Um
texto muito sensorial e de grande mestria, como é apanágio do
autor, cujo centenário do nascimento se celebra este mês (26 de Maio).
S.
João d'Arga --
28 de Agosto.
Há
anos tinha lá uma promessa. Mais cedo, mais tarde,
obrigava-me a meter pela serra acima de avanço até àqueles
penhascos, irmãos do outro mundo onde pousou no encanto a capela de
S. João. A festa em honra do santo de Arga é uma coisa única no
país -- e é assim por muitas e variadas razões.
Este
ano aventurei-me à minha promessa. Preparei o
breviário. Um dia passado na montanha, noite alerta, regresso pela
madrugada.
Vai-se
de automóvel até S. Lourenço da Montaria, depois à
pata. Daí à capela, na arga de S. João, são bem umas três horas
de subidas em caminho -- é uma aventura paleolítica onde todos os
minhotos vão levar o sal das promessas, ou o amor dos corações.
Estão na Idade Média. Todos os anos o 28 de Agosto é corrido a
carpir e a borgar naquelas alturas. Há missa procissão joelhão
foguetório festeiros mordomos cidra barracas de comes comunhão
vinho a rodos sermão em grande estilo. É uma romaria servida em
pele e osso, sem ingredientes de V. Ex.ª ou fidalguias de Dom. Do
Alto Minho vai tudo -- saem de casa à noitinha para lá estarem de
madrugada. Para muitos são nove horas a pé por mau caminho, se
pensarmos que a romaria é bem popular na margem esquerda do Lima
-- em Mazarefes, Deocriste, Subportela, Vila Franca, Barroselas e nos
contrafortes da serra de Arga, na parte ao norte que vai de Caminha a
Perdes de Coura. Pedra a seguir a pedra.
À
saída de S.
Lourenço é
uma subida enviesada entre pinheiros cabeça marrada aos pés,
romeiros vestidos de animais, patas são quatro, sobe-se de gatas,
voltar atrás é perder o equilíbrio. A cada aberta da Natureza
chapa-se um clarão entre dois cocurutos de pinheiro; na sombra, uma
mulher encostada ao pipote oferece cidra. Os sequiosos bebem. A cidra
fervida, fresca, amacia as goelas emperradas. Sobe-se mais, ainda
completamente embrulhado em pinheiros, raro se descortina um palmo à
rota de estibordo ou bombordo, é tudo caruma, mato e uma fileira de
formigas humana: para cima e para baixo, ritmo silencioso de cruzar
padre-nosso de olhos
magros,
rezando mais ave-marias. O extraordinário é que está sempre gente
a subir e a descer qualquer que seja a hora, desde o dia 28 pela
madrugada do dia 29 já noite fora. Sobe-se sempre, parece uma
humanidade transportada em bandos de funicular nacional. O
momento está a chegar, fora dessas montanhas de pinheiro espesso
começa o planalto de pedras, pedras desde o princípio do mundo,
pedras poemas, sabendo que são pedras, pedras sim. -- A luz
está cinzenta, se estivesse céu limpo era um esfolar de corpos
correndo riachos de suor. Chega-se ao fim do planalto e vê-se a
Ribeira Lima, o alto da cidade de Viana, descortina-se Âncora com o
pinhal da Gelfa de sentinela alerta. É um espectáculo cinzento
ao pé, quase verde nos longes. Começa agora nova subida por melhor
caminho, a cabeça vai baixa, o pensamento desloca-se para S. João
de Arga -- as formigas sobem e descem em loucura penitente --, o
nosso rancho aumenta-se de uma Tia
de S. Salvador da Torre e de três pequenas do Orbacém acompanhadas
do maior patusco das redondezas. Sobe-se, aqui uma fonte. De água
ficamos satisfeitos como diz a boa da Tia,
que traz promessa anual ao santo -- e
descalça é que é -- mostrar
ao Santo que se tem um respeito descalçado, nada de familiaridades.
O Santo é bom para os aleijões, pernas, cabeças, costelas partidas
de bichos e de homens -- é Santo grande de efeitos milagrosos
osteológicos. Melhor que todos os endireitas da região e mais sábio
de que o da Esperança. Cá vamos subindo, sempre subindo, subindo de
cabeça baixa olhando para esta pré-história tal qual. Chegamos
finalmente ao alto depois de lutas e contracurvas perigosas sem
resguardos. Todo o trânsito se respeita, é um trânsito religioso,
penitente, de boa promessa. Cheiro o ar, abro mais as narinas viradas
ao vento predominante, está leve e sem mais nada, é um ar cheio de
ar onde o puro se encontra com o mais puro, vejo transparências de
beliscaduras a respirarem-se melhor. O ar está o que é, e a
montanha agasalha-se de mantos diáfanos de ar. Tudo é pureza
transparente, pedras de musgo, pedras limpas, pedras cor de
sardanisca.
Passam
formigas de cestos brancos à cabeça -- merendas de
frango e cabrito. Sobe-se mais, cá vai o nosso rancho acariciado
pelo transporte colectivo do 29. É o 29 quem leva parte da
carga. É um génio o 29. Coveiro enterrador da Junta de Freguesia de
Carreço com falta de mortos lança mão dos vivos. Faz tudo, é um
destes seres privilegiados como só existem em Portugal. Tem
duas vacas, quatro borregas um cão e três gatos para comerem os
ratos que se alimentam no curral. Trabalha como mouro desde a noite
antes do dia até à noite depois do dia. Faz tudo, deita a mão a
tudo, atende às crias, cuida das vacas paridas, oferece assistência.
Quando tira o sargaço do mar, ninguém lhe leva a palma. No entanto,
dizem os entendidos, a enterrar é que ele é mestre, faz com uma
arte e rapidez que a freguesia antes de orar os responsos já está
com a alma encomendada para o próximo. Venha outro morto se quer
aproveitar, ele está com as mãos na massa. É das melhores almas
que se habitam no Norte de Portugal. Não conheço ninguém que
trabalha a enxada, o redenho e a pá dos mortos com tanta perícia,
dureza e seriedade. Pedra acarinhando pedra.
Puxa
mais para cima! Já
levamos duas horas bem andadas de subida íngreme. Dá-me a impressão
de que tenho o sangue todo nos pés. -- À volta de nós a serra de
rochas, pedras, pedras a dormitar, não chegam a senti a comichão
que lhe fazem estas formigas escarafunchosas. Passam mais ranchos --
estes minhotos são como gatos de sete foles. Trabalham sempre, quase
não dormem no Verão e borgueiam quando os santos fazem anos. Vão a
dançar e a cantar como quem chupa caramelo. Eu, de língua de fora,
pareço um perdigueiro depois de ter deixado as perdizes voar para
outra fraga, lá nos fundos. Ainda se sobe mais, este caminho não é
para funcionários públicos nem para comerciantes estabelecidos em
casas de bancos ou de latoaria, menos para ministros -- é um caminho
de poetas, caminhos de pedras. Como esta gente é poeta! -- Há uma
alegria própria no cantar, aberta, convidativa ao amor, granito
polido pelos versos. Continua tudo cinzento, excepto as formigas e
uns verdes humidados por nova fonte. Pedregulhos ancestrais escondem
o resto das formigas e outros mistérios mais íntimos de promessa. A
Tia conta a tragédia a toda a gente, transporta tragédia de arromba
-- e às carradas. Tinha três filhos e já não tem nenhum -- fiquei
com o gato, e vendo sardinha, pronto. A
vida resumira-se para ela. Acabou. Cá vai connosco. Há uma mulher
que passa e lhe pergunta se eu sou filho dela -- tem
a sua cara, isso é que é -- e
ela de lágrimas nos olhos responde: -- Os
meus já lá estão -- eu não conheço este filho. «-- Olhe que ele
tem as suas sobrancelhas! E a penca é por uma peninha».
«Tatá.
Adeus cá vamos, o
santo está à nossa espera e eu assim não me arrumo».
Outro planalto, outra subida mais estreita, a serra, mais aberto o
céu e a língua mais saída, mais baixa. Ali não se depara com dez
reis de coisa: só o isolamento. Andamos, caminhamos sempre em frente
de batida rápida no córrego semidiabo, semideus. Tudo no mesmo
ritmo, tudo a palmear. Chegámos ao alto, alto que fica encostado ao
céu -- céu e as narinas abriram-se entusiasmadas pelo bufar. Tudo
virgem. Agora, daqui ao S. João, é uma boa meia hora a descer e lá
daquele fundo já se vê a capela. Assim foi, passados cinco ou dez
minutos, pela garganta do desfiladeiro, à direita, a meia altura,
João de Arga estava em festa. As primeiras árvores da montanha --
oliveiras, carvalhos de uns quinhentos anos e uma grande muralha que
faz pensar que a capela deve estar entremuros. À nossa volta mais
formigas, no ar o fumo dos petardos a anunciarem a saída da
procissão. Pedras só pedras.
A
genuína promessa é descer de joelhos, desde esta primeira
rocha de onde se vê a capela, até lá baixo ao altar onde está S.
João. São oito a dez horas de joelhos em sangue. Passamos por
várias promessas em funda penitência, de pernas e joelhos
massacrados. É de meter medo o poder de sacrifício da fé. Se
houvesse caminho aberto, ainda era fácil, mas assim, aos pequenos
saltos de joelhos, é já do outro mundo. Avançamos de facilidade, a
descida sobre S. João é bela com o regato a espelhar e o rio Minho
de Santa Tecla e tudo mais ao norte. É supino. Meto a língua para
dentro. Começo a dar ao rabo. Contente. A minha promessa estava
cumprida, era só entrar na capela, agradecer a S. João.
Pusemos
arraial na encosta, pedra ao pé de pedra. Lá fomos
entre o formigueiro. A capela é mesmo viva pelas coisas de pedra
colorida e pela situação escondida do altar-mor. Tem uma estátua
do Santo Miguel a cutilar o Senhor Diabo que é uma maravilha. Todos
entre Lima e Minho têm respeito ao Senhor Diabo, e os romeiros levam
esmola ao Senhor Diabo para ele estar quietinho. Nada de obras do
Diabo! O Senhor Diabo merece toda a consideração. Deitei lá umas
cinco coroas para não ter nada com as iras e más disposições do
Senhor Diabo.
Por
cima da entrada
da capela-mor há
um baixo-relevo policromado representando o baptismo de S. João. De
maravilha a igreja está em festa com duas bandas de música, os
Atrevidos de Freamunde e
a Banda
Marcial do Couto da Labrega.
À volta, um arame para separar os penitentes dos que já cumpriram
as promessas; 379 voltas de joelhos à capela, num murmurar baixo as
rezas quentes do rosário, já a contas no último terço. O padre
fala, a banda toca, uns dançam, outros bebem, outros comem, outros
rezam, outros dormem, outros gritam -- é um quadro estranhíssimo
quase nas raias do brueghelesco. Sinto fome, uma fome viva com
cheiros de salpicão a entrar nas goelas. Abanco na ravina,
inclino-me a baixa o olhar sobre o rio e no espreito de uma luz
quase cheia, devoro a carcaça de centeio. Rasgo a dentuça ao longo
das cavidades do chouriço da Riba de Âncora, e enterro o gasganete
num quartilho de branco que me chama a confessar os pecados. Os da
carne são todos iguais, os cá da cachimónia é que variam de
temperamento para temperamento. O
que é preciso é ser-se grande perante Deus,
dizia na velha capela das Amoreiras um padre chato e resmungão
que ao mundo deixou esta bela frase; -- Grande
perante Deus! --,
neste momento aproximo-me divinamente. Atrombo mais chego à verdade
da gula e paro, sinto vaidades, devaneios a pairar ao encontro de
outrora. Como se mexem os meus petardos alucinados pela crueldade do
sofrimento espiritual. Não há dessas coisas em nossa terra, mais
vinho, menos comida, mais pedras, é o que há juntamente com umas
rezas bem a propósito para os Santos milagreiros. O
que é preciso é ser-se grande perante Deus!
O
dia encolhe-se, limpa-se a noite. As estrelas pirilampam-se
depois do luar, as fogueiras do arraial significam mistério. Devia
ser assim no tempo dos santos medievais -- estamos sentados a admirar
a bacanal, na outra ravina da costa, mais aplainada, o espectáculo é
de único. Ranchos por toda a parte a cantarem, a dançarem ao som da
concertina do conjunto de tocadores. Um alto-falante vomita danças
espaçadas, lembra estúpidos de civilização. As bandas tocam mais
forte -- bebe-se agora um tinto magnífico e o fogo sobre no alto
colorindo uma natureza parda de rocha. O panorama tem majestade. O
povo ali não se abana de artimanhas, é um sim de fé e de borga.
Em
S. João d'Arga não
existem casas -- há a capela, e à volta o quartel,
nome pelo qual se chama a uma barraca onde dorme a malta bem
empilhada. Mas ninguém dorme -- não se pode dormir, a noite e as
fogueiras altas de cada ninho de pedras raro possibilitam sono --
dançam os ranchos, bebem como sequiosos do Nordeste brasileiro, tudo
bebe mais vinho e tudo come pela noite fora. Ninguém para -- vejo um
embalar puro, sagrado, da gente que espera a primeira missa às cinco
da manhã. Depois da comunhão tudo parte à debandada --
formam-se novamente os ranchos e ao nascer do sol o formigueiro
movimenta-se de partida. Dá-se lugar a outros que vêm passar o
dia 29 junto ao santo. Não durmo, olho para aquele mundo como quem
mira uma reserva humana em papel selado. É tosco, primitivo,
frascário, mas é puro, é português.
Páginas
V,
Lisboa, 1967 / Antologia,
edição de Liberto Cruz e Madalena Carretero Cruz, Lisboa, 2009.