pavoneo de su corazón

en una noche de tormenta
un rayo se abrigó en su copa
pero ésta no apagó sus luces
y el raio se hizo nada

hay que considerar
que en cada amanecer
el árbol se apagaba
es decir se dormía

a veces despertaba
lleno de pajaritos
pero no era lo mismo


11 de maio de 2024

101 poemas portugueses - #38


TRÊS PERSONAGENS


Em pleno inverno e no calor de Agosto, 
vejo-os passar, na tarde loira ou baça...
Ela, tem distinção, tem certa graça,
certa elegância calma, de bom gosto.

Leva um livro amarelo. Bem disposto,
um galgo inglês, cheio de nervo e raça,
acompanha-a. Sei sempre a que horas passa,
grave, serena, esfíngica; -- ao Sol posto.

Quem é? Quem são?... Nem lhes conheço o nome!
O acaso, por acaso, destinou-me
a vê-los passar juntos, todos três...

Donde vêm? Onde vão? -- Quem o adivinha?
O que eu sei, é que passam à tardinha
ela, o livro amarelo, e o galgo inglês...

Virgínia Vitorino (Alcobaça, 1895 - Lisboa, 1967),
Renúncia (1926)

4 de maio de 2024

101 poemas portugueses - #37.


A NOITE DESCE

Como pálpebras roxas que tombassem
Sobre uns olhos castanhos, carinhosos,
A noite desce... Ah! doces mãos piedosas
Que os meus olhos tristíssimos fechassem!

Assim mãos de bondade me embalassem!
Assim me adormecessem, caridosas,
E em braçadas de lírios e mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!

A noite em sombra e fumo se desfaz...
Perfume de baunilha ou de lilás,
A noite põe-me embriagada, louca!

E a noite vai descendo, muda e calma...
Meu doce Amor, tu beijas a minh'alma
Beijando nesta hora a minha boca!



Florbela Espanca (Vila Viçosa, 1894 - Matosinhos, 1930)
Poesia da Noite, selecção e prefácio de Urbano Tavares Rodrigues


(lido numa sessão de 2011)

3 de maio de 2024

o início de ETERNIDADE

«Manhã alta, toda vestida de azul, com folhos brancos que o mar tecia e esfarrapava ao sabor da ondulação, a sombra escortinada na linha do horizonte ia crescendo e definindo-se em caprichoso recorte.» 

Ferreira de Castro, Eternidade (1933), 14.ª ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1989, p. 21.

2 de maio de 2024

1º DE MAIO COM FERREIRA DE CASTRO

 

1 DE MAIO DE 1974: Ferreira de Castro participa na manifestação do 1º de Maio em Lisboa.
A pedido do cineasta Glauber Rocha, o romancista deixa uma mensagem:
“A mim ainda me parece inverosímil que, após quase 50 anos de opressão e de falta de liberdade, o povo português se tenha libertado dessa mesma opressão e que sinta hoje, sinta nos últimos dias, uma alegria que é verdadeiramente indescritível! E aproveito a ocasião para saudar, no Brasil, os brasileiros, os meus camaradas brasileiros, aos quais estou profundamente ligado pelo coração e pelo espírito!” [Fonte: CENTRO DE ESTUDOS FERREIRA DE CASTRO].

Pela nossa parte, fomos ontem em romagem à sepultura do Mestre na Serra de Sintra:



O ar estava frio, mas alegre. Os turistas abundavam, descendo e subindo as veredas da Serra. Foi bom.