29 de novembro de 2024

101 poemas portugueses - #55

 

SONETO


Eu tenho a pagar 10 e na carteira
Apenas tenho 8. Eis a arrelia.
Eis-me buscando em mente uma maneira
De pagar o que devo em demasia.

E fico às vezes nisto todo o dia,
Um dia inteirinho em estúpida canseira.
Se busco distrair-me, de vigia,
Olha-me a rir a dívida grosseira.

E entretanto na rua vão passando
Carros de luxo, altivos salpicando
O lodaçal dos trilhos sobre mim...

E sinto, na revolta, o algarismo,
Do trono do brutal capitalismo,
A rir de nós, os bobos do festim!


Rui de Noronha (Lourenço Marques [Maputo], 1906-1943),

in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban III (1996)

25 de novembro de 2024

pedra de toque #10

«Almas, desesperos, ambições, impotências -- e a trégua desta noite, em volta da lareira.»

Ferreira de Castro, «O Natal em Ossela», (1932/1974), Os Fragmentos

24 de novembro de 2024

101 POEMAS PORTUGUESES . #54

 

INSTANTE


A cena é muda e breve:
Num lameiro,
Um cordeiro
A pastar ao de leve.

Embevecida,
A mãe ovelha deixa de remoer
E a vida
Pára também, a ver.


Miguel Torga (São Martinho de Anta, Sabrosa, 1907 - Coimbra, 1995)

Diário I (1941)



15 de novembro de 2024

pedra de toque - #9

«Mary virara-se outra vez de costas e Giovanni quis adivinhar-lhe a direcção dos olhos, acompanhá-los depois no voo extasiado que terminava na torre do Palazzo Vecchio.» 

Augusto Abelaira, A Cidade das Flores, 1959

13 de novembro de 2024

101 poemas portugueses - #53


PARTIR!,,,


Eu vou-me embora para além do Tejo,
não posso mais ficar!

Já sei de cor os passos de cada dia,
na boca as mesmas palavras
batidas nos meus ouvidos...
-- Ai as desgraças humanas destas paisagens iguais!...
Abro os olhos e não vejo
já não ando, já não oiço...
Não posso mais...
Grita-me a Vida de longe
e eu vou-me embora para além do Tejo.

Passa a ave no céu bebendo azul e diz:    Vem!
O vento envolve-me numa carícia,
envolve-me e murmura: -- Vem!
As ondas estalam nas praias e vão mar fora,
as mãos de espuma a prender-me os sentidos
chamam no fundo dos meus olhos: -- Vem!

-- Camaradas, eu vou, esperai um pouco...
Ai, mas a vida nunca espera por ninguém...
E a noite chega vingadora;
o vento rasga-me o fato,
as ondas molham-me a carne
e a ave pia misticamente no ar;
abro os olhos e não vejo,
já não ando, já não oiço
-- e fico, desgraçado de ficar!...



Manuel da Fonseca (Santiago do Cacém, 1911 - Lisboa, 1993)
Rosa dos Ventos (1940)

7 de novembro de 2024

pedra-de-toque #8

«Súbito, uma revoada de vozes escapou-se em surdina do âmago da igreja e derramou pelo claustros o clamor inquietante duma dolência arrastada.» 

Manuel Ribeiro, A Catedral, 1920