27 de agosto de 2024

LIRA MAIOR (5)

 

HORICLOR

 

Caem das gargantas negras as plumas

com que Horiclor se enfeita e se perfuma.

O tempo ondula a sua face lisa

em que pousam os pássaros anónimos.

Ele lava os presságios e o motor da aurora

e desafia o vazio com um arco-íris de nomes.

A partitura do vento, dos eclipses e distâncias

é um jogo em suas mãos de embriagado aeronauta.

Quando o silêncio da terra é absoluto

desenha ovelhas ou apenas uma árvore.

Outras vezes faz tremular uma bandeira de miséria

e sonho. Ele sabe onde se esconde a flor que nasce

do sexo das sereias e conhece a eloquência das magnólias.

Às vezes deseja que sopre um vento desesperado e se apaguem as estrelas

e um túmulo se abra com uma onda no meio.

O seu pensamento é inundado por rios subterrâneos

e as suas palavras brotam de uma pequena lâmpada situada no horizonte.

Então o vento abre os olhos e as torres incendeiam-se.

 

ANTÓNIO RAMOS ROSA – Nomes de Ninguém (1997)


24 de agosto de 2024

LIRA MAIOR (4)

 

A vida foi inteira nesse segundo dia

quando a tarde veio em âmbar

sobre os corpos e as paredes,

a amortecer o tempo,

a distrair a morte.

 

Tu foste planura e estuário

e os pássaros buscaram abrigo

no halo azul dos teus gestos.

 

O teu corpo foi mapa de arquipélagos

e nele dispus medos e abismos,

noites, naufrágios.

 

         O cansaço foi cálido como o barro

           de que deus te fez no segundo dia,

           depois de separar águas e céus.

 

JOSÉ RUI TEIXEIRA - Aware (2024)


23 de agosto de 2024

LIRA MAIOR (3)

 

AMOR

 

Amor, amor, amor, como não amam

os que de amor o amor de amar não sabem,

como não amam se de amor não pensam

os que de amar o amor de amar não gozam.

Amor, amor, nenhum amor, nenhum

em vez do sempre amar que o gesto prende

o olhar ao corpo que perpassa amante

e não será de amor se outro não for

que novamente passe como amor que é novo.

Não se ama o que se tem nem se deseja

o que não temos nesse amor que amamos,

mas só amamos quando amamos o acto

em que de amor o amor de amar se cumpre.

Amor, amor, nem antes, nem depois,

amor que não possui, amor que não se dá,

amor que dura apenas sem palavras tudo

o que no sexo é o sexo só por si amado.

Amor de amor de amar de amor tranquilamente

o oleoso repetir das carnes que se roçam

até ao instante em que paradas tremem

de ansioso terminar o amor que recomeça.

Amor, amor, amor, como não amam

os que de amar o amor de amar o amor não amam.

 

JORGE DE SENA - Peregrinatio ad loca infecta (1969)


17 de agosto de 2024

LIRA MAIOR (2)

 

OS QUE SE AMAM

 

Os que se amam nem sempre estão juntos. Sabemos

que é assim. Os passos que dão seguem um caminho

ignorado para quem os surpreenda a noite

ou o límpido nevoeiro de um pressentimento

que neles existe. Às vezes, falamos acerca de Romeu

porque nos esquecemos de Julieta, mas sempre ambos existiram

nas suas sombras que eram afinal só uma. As mãos

ficaram estendidas e o ar tornou-se mais leve

para o respirarem dentro de uma flor. Não podia ser

de maneira diferente. Mas perguntamos agora se é o mesmo túmulo

que os deixa separados. O tempo passa e depois chega

o esquecimento. «Meu amor», e são estas as duas palavras

que foram pronunciadas. Qualquer nuvem sobre uma casa em ruínas

fica maior. É aí que Eva espera por Adão, Heloísa por Abelardo, Charlotte

por Werther. Elas entreabrem os seus olhos para dizer

«o que murmuraste?» Havemos de escutar estas palavras

tão simples como a água ao correr entre os dedos, único

anel que lhes foi dado para sempre. E a mesma pergunta

é a nós que se dirige, até se compreender que somos

o outro, alguém que aparece para trazer consigo

uma esperança possível, esta ternura que foi mantida

em segredo e também um pouco de ciúme: não passamos

nós tantas noites com Charlotte, Eva, Julieta ou Heloísa

como se fôssemos tocados por um sereno desgosto

ao despertar agora no jardim que há numa página

que se desfolha? À sua volta o amor deixou espalhadas

estas manchas de fecundidade, o leve

sémen que principia a descer e é capas de decifrar

o segredo de um encontro esperado há muito. Assim é o corpo

de todos aqueles que amam. A morte veste-os.

 

FERNANDO GUIMARÃES - Junto à Pedra (2018)


16 de agosto de 2024

LIRA MAIOR (1)

 

RAPARIGA DAS TRANÇAS

 

Rapariga

bonita

bem sei o que esperas

e as esperanças

que pões

nos laços das tranças

 

Bem sei porque ris

sem se ver porquê

nem para quem nem para quê

Bem sei porque enfuna

a tua saia transparente

e porque se solta

a música e o mar

do balouçar

das tuas tranças

 

Andando danças

andando danças

andando danças

 

E pensar rapariga nas ciladas

que te estão há tanto tempo preparadas

na vida sem vida

que te hão-de querer

 

Não és tu quem faz contas

por trás da janela

nem tu que te julgas

um livro de cheques

(ainda não

ainda não)

 

Ah as saias pesadas para a terra

e os braços

sem vigor

Ah o rosto cortado de cansaços

Ah o enjoo dessa palavra amor

Ah o sono logo em cima do jantar

e a bicha do carvão a bicha do carvão

a bicha do carvão

 

Rapariga

bonita

de fita encarnada

hão-de algemar-te

os lábios

os seios

a música e o mar

de braços atados

 

Oh rapariga

de fita amarela

dá-te ao minuto

o sol é bom

salta a janela

que nunca mais este minuto voltará

 

Rapariga bonita

que andando danças

rapariga bonita

bonita bonita

de laços nas tranças

 

MÁRIO DIONÍSIO – As Solicitações e Emboscadas (1945)