31 de dezembro de 2023

POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL.XIX

 

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

muda-se o ser, muda-se a confiança;

todo o mundo é composto de mudança,

tomando sempre novas qualidades.


Continuamente vemos novidades,

diferentes em tudo da esp'rança;

do mal ficam as mágoas na lembrança,

e do bem, se algum houve, as saudades.


O tempo cobre o chão de verde manto,

que já coberto foi de neve fria,

e em mim converte em choro o doce canto.


E, afora este mudar-se cada dia,

outra mudança faz de mor espanto:

que não se muda já como soía.


CAMÕES

Poesia Portuguesa (02)

 CARRUAGEM DE TERCEIRA

O Amor tinha sido
havia muito tempo.
(Seu cabelo era preto
e branco o seu vestido.)

O seu vestido é preto.
O seu cabelo é branco.
Vai sentada no banco
mesmo em frente do meu.

Ao lado, um vulto de homem
que é a memória viva
da força já antiga
que lhe agitava o seio.

Falam só do presente.
Mas suas mãos cruzadas
é nas coisas passadas
que poisam, meigamente.

Um halo de inocência
e de serenidade
- não a breve grinalda
de lírios ou de rosas - 

lembra o amor sem posse
de onde lhes vem o ar
de deuses que se amaram
em dias que não morrem.



Sebastião da Gama em Campo Aberto
Ática, Janeiro de 1999
Páginas 85 e 86

21 POEMAS DO SÉCULO 21 - XXI

 

PROSERPINA

(depois de Dante Rossetti)

Agora que comeste os bagos da romã e quebraste o jejum, já podes descobrir as tranças de fogo, o corpo possuído. Mas não mais terás sossego       entre o céu e o inferno, há uma estreita passagem para o teu olhar imortal. É sempre inverno e é sempre primavera, quando atravessas os bosques dos salgueiros e alcanças os umbrais.

 MANUELA PARREIRA DA SILVA (1950), Entre Cão e Lobo (2007)


30 de dezembro de 2023

101 poemas portugueses - #15


CAIXA DE AMÊNDOAS


Ireis, amêndoas, saber,
Que incomparável ventura
Às vezes há em sofrer.

Na boca vermelha e pura
Onde vos ides perder,
Se vos atrai certa alvura,
Muito deveis padecer.

Desta espantosa tortura
Só vos podeis defender
Duma maneira segura,
Dando-lhe o gozo e a doçura
De vos sentir derreter.


João Saraiva (Porto, 1866-1948), Sol-Posto (1943), 
in Cabral do Nascimento, Líricas Portuguesas - 2.º Série (1946)

21 POEMAS DO SÉCULO 21 - XX

 

3

 

Fica dentro de mim, como se fosse

eterno o movimento do teu corpo,

e na carne rasgada ainda pudesse

a noite escura iluminar-te o rosto.

No teu suor é que adivinho o rastro

das palavras de amor que não disseste,

e no teu dorso nu escrevo o verso

em pura solidão acontecido.

Transformo-me nas coisas que tocaste,

crescem-me seios com que te alimente

o coração demente e mal fingido;

depois serei a forma que deixaste

gravada a lume com sabor a cio

na carícia de um gesto fugidio

 

ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE (1944), Duende (2002)

 


29 de dezembro de 2023

TEM DIAS XXV

 


ARTE PRIMEIRA


Do ponto mais recôndito

da mente,

um tigre salta em direcção

à luz:


para depois retroceder

o gesto,

estacado membro

e som


Fere-lhe o vento

uma flecha de azul,

um recanto onde o tempo

mais se apega,

até iluminar toda a 

clareira


e sobressaltar

tudo



ANA LUÍSA AMARAL, A Arte de Ser Tigre.




POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL. XVIII

 

BARCA BELA


Pescador da barca bela,

onde vais pescar com ela,

que é tão bela. 

ó pescador?


Não vês que a última estrela

no céu nublado se vela?

Colhe a vela,

ó pescador!


Deita o lanço com cautela,

que a sereia canta bela...

Mas cautela,

ó pescador!


Não se enrede a rede nela,

que perdido é remo e vela

só de vê-la,

ó pescador!


Pescador da barca bela,

inda é tempo, foge dela,

foge dela,

ó pescador!


ALMEIDA GARRET, Folhas Caídas

21 POEMAS DO SÉCULO 21 - XIX

 

Dei-te o meu corpo como quem estende

um mapa antes da viagem, para que nele

descobrisses ilhas e paraísos e aí pousasses

os dedos devagar, como fazem as aves

quando encontram o verão. Se me tivesses

tocado, ter-me-ia desmanchado nos teus braços

como uma escarpa pronta a desabar, ou

uma cidade do litoral a definhar nas ondas..

Mas, afinal, foste tu que desenhaste mapas

nas minhas mãos – tristes geografias,

labirintos de razões improváveis, tão curtas

linhas que a minha vida não teve tempo

senão para pressentir-se. Por isso, guardo

dos teus gestos apenas conjecturas, sombras,

muros e regressos – nem sequer feridas

ou ruínas. E, ainda assim, sem eu saber porquê,

as ondas ameaçam o lago dos meus olhos.

 

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA (1959), O Canto do Vento nos Ciprestes (2001)



28 de dezembro de 2023

TEM DIAS XXIV

 

AVÉ AVA

Cântico para Ava Gardner


és ava com cheiro a erva

com corpo de garça 

e memória de eva


és ava com suor maduro

enxameando um olhar convexo

és eva vestida de sexo


és ava e estátua grega

animal acossado nas plateias

és eva brincando à cabra-cega


és ava com partículas de fogo

água soberba na enchente dos rios

incêndio de carne no calor dos estios


és ava ou ave ou sequer

uma santa de porcelana branca

disfarçada com pele de mulher


és ava e podias ser um objecto

um símbolo uma lembrança o ritual

da paixão vestindo o desejo de afecto


és ava eva com os ombros nús

olhos apelando à saliva quente

no silêncio escuro dos cinemas


és ave eva ava de pele macia

a noite mansa despida sob o lençol

esperando que jamais se faça dia



JOSÉ ANTÓNIO GONÇALVES, tem o poder da água, Editorial Éter, Lisboa, 1996.




21 POEMAS DO SÉCULO 21 - XVIII

 


13. FRANZ KAFKA (1883-1924)

 

sinto que esgotei todos os poemas:

de quando em vez,

assalta-me esta estranha sensação,

a de poder anunciar o nada nos lábios.

 

pouso os olhos sobre a medula morta:

e se não me amas, por favor abraça-me

porque renasço, entretanto, em cada abismo.

 

abandono-me à concisão do grito:

os olhos estilhaçados e os cacos da vigília,

apurando a inocência iminente de quem lê.

 

os teus braços são remos adormecidos:

seríamos livres na cauda do vento?

seríamos nós por fim?

 

RICARDO GIL SOEIRO (1981), Palimpsesto, vol. II, “Bartlebys Reunidos” (2016)


27 de dezembro de 2023

25 poemas passados para português #7.


CORRESPONDÊNCIAS

 

A Natureza é um templo onde vivos pilares

Pronunciam por vezes palavras ambíguas;

O homem passa por ela entre bosques de símbolos

Que o vão observando em íntimos olhares.

 

Em prolongados ecos, confusos, ao longe,

Numa só tenebrosa e profunda unidade,

Tão vasta como a noite e como a claridade,

Correspondem-se as cores, os aromas e os sons. 

 

Há perfumes tão frescos como a jovem carne,

Doces como oboés e verdes como prados,

-- E há outros triunfantes, ricos, corrompidos,


Que se expandem no ar como coisas sem fim,

Como o âmbar, o almíscar, o incenso, o benjoim,

E cantam os arroubos da alma e dos sentidos.


Charles Baudelaire (Paris, 1825-1867),

Les Fleurs du Mal (1857)

versão de Fernando Pinto do Amaral (Lisboa, 1960)


CORRESPONDENCES


 La Nature est un temple où de vivants piliers

Laissent parfois sortir de confuses paroles;

L'homme y passe à travers  des forêts de symboles

Qui l'observent avec des regards familiers.

 

Comme de longs échos qui de loin se confondent

Dans une ténébreuse et profonde unité,

Vaste comme la nuit et comme la clarté,

Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

 

Il est des parfums frais comme des chairs d'enfants,

Doux comme les hautbois, verts comme les prairies

-- Et d'autres, corrompus, riches et triomphants,

 

Ayant l'expansion des choses infinies,

Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens

Qui chantent les transports de l'esprit et des sens.

21 POEMAS DO SÉCULO 21 - XVII

SECRETÁRIO DA ALMA

 

A memória é o túmulo dos meus versos.

Haverá sempre mausoléus

Para a língua

Enquanto a boca invocar a palavra húmida de sangue,

Cálida de tempo, de breves alegrias e de humores

Onde a voz possa correr, livre,

Sem ser apunhalada pela industriosa mão,

Vazia, maquinal, da morte.

 

Todos temos corpos que os séculos hão-de consumir,

Mas a fala produz o pensamento,

A mão desenha a letra, o poema enaltece,

No leito sensual feito de frases

Adormece a beleza.

E a inocente, esquiva música das sílabas,

Enlouquecida,

Desperta.

 

Secretário da alma, o coração

Não descansa na laje da morada em que sossega.

Estremece nos seus sonhos,

E volve em seu redor o olhar desmesurado:

É dia de além sol, além lua, além distância,

Rasgadas as palavras de abandono

E Luta. Mas a Terra é a escrita,

E o livro o Universo.

 

ARMANDO SILVA CARVALHO (1938-2017), Anthero Areia & Água (2010)



25 de dezembro de 2023

15 formulações poéticas - #4. Léo Ferré

 «La raison d'être du poète? La voilà: la page blanche, la plume, le mot. Le reste est anecdote.»

TEM DIAS XXIII


 

É este o dia


É este o dia por que espero

Desde tempos sem fim;

E agora que ele chega quando o quero

E o tenho para mim,


Agora penso que já vinha perto

Mas o não via - e tanto 

Que à minha volta havia só deserto,

Um vazio de espanto,


Um mundo intemporal sem rotação nem horas;

E afinal o que há

É que depois de inúmeras demoras

O que não era, está.


Em mim o tinha desde o alvor

Da minha vida, sem saber

Que este esperar com alma, e sonho, e amor,

Já era ser.


CABRAL DO NASCIMENTO

23 de dezembro de 2023

101 poemas portugueses - #14


MERINA

Rosto comprido, airosa, angelical, macia,
Por vezes, a alemã que eu sigo e que me agrada,
Mais alva que o luar de Inverno que me esfria,
Nas ruas a que o gás dá noites de balada;
Sob os abafos bons que o Norte escolheria,
Com seu passinho curto e em suas lãs forrada,
Recorda-me a elegância, a graça, a galhardia
De uma ovelhinha branca, ingénua e delicada.

Cesário Verde (Lisboa, 1855-1866)
O Livro de Cesário Verde (1867)

POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL. XVII

 

NATAL


Outro Natal.

Outra comprida noite

De consoada,

Fria,

Vazia,

Bonita só de ser imaginada.


Que fique dela, ao menos,

Mais um poema breve,

Recitado

pela neve

A cair, ao de leve,

No telhado.


MIGUEL TORGA, Diário XII

21 POEMAS DO SÉCULO 21 - XV


BELARMINO

 

Não temos agora maneira de explicar os rebanhos

aos nossos filhos. Em dias como hoje, há uma aragem

que vem do campo, passou rente à terra, desce pela

rua de São João e pelo fim da tarde, conforme o rebanho

de ovelhas do teu pai noutro tempo. Recordas ainda

o cheiro da lã? Às vezes, em criança, ficavas sério

de repente. Desde que morreste, é quase sempre

com esse rosto que te vejo. Tínhamos cinco anos e

todos os cães se chamavam Fadista, eram animais

orgulhosos do seu trabalho, sabiam distinguir-nos

dos rapazes que vinham de Lisboa, férias da Páscoa,

deixavam-nos levantar a mão, pousar-lha com respeito

sobre a cabeça. Não temos agora maneira de explicar

o olhar desses cães aos nossos filhos. A tua principal

obra não foi morrer, embora custe esquecer a tua campa

de mármore, custa esquecer este preciso instante.

Foste o meu primeiro amigo. Na última vez que nos

vimos, apresentaste-me a tua filha e deste-me a notícia

da criança que estava para nascer. Havia tanto futuro,

despedirmo-nos seria uma ideia ridícula. Acreditávamos

ainda, como quando não chegávamos aos figos, e,

livres de dúvidas, subíamos às figueiras, rodeados por

verão, os nervos das folhas atravessados pelo sol.

Não sabemos o que é a vida. Parece infinito o tempo

que passávamos a regressar juntos da escola ou,

quando já éramos adolescentes, a regressar juntos

do terreiro e, no entanto, a morte como um muro,

tu desse lado, eu deste lado, a morte como um muro

caiado e incandescente.

 

JOSÉ LUÍS PEIXOTO (1974), Regresso a Casa (2020)



22 de dezembro de 2023

Pelo Tejo vai-se para o mundo (01)

 TANTAS CIDADES A QUE DEVÍAMOS TER IDO

O nosso sonho é feito de cidades cultas,
com música e cafés familiares,
a majestade de um porto e estações
de ferro e de vidro com comboios brunidos pela noite
e pela chuva, a mesma chuva 
que nos acompanha num pequeno hotel
ou nas janelas de um museu.
Há recantos ao abrigo de grandes árvores,
gente calada, educada e bem vestida
e as silenciosas livrarias
onde os olhos vagueiam enquanto cai a tarde.

Tantas cidades onde devíamos ter ido, meu amor.
A lua emerge para lá daquelas pontes de ferro
dos anos que mudaram a nossa lei.
Desde então o tempo é uma chuva
que nos inunda como inunda os telhados.
Mas na luz do pátio vemos os templos
de mármore branco e dourado travertino.
Encontramos, nas ruas de pequenas aldeias,
faustosos estuques cor de terra
esgrafiados pelo vento. Esta casa
da varanda e do pátio tem uma luz
de conversas e conforto. De nós,
aquele que ficar terá por companhia
a memória do cipreste e das heras
até nos reencontrarmos nas cidades do sonho.



Joan Margarit em L'Ordre Del Temps (1975-1986)
Da antologia Misteriosamente Feliz (Língua Morta, 2015)

21 POEMAS DO SÉCULO 21 - XIV

 


Tragam-me um homem que me levante com

os olhos

que em mim deposite o fim da tragédia

com a graça de um balão acabado de encher

tragam-me um homem que venha em baldes,

solto e líquido para se misturar em mim

com a fé nupcial de rapaz prometido a despir-se

leve, leve, um principiante de pássaro

tragam-me um homem que me ame em círculos

que me ame em medos, que me ame em risos

que me ame em autocarros de roda no precipício

e me devolva as olheiras em gratidão de

estarmos vivos

um homem homem, um homem criança

um homem mulher

um homem florido de noites nos cabelos

um homem aquático em lume e inteiro

um homem casa, um homem inverno

um homem com boca de crepúsculo inclinado

de coração prefácio à espera de ser escrito

tragam-me um homem que me queira em mim

que eu erga em hemisférios e espalhe e cante

um homem mundo onde me possa perder

e que dedo a dedo me tire as farpas dos olhos

atirando-me à ilusão de sermos duas

novíssimas nuvens em pé.

 

CLÁUDIA R. SAMPAIO (1981), Ver no Escuro (2021)


21 de dezembro de 2023

POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL. XVI

 

CAMINHO


Tenho sonhos cruéis n'alma doente

Sinto um vago receio prematuro.

Vou a medo na aresta do futuro,

Embebido em saudades do presente...


Saudades desta dor que em vão procuro

Do peito afugentar bem rudemente,

Devendo ao desmaiar sobre o poente,

Cobrir-me coração dum véu escuro!...


Porque a dor, esta falta de harmonia,

Toda a luz desgrenhada que alumia

As almas doidamente, o céu de agora,


Sem ela o coração é quase nada:

- Um sol onde expirasse a madrugada,

Porque é só madrugada quando chora.


CAMILO PESSANHA, Clépsidra

21 POEMAS DO SÉCULO 21 - XIII

 


EN 15

 

Encosto à berma da estrada nacional 15

para tirar a bexiga do aperto

em que se achava.

Faço pontaria a uma esteva

cativa de moita empoeirada,

na caruma um delta depois

uma enseada.

Miro de soslaio as aldeias agarradas,

quais carraças,

ao dorso insone dos montes

e verto, sob um pinheiro, as toxinas do passado.

 

Longos uivos à lua destinaria, feito lobo,

em pleno traço contínuo,

ou nele faria tosco sapateado,

não me chegasse já o ruído

de outro carro fugitivo,

o clarão dos seus faróis que recortam, no alcatrão,

o meu perfil acrescido.

 

Mais avisado será bater em retirada:

às quatro da madrugada

só pode ser o futuro, esse gatuno,

e assim a sacudo

mal sacudida

– assim te sacudo como quem

sacode a vida.

 

RUI LAGE (1975), Estrada Nacional (2016)



20 de dezembro de 2023

21 POEMAS DO SÉCULO 21 - XII

 


MALEVICH, QUADRADO NEGRO

 

Um erro metafísico,

um insulto à pureza e à altura.

 

Para que servem as formas?

 

Para esconder a nossa face

de anónimos mortos

entregues à cinza.

 

Propicia-se a luz.

A noite dos místicos e dos frágeis ilumina-se.

Não há desenho que reclame

a mão do prodigioso desenhador.

 

Sob lâminas e dúvidas

o mundo esmorece.

Sépalas amparam a forma, o mar

onde se escuta o negro quadrado.

 

O que se lê por entre ilegível caligrafia?

Alguém comenta a fúria dos modernos.

Uma cidade é arrasada. Eis a última estação.

O inferno suspende-se. Uma poeira

cai sobre a pele.

 

Lembramos o muro de infância

onde vimos as sombras, recortadas

subtilmente, ameaçadoras.

 

Um assentimento

destruía-nos.

Frases alargavam a página.

não continham esse regresso:

 

«O vazio é a tua morada-»

 

LUÍS QUINTAIS (1968 ), Ângulo Morto (2021)



TEM DIAS XXII

 



ESPAÇO DA RELVA


b)

exangue como neve

outra folha liberta

areia entre os espelhos


sinal de lume

e pedras na cidade

lágrima de granito

estanque


se tudo range

é lume de árvore

transparente


e)

espaço da relva

sítio de cair

no outono

como o grão

de bruços 

a folhagem


dela se desprende

veloz o ouvido

do medo

nesta aliança

com a luz



JOSÉ DE SAINZ-TRUEVA, in Ilha-2, funchal, 1979.


25 poemas passados para português - #6


Como aquelas taças pesavam

Quando vazias até nós vieram...

Depois ficaram quase esvoaçantes

Mal o vinho dentro lhe puseram:

Como corpos que mais leves se volveram

Ao habitá-los almas crentes.


Abu Al-'Abdari (Cacela Velha, Vila Real de Santo António, séc. XI)

versão de Adalberto Alves (Lisboa, 1939), O Meu Coração É Árabe (1987)

19 de dezembro de 2023

POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL. XV

 

ALENTEJANO


Deu agora meio-dia; o sol é quente

Beijando a urze triste dos outeiros.

Nas ravinas do monte andam ceifeiros

Na faina, alegres, desde o sol nascente.


Cantam as raparigas, brandamente,

Brilham os olhos negros, feiticeiros;

E há perfis delicados e trigueiros

Entre as altas espigas de oiro ardente.


A terra prende aos dedos sensuais

A cabeleira loira dos trigais

Sob a bênção dulcíssima dos Céus.


Há gritos arrastados de cantigas...

E eu sou uma daquelas raparigas...

E tu passas e dizes: «Salve-os Deus!»


Florbela Espanca


21 POEMAS DO SÉCULO 21 - XI

 

PARTE INCERTA

 

Já nem sei onde moras, onde fica

a tua porta, nudez corredia a que foi

sentinela, intrusa tão nítida

como as coisas recortadas pelo fogo.

Como deve ser quem espera

do amor uma relíquia magra,

como deve ser quem guarda

ossos, cerrados horizontes,

a elegância ferida.

Póstuma e de boa imprensa, já te ofereço

o meu cadáver, nó de leite

no azedo da memória, ou os meus seios

que se abrigam dobrados na nudez.

Nunca soube de onde vinha

tanta esperança, um poço

acendendo desde o fundo todo o ar,

e a minha boca tua imunda fera

morta, dividida ao estertor,

como em noites muito exactas

de calor nas mãos se racha

a madeira de um móvel que estimas.

 

ANDREIA C. FARIA (1984), Canina (2022)



18 de dezembro de 2023

TEM DIAS XXI

 



XL



O meu ventre,

diz a Musa

iníqua

que pintor nenhum 

desvela,

é um campo

de caça

onde regresso

a casa -

quem mata

morre.

O meu ventre,

diz a Musa

obscura

que poeta nenhum 

corrompe,

é o túmulo

dos rios

e das florestas.




CASIMIRO DE BRITO, pouco de pouco,(1999).

15 formulações poéticas - #3. Carlos Drummond de Andrade

 «Penetra surdamente no reino das palavras. / Lá estão os poemas que esperam ser escritos.»

17 de dezembro de 2023

Poesia Portuguesa (01)

 DA LINGUAGEM DAS ÁRVORES E DO VENTO

um mecanismo simples mas delicado. O sol
acende as árvores na luz e no equilíbrio dos mundos
e imprime o seu leve gesto na tua retina; em resposta
as árvores, com a sua sombra, desenham, na parede
branca, e sonham, nas tuas pálpebras descendo,

uma escrita oriental, levemente dançando.



Manuel Gusmão, em Pequeno Tratado Das Figuras
Assírio & Alvim 
1ª edição: Fevereiro de 2013
Página 25

16 de dezembro de 2023

 

If I Must Die

If I must die

You must live

To tell my story

To sell my things

To buy a piece of cloth

And some strings,

(make it white with a long tail)

So that a child, somewhere in Gaza

While looking heaven in the eye

Awayting his dad who left in a blaze

-and bid no one farewell

Not even to his flesh

Not even to himself-

Sees the kite, my kite you made, flying up

Above

And thinks for a moment an angel is there

Bringing back love

If i must die

Let it bring hope

Let it be a tale


Refaat Alareer (Gaza, 23 setembro 1979 - Gaza, 6 dezembro 2023)

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Se eu tiver de morrer

Tu tens de viver

Para contar a minha história

Para vender as minhas coisas

Para comprar um pedaço de pano

E algumas cordas

(fá-lo branco com uma longa cauda)

Para que uma criança, algures em Gaza

Enquanto olha o céu nos olhos

Esperando o pai que partiu numa labareda-

Que não se despediu de ninguém

Nem da sua carne

Nem de si mesmo-

Veja o papagaio, o meu papagaio que tu fizeste, voando para cima

Acima

E pense por um momento que um anjo está ali

Trazendo de volta o amor

Se eu tiver de morrer

Que isso traga esperança

Que isso seja um conto


GEO GRAFIA DA IMAGEM



 Elia 85. Composição da artista Elia Pimenta . Vem reproduzida na Espaço Arte 11 de Agosto de 86. Revista do Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira, com uma colaboração diversificada tanto em temáticas entre desenho, xerografias, video clips, texto...e as mais diversas experiências plásticas numa saudável cumplicidade geracional entre professores e alunos numa aprendizagem mútua bebida tb na experiência quotidiana em osmose com a(s) Escola(s). 

101 poemas portugueses - #13


ALGUÉM


Para alguém sou o lírio entre os abrolhos,
e tenho as formas ideais do Cristo,
para alguém sou a vida e a luz dos olhos,
e, se na terra existe, é porque existo.

Esse alguém, que prefere ao namorado
cantar das aves minha rude voz,
não és tu, anjo meu idolatrado!
Nem, meus amigos, é nenhum de vós!

Quando alta noite me reclino e deito
melancólico, triste e fatigado,
esse alguém abre as asas no meu leito,
e o meu sono desliza perfumado.

Chovam bençãos de Deus sobre a que chora
por mim além dos mares! esse alguém
é de meus dias a esplendente aurora,
és tu, doce velhinha, ó minha mãe!


Gonçalves Crespo (Rio de Janeiro, 1846 - Lisboa, 1883), Miniaturas (1871)

in Maximiano Augusto Gonçalves, Seleta Literária, Rio de Janeiro, 1961

15 de dezembro de 2023

TEM DIAS XX

 


A exegese de um sentimento



Estão os pássaros laboriosamente construindo

em meio deste dia as paredes de uma tarde 

                                                                     [antiga

Começa-lhes no bico aquela alegria

onde eu corria de canto para canto

e andava dentro dela de janela em janela


Quem me trouxe de novo até à minha casa?


Podem calar-se os pássaros inúteis




RUY BELO, aquele grande rio eufrates (1961).

14 de dezembro de 2023

21 POEMAS DO SÉCULO 21 - X

 

ESCARPAS

 

Cruzámos os dias de Verão

o destino perseguia-nos com um ímpeto relutante

a listar calamidades

numa ascensão

por escarpas que tínhamos julgado a salvo

 

Corríamos o litoral com a nossa turbulenta forma

ou deixávamo-nos imóveis a ponto de parecer mortos

entre beleza, sobreposição e perigo

sem grande esclarecimento

a noite despenhava-se

no silêncio da corrente

 

O vento do mar já conseguiu acalmar muitos corações

mas os nossos não

 

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA, Estação Central (2015)