26 de junho de 2024

101 poemas portugueses - #43

 

ARTE POÉTICA


A poesia do abstracto...
Talvez.
Mas um pouco de calor,
A exaltação de cada momento
É melhor.
Quando sopra o vento
Há um corpo na lufada;
Quando o fogo alteou
A primeira fogueira,
Apagando-se fica alguma coisa queimada.
É melhor...
Uma ideia
Só como sangue de problema;
No mais, não,
Não me interessa.
Uma ideia
Vale como promessa
E prometer é arquear
A grande flecha.
O flanco das coisas só sangrando me comove,
E uma pergunta é dolorida
Quando abre brecha.
Abstracto!
O abstracto é sempre redução,
Secura;
Perde --
E diante de mim o mar que se levanta é verde:
Molha e amplia...
Por isso, não:
Nem o abstracto nem o concreto
São propriamente poesia.
A poesia é outra coisa.
Poesia e abstracto, não.

Vitorino Nemésio (Praia da Vitória, 1901 - Lisboa, 1978)

O Bicho Harmonioso (1938)

21 de junho de 2024

101 poemas portugueses - #42

 

MEU MENINO, INO, INO


1

 

Dos versos que exprimem,

Estou cansado!

 

Das palavras que explicam,

Estou cansado!

 

Ai, embala-me, fútil, e frágil, no ó-ó dos teus versos,

Ai, encosta-me ao peito...!

 

Mais não quero que ser embalado.

 

 

2

 

O menino está doente...

-- Diz a mãe.

 

Qui-é qui-é

Que o menino tem?

 

Ai...!

Diz o pai.

 

A criada velha chora pelos cantos

E reza a todos os santos...

 

Afirma o senhor doutor

Que amanhã que está melhor.

 

O pai suspira:

-- Quem sabe lá?!

 

E o menino diz:

-- Papá...!

 

A mãe chora:

-- Quem já me dera amanhã...!

 

E o menino diz:

-- Mamã...!

 

E, com a febre, rezinga,

E choraminga,

Olhando a lua amarela

Como uma vela:

-- Quero aquela péla...!

 

Mas o Pai do Céu sorri:

-- Vem cá vê-la!

É para ti.

 

 

3

 

-- Acabaste?

 

-- Meu amor, acabei.

 

-- Apagaste a candeia? apagaste?

 

-- Meu amor, apaguei.

 

- E fechaste o postigo? e fechaste?

 

- Meu amor..., sim, fechei.

 

-- Que rumor é aquele? não sentes?

 

-- Meu amor, que te importa?

É a vida a dar socos na porta.

É lá fora. São eles. É o mundo. São gentes.

 

-- São gentes? Quem são?

 

-- São colegas, amigos, parentes...

 

-- Vai dizer-lhes que não! Vai dizer-lhes que não!


José Régio (Vila do Conde, 1901-1969)

As Encruzilhadas de Deus (1936)

18 de junho de 2024

25 poemas passados para português - #25


À ESPERA DOS BÁRBAROS


O que esperamos nós em multidão no Forum?

Os Bárbaros, que chegam hoje.

Dentro do Senado, porque tanta inacção?
Se não estão legislando, que fazem lá dentro os senadores?

É que os Bárbaros chegam hoje.
Que leis haveriam de fazer agora os senadores?
Os Bárbaros, quando vierem, ditarão as leis.

Porque é que o Imperador se levantou de manhã cedo?
E às portas da cidade está sentado,
no seu trono, com toda a pompa, de coroa na cabeça?

Porque os Bárbaros chegam hoje.
E o Imperador está à espera do seu Chefe
para recebê-lo. E até já preparou
um discurso de boas-vindas, em que pôs,
dirigidos a ele, toda a casta de títulos.

E porque saíram os dois Cônsules, e os Pretores,
hoje, de toga vermelha, as suas togas bordadas?
E porque levavam braceletes, e tantas ametistas,
e os dedos cheios de anéis de esmeraldas magníficas?
E porque levavam hoje os preciosos bastões,
com pegas de prata e as pontas de ouro em filigrana?

Porque os Bárbaros chegam hoje,
e coisas dessas maravilham os Bárbaros.

E porque não vieram hoje aqui, como é costume, os oradores
para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?

Porque os Bárbaros é hoje que aparecem,
e aborrecem-se com eloquências e retóricas.

Porque, sùbitamente, começa um mal-estar,
e esta confusão? Como os rostos se tornaram sérios!
E porque se esvaziam tão depressa as ruas e as praças,
e todos voltam para casa tão apreensivos?

Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram.
E umas pessoas que chegaram da fronteira
dizem que não há lá sinal de Bárbaros.

E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros?
Essa gente era uma espécie de solução.


Konstantínos Kaváfis (Alexandria, 1863-1933)

versão de Jorge de Sena (1919-1978), in Constantino Cavafy,  90 e Mais Quatro Poemas 

daqui - https://lsoares.blogs.sapo.pt/c-p-cavafy-a-espera-dos-barbaros-1162386 

17 de junho de 2024

o início de CANÇÃO DOCE.

 «O bebé morreu.» Leïla Slimani, Canção Doce [2016], trad. Tânia Ganho, Lisboa, Alfaguara, 2022, p.11.

14 de junho de 2024

"FERREIRA DE CASTRO - Uma biografia" vol, 1, de Ricardo António Alves, edição do Centro de Estudos Ferreira de Castro

 

Apresentação amanhã, às 16 horas, no Museu do Neo-Realismo, em VFX. 

Na p. 36, referindo a genealogia de Ferreira de Castro, admite-se que o escritor de Ossela seja descendente de um filho bastardo de D. Dinis, D. Afonso Sanches, poeta trovador, do qual se encontra em 


https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=784&pv=sim


esta curiosa, ainda que incompleta, cantiga de escárnio e maldizer. Leia-se com a nota junta esclarecedora do texto.

 

CANTIGA DE AFONSO SANCHES

 

Afonso´Afonses, batiçar queredes

vosso criad´e cura nom havedes

que chamem clérig; en´esto fazedes,

aquant´eu cuido, mui maao recado;

ca sem clérigo, como haveredes,

Afonso’Afonses, nunca batiçado?

 

Nota:

Só esta estrofe chegou até nós de uma cantiga em que D. Afonso Sanches satiriza um tal Afonso Afonses, a propósito do batismo de um seu criado. Tudo indica, no entanto, que a cantiga se basearia num equívoco sobre quem é que nunca teria sido batizado - e que seria o próprio Afonso Afonses, pelo que se depreende do v. 6.

 

 

13 de junho de 2024

101 poemas portugueses - #41


INTANGÍVEL 


«Nuvem, sonho impalpável do desejo»

ANTERO.

Essa que eu amo e beijo e não existe,
embora exista em mim que a beijo e amo,
nunca há-de vir um dia em que eu a aviste,
nunca a voz hei-de ouvir-lhe quando a chamo.

Mas não me fugirá. Por mais que diste
quando eu a sua ausência já proclamo,
assim que me percebe fraco e triste
volta, e eu volto a sentir-me escravo e amo.

Sei que é uma visão, sei que a componho
eu mesmo, à semelhança do meu sonho,
dando-lhe a luz fictícia que ela emite.

Mas se à minha alma pode enfim bastar
essa alma ideal, -- o meu sedento olhar,
esse procura um corpo onde ela habite.


Francisco Costa (Sintra, 1900-1988),
Verbo Austero (1925)

5 de junho de 2024

ENIGMA


I

Ao madrugar põe-se o PÔR-DO-SOL

No FIM DO MUNDO – Nunca se sabe

Quando vier a tempestade vem a bonança

 

II

Assim canta El-Rei

Bem ou Mal todos sabem quem é a Lua

 

III

Estamos a chegar à Primavera…

Eu estou ao pé de ti

Algo acontece aliás acontece um pouco de tudo.

 

--- JOSÉ LAURINDO LEAL DE GÓIS, Águas, Memórias, “Cadernos de Santiago”, Lisboa, Âncora Editora, 2021

 

Poema cujo sentido oculto me foi desvendado na passada segunda-feira, 3 de Junho.

 

101 poemas portugueses - #40


A CORRENTE


Lá vão as folhas secas na corrente...
Lá vão as folhas soltas das ramadas...
Hastes envelhecidas e quebradas
galgando as asperezas da vertente.

A cheia arrasa os frutos e a semente,
a terra inculta, as várzeas fecundadas,
e vai perder-se, ao longe, nas quebradas,
numa fúria cruel e inconsciente.

Em nós ainda é mais funda, ainda é mais vasta,
esta ansiedade enorme e sem perdão,
que nos fere, nos tolhe e nos devasta...

As árvores desprendem-se e lá vão...
Mas nós ficamos porque nada arrasta 
as raízes fiéis dum coração.


Fernanda de Castro (Lisboa, 1900-1994)

Jardim (1928)