Procuramos por toda a parte
o que está para lá das coisas,
e o que encontramos
são apenas coisas.
Novalis (Wiederstedt, Saxónia, 1772 - Weissenfels,idem, 1801)
versão de João Barrento (Alter do Chão, 1940)
Procuramos por toda a parte
o que está para lá das coisas,
e o que encontramos
são apenas coisas.
Novalis (Wiederstedt, Saxónia, 1772 - Weissenfels,idem, 1801)
versão de João Barrento (Alter do Chão, 1940)
«Em poesia, a realidade não é outra coisa senão a linguagem que a produz.»
VENDO A MORTE
Em todo o lado vejo a morte! E, assim, ao ver
Que a vida já vem morta cruelmente
Logo ao surgir, começo a compreender
Como a vida se vive inùtilmente...
Debalde (como um náufrago que sente,
Vendo a morte, mais fúria de viver)
Estendo os olhos mais àvidamente
E as mãos p'ra a vida... e ponho-me a morrer.
A morte! sempre a morte! em tudo a vejo,
Tudo ma lembra! E invade-me o desejo
De viver toda a vida que perdi...
E não me assusta a morte! Só me assusta
Ter tido tanta fé na vida injusta
...E não saber sequer p'ra que a vivi!
Manuel Laranjeira (Mozelos, Santa Maria da Feira, 1877 - Espinho, 1912)
Comigo (1912) / Líricas Portuguesas. 2.ª Série
(ed. de Cabral do Nascimento)
*
Boca
margem côncava
ângulo de amoras ruivas
esconderijo de águas marinhas
ou de pérolas (abrigadas)
manhã de caça
forrada a lâminas
de cedros
*
Se ao menos uma vez o poeta ordenasse
que as aves se despissem
que as aves não gritassem
que as aves a tão alto chegar não
chegassem
ou porque tão alto chegarem
outra ordem as parasse
ou um raio ou uma pedra
ou o sino de uma igreja
ou talvez uma palavra
o que calhando bastasse
*
Os mares são brancos em Marraquexe
de cal
ao longe
uma outra cor
de linho
a claridade dos trajes
as casas rasas de lágrimas
a rara circunstância das águas
do deserto
COMEÇO POR INVOCAR WALT WHITMAN
É por acção de amor ao meu país
que te reclamo, ó necessário irmão,
velho Whitman da cinzenta mão,
para que, com o teu apoio extraordinário,
verso a verso, matemos de raiz
Nixon, o presidente sanguinário.
Sobre a terra não há homem feliz,
ninguém trabalha bem no planeta
se em Washington respira o seu nariz.
Pedindo ao velho bardo que me invista,
os meus deveres assumo de poeta
armado do soneto terrorista,
porque devo ditar sem pena alguma
a sentença até agora nunca vista
de fuzilar um criminoso ingente
que apesar das suas viagens para a lua
já matou na terra tanta gente,
que até foge o papel e a pena se alevanta
ao escrever o nome do maldito,
do genocida, o da Casa Branca.
Pablo Neruda (Parral, Chile, 1904 - Santiago, 1973),
Incitamento ao Nixonicídio e Louvor da Revolução Chilena (1973)
versão de Alexandre O'Neill (Lisboa, 1924-1986)
original aqui
«A poesia é, por essência, mais do que e algo de diferente da própria poesia. Ou antes: a própria poesia pode encontrar-se onde não existe propriamente poesia. Ela pode mesmo ser o contrário ou a rejeição da poesia, e de toda a poesia»
CANTIGA PARA OS TRABALHADORES DOS CAMPOS
Sou cavador, cavo a terra
Donde nasce a flor e o grão.
Dou aos outros a fartura
E em casa não tenho pão.
Hoje planto árvor's e vinha,
Lavro a terra, rego a horta,
E amanhã, em sendo velho,
Pedirei de porta em porta.
O sol a todos aquece,
Não nega a luz a ninguém,
Ama os bons e ama os maus
E assim foi Jesus também.
A árvore, quanto mais fruto,
Mais baixa os ramos p'ra o chão.
O homem, quanto mais rico,
Mais ergue a sua ambição.
A vida do pobre é isto:
-- Trabalhar enquanto moço,
E em velho andar às esmolas
Como o cão que busca um osso.
Morre um rico, dobram sinos!
Morre um pobre, não há dobres!
Que Deus é esse dos padres
Que não faz caso dos pobres?
Se pão não tenho, e os meus filhos
Me pedem pão a chorar,
Dou-lhes beijos, coitadinhos!
Que mais não lhes posso dar...
Sinto no mundo um rumor
Que anuncia um dia novo,
Andam profetas na terra
Abrindo os braços ao povo!
O sol nasceu cor de sangue
E a lua da mesma cor.
Gritam as bocas: Mais pão!
E os corações: Mais amor!
Bernardo de Passos, (São Brás de Alportel, 1876-1930)
Refúgio (póst., 1938) / Líricas Portuguesas. 2.ª Série
(edição de Cabral do Nascimento)
QUERERIA ESCREVER POEMAS
Quereria escrever poemas à noite
E não posso.
Tenho de traduzir os textos
De promoção a
Um creme de beleza.
Vejo pessoas rapazes
Que não são aqueles
Que desejaria ver.
Os outros não os conheço.
Converso com raparigas na cantina
E dizemos coisas
Idiotas
Que não merecem ser ditas.
Tenho medo de habituar-me
«Não posso ver, hoje, a fome crescente e a chacina entre nações sem comoção. E a emoção pelos seres, pelos outros, pela natureza, pelo Cosmos, gera o poema.»
LEGENDA
Não me peças esmola, que sou pobre,
E avaro do meu pouco,
Se mo pedem!
Não me tragas esmola, que sou rico,
Se penso na miséria
Que poderias dar-me!
Dar-te-ei, sem que mo peças.
Dá-me, sem que eu o saiba.
Expulsei os mendigos do meu Reino!
Cá, só amor gratuito.
--- A Chaga do Lado, 1954
VILANCETE
INFÂNCIA ENTRE DISCÓRDIAS
Lá fora pendiam, látegos terríveis, os ramos dum freixo
E se de noite levantava o vento, a árvore chicote
Gemia e vergastava o vento como em navio
O sinistro cordame geme horrível na borrasca.
Em casa bradavam duas vozes: esguio chicote
Silvando fúria de fêmea desvairada e o medonho ruído
Da vergasta do macho que açoitava, rugia e sufocava enfim
A outra voz ao som do freixo num silêncio de sangue.
D. H. Lawrence (Notthingham, 1885 - Vence, 1930)
versão de João Almeida Flor, in D. H. Lawrence, Gencianas Bávaras e Outros Poemas (1983)
original aqui
«A poesia é um acto de insubordinação a todos os níveis, desde o nível da linguagem como instrumento de comunicação, até ao nível do conformismo, da conivência com a ordem, qualquer ordem estabelecida.»
MEU PAI
Os meus primeiros passos animaste,
Os meus primeiros erros corrigiste;
E o amor do trabalho que me incutiste
Com a própria lição que me legaste.
A ser honesto e digno me ensinaste,
E por igual também me transmitiste
O gosto pelo estudo, e o prazer triste
Do cultivo das musas, que ensaiaste...
Meu adorado Pai, quando me atrevo
A pensar no que sou, e no que devo
Ao teu conselho, auxílio e educação,
Que santo orgulho eu sinto em continuar-te!
Pois todo o meu engenho e a minha arte
Obras tuas, meu Pai, apenas são!
Delfim Guimarães (Porto, 1872 - Amadora, 1933),
Alma Portuguesa (1916)