21 de setembro de 2021

FERREIRA DE CASTRO E ROBERTO NOBRE EM "PASSAGEIRO CLANDESTINO"

Do primeiro volume de Passageiro Clandestino, diário de Mário Dionísio este ano publicado com um volume de notas de Eduarda Dionísio, retiro o seguinte apontamento relacionado com a sua saída/expulsão do Partido Comunista:

«6.9.56
Manhã e parte da tarde em Sintra com M. L. e a E. Enquanto a Maria vai mostrar o Palácio à Eduarda, longa conversa no café com o F. de C. Percebo a insistência com que ele me dizia há tempos que aparecesse, para conversarmos. Queria saber directamente «do meu caso». É com natural satisfação que o ouço dizer-me a indignação com que repudiou certas apreciações e falsas narrações que alguns «amigos» meus lhe haviam feito a meu respeito. A velha campanha que já não me surpreende nem indigna. Velha, e ao que parece, já tristemente histórica... Nem o F. de C. nem o R. N. - que passou ontem à tarde cá em casa e que, de certo modo, a puxar a conversa - podem compreender nada disto até ao fundo e em toda a sua vastidão. Faltam-lhes pormenores, a experiência real de certas pessoas, que julgam conhecer pelo seu convívio acidental de café. Falta-lhes, além de tudo, um ângulo de visão que, abrangendo por dentro os meus objectivos e os, supostamente iguais, das pessoas de que falam, lhes permita ajuizar em pormenor. Mas há neles qualquer coisa que os não deixa enganarem-se. Sensibilidade? Vontade de justiça? Confiança no homem?»

7 comentários:

  1. Muito curioso, e curioso também que o MD, então com 40 anos, não se lembrasse que o FC, com 58, e o Nobre, 53, já tinham visto muito. O Castro, em especial, aquém e além-mar, aquém e além-revolução russa e criação do PCP, cujos dirigentes de então ele conhecia muito bem. Como toda a gente, após a expectativa inicial, em 1917, cedo se percebeu que aquilo descambara. O modo como ele aborda a figura do Lenin (e creio que também do Trótsky, se a memória não me falha) nos anos 20, ou referências posteriores à URSS e aos partidos comunistas, embora menos ásperas do que alguns dos companheiros, mais próximos, como o Jaime Brasil, ou distantes, como o MJSousa mostra que ele(s) não tinham ilusões quanto ao sistema. O resto é da natureza humana.
    Fico bem satisfeito com a aparição desse Passageiro Clandestino, de que até agora creio só haviam sido publicados excertos, não é verdade? Abraço!

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    1. Não se trata de uma questão de idades, experiência ou conhecimento do processo revolucionário russo ou da formação do Partido Comunista. O MD é que estava lá dentro e sabia o que se passava: as duas longas cartas que lhe foram escritas em 1952, presumivelmente por Manuel Campos Lima, para o demoverem da sua vontade de se desligar de militante e passar a simples simpatizante (portanto, nem sequer se tratava de desertar para outro campo) por desejo de prosseguir livremente o seu trabalho criativo como escritor e pintor. MD conta na “Autobiografia” que alguém de dentro do Partido lhe disse: «Nunca mais farás nada». E depois tudo o que sobre ele lançaram, no domínio da crítica, aquando da publicação de “A Paleta e o Mundo” (Mário Sacramento, Óscar Lopes), a de que o autor mudara de doutrina e que abandonara o «caminho comum». E as mentiras espalhadas entre os militantes mal informados, como a de que “falara” e metera muita gente dentro, quando, como é sabido, nunca estivera preso. Assim, não autorizando a sua passagem a simpatizante, a única saída encontrada foi expulsá-lo do Partido.
      Abraço!

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    2. Sim, só excertos, mas agora vai sendo publicado. O volume II e respectivas notas já está em preparação.

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    3. Caro,

      O processo de desqualificação do "dissidente" é velho e revelho; faz parte do método, e nem se quer é de origem nacional; já vem do velho Marx e foi bastante aprimorado pelo Lenin. E continua até hoje, 2021. Ainda há pouco dois casos tiveram eco nos jornais, em torno de divergências públicas, ficando nós, público, a "saber" que um teria problemas de alcoolismo e outro desviara fundos. E não vamos mais longe: fale-se no Carlos Brito, um homem que tenho por impoluto. A versão que se sopra é a de que o homem (que sacrificou uma juventude potencialmente muito confortável a um ideal), depois de velho "renegara" em nome não sei de que negócios.
      Aliás, temos o triste caso -- felizmente sanado de forma exemplar por ambos, décadas mais tarde, dos ainda jovens Ferreira de Castro e Rodrigues Miguéis, em que a insinuação soez foi utilizada, como vem no meu livro.

      Sobre esse "anátema", eu li-o, na altura, como lançado pelo Cunhal -- a lógica do relato isso indica; aliás, o mesmo, "ipsis verbis", é escrito pela Zita Seabra nas suas memórias, aqui atribuídas sem subterfúgio ao Cunhal.
      O Óscar Lopes... muito inteligente e informado, a quem o Sena, seu cunhado, chamou uma "puta" -- supõe-se que ideológica.
      Enfim, outros tempos, pequenas misérias, mas que tiveram consequências graves para muitos. É por isso que eu, não gostando da personagem, até aprecio a violência desmesurada do Vergílio Ferreira, esse da mesma geração, que seguia o conselho do padre Miguel, meu professor de desenho, que me reprovou sempre: "para bruto, bruto e meio". Assim pensavam duas vezes antes de se meterem com ele. O Alexandre Pinheiro Torres, mais propagandista que crítico, teve de arrostar com o beirão...
      Grande abraço!

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    4. Pois, o meu saber não é de experiência feito, andei sempre pela borda do lago, nunca entrei nas águas... O Sartre de Fontanelas merece a minha admiração como romancista, mesmo com aquela história do Cavalo Degolado que virou Manhã Submersa... Relativamente às misérias partidárias, são faladas as traições, denúncias, orgias sectárias, etc., até o Régio que as não viveu, mas sabia delas, arranjou maneira de recriar em ficção as práticas dos militantes "avançados" , é ver o volume V de A Velha Casa. Sobre Mário Dionísio, é um caso raro ou único de "dissidente" que foi comunista até ao fim. E agora, transpondo para os dias que correm, faço votos que não se desgracem, domingo, na festarola das urnas. Estou disposto a dar-lhes a minha ínfima ajuda, com a tal cruzinha inscrita no boletim, mais não está na minha mão...

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    5. Tem que me contar essas.
      Quanto ao caso do Mário Dionísio, há outros, talves não muitos, além dos dissidentes que deixaram de o ser. Explicações, só caso a caso...

      Domingo, talvez me estreie em branco numas autárquicas, oara a Cãnara e Assembleia. No entanto, reservo uma cruz para a minha freguesia.

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  2. Soube-me a champanhe borbulhante toda esta leitura.
    Quem é capaz de enfiar, no mesmo saco sujo, um antigo lutador anarco-sindicalista ou um fanático de um regime castrador (que aquele combateu) - como eu vi fazer - é capaz de abocanhar até o melhor amigo, se ele não chocalhar a cabeça para cima e para baixo como tonto chocalho.

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