10 de janeiro de 2017

TERRA MÃE, de Fernando Faria

Sou da infância como se é de um país -- escreveu o grande Saint-Exupéry, que cito de memória. Um país distante, de que permanecem, nos mais afortunados, as reminiscências da descoberta da vida e do mundo, na presença rediviva dos que nos foram (nos são) queridos.
Este Terra Mãe, que traz o subtítulo Crónicas da Idade Menor, faz-nos participar dessa revelação jubilosa dos primeiros anos, ainda no conforto da segurança (e da disciplina) familiar. É, no conjunto, um relato na primeira pessoa da vida aldeã de lavradores humildes de Maceira, Leiria, saborosíssimos quadros contados com sabedoria,  aprumo  e instinto literários. E refiro-me expressamente a esse aprumo e a esse instinto, pois trata-se de um livro inicial de alguém que, por profissão, lidou durante anos com a linguagem árida dos códigos do Direito. Nada dessa sintaxe obscura nem dessa semântica labiríntica perpassa por aqui; antes um fio de água pura, uma singeleza que não é simplória ou desprovida de humor. Das pequenas transgressões aos medos infantis, umas e outros tomando proporções gigantescas ao palmo-e-meio que o narrador nos deu a conhecer em pouco mais de centena e meia de páginas; o fascínio diante dos oficiais de vários ofícios, de práticas ancestrais (a aldeia portuguesa da década de 1950 permanece, em muitas situações, num contexto de Antigo Regime [não confundir, por favor, com alusões ao Estado Novo!...]); as evocações impressivas da marginalidade, assumida ou forçada, dos pedintes, dos bêbados, dos deficientes mentais; o gozo das prendas da Natureza, a estesia dum nascer do Sol, o impacte do primeiro avistamento do mar, o universo bem delimitado da floresta, com os seus segredos e zonas de sombra; o convívio com pais, avós e demais família que connosco é partilhado. 
Dum ponto de vista mais utilitário, registe-se ainda a fonte que um livro como este é para quem, historiador ou antropólogo, se debruce sobre a vida rural duma aldeia da Estremadura em meados do século XX, facilitado pelo extremo rigor com que são mencionados artefactos, práticas culturais e espécimes animais e vegetais, na sua relação com o homem e no uso que deles se faz, ou fazia.
Crónicas de outro mundo, outro tempo, outro país, escritas por quem, sendo deste mundo, tempo e país logrará, disso estou certo, projectá-los no futuro, já que um livro como este tem um destino marcado, invejável destino: ser periodicamente revisitado ao longo dos tempos, como repositório de património imaterial da comunidade de que se originou.
(também aqui)

3 comentários:

  1. Ricardo:
    Não podia deixar de lhe agradecer, de novo.
    Como já lhe disse, ainda que talvez de outra forma, acho essa recensão demasiado generosa. Honestamente. A mim, far-me-ia ir a correr às livrarias procurar o livrito...
    E é, ela própria, uma peça de quilate (como, aliás, é apanágio de quanto o autor escreve)!
    Bem-haja!
    Bem-haja, também, o querido amigo Zé Serra, um glutão insaciável de boa literatura, circunstância mais que suficiente para me deixar envaidecido.

    Abraço!

    FF

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    1. Caro Fernando,

      Estive a reler, em diagonal o textículo, e mantenho tudo. Como sabe, tenho-me por leitor exigente, e considero este o seu melhor livro, diferente, aliás, quanto ao género, dos outros dois (e o salto que dá do segundo para o terceiro é muito grande).
      Não duvide, caro amigo, que os leirienses (para não falar dos 'asseceirenses'...) do século XXII e seguintes o vão ler, precisamente por aquilo que o livro também é: o testemunho de um tempo, fundamental para historiadores, antropólogos -- e espero, igualmente, que para os leitores em geral.

      Ab.

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