26 de dezembro de 2021
10 de dezembro de 2021
RUA DA AMARGURA - Texto lido por Ana Cristina Carvalho na apresentação pública de 15-10-2021
Rua da Amargura
(de Fernando Faria)
1. Penso que a escrita, em particular a escrita das nossas memórias, é um ato de íntima exposição (passe a incoerência), e o que desse ato resulta, como estes "Episódios de uma comarca de Província", iluminará para sempre o fio biográfico do seu autor, ocupando um lugar especial na vida que se lhe anuncia pela frente. Confiar a alguém a apresentação pública desse fruto é sinal de estima e consideração pessoal - distinção que muito agradeço ao Fernando Faria. companheiro de muitas e boas e partilhadas leituras no Museu Ferreira de Castro, aqui em Sintra. Como agradeço a todos os aqui presentes por, com essa presença, homenagearem o livro e o autor.
2 . Algumas profissões, mais intensamente do que outras, lidam de perto com os limites da velha condição humana: as misérias, as expectativas, as dores e os deveres... A atividade de magistrado, particularmente numa comarca rural de um país que na década de 1980 respirava os primeiros ares de livre desenvolvimento, é uma delas. Disso só tive noção através da leitura deste testemunho ficcionado, que nos desvenda a partir de dentro, com os recortes e cores de quem a viveu, uma realidade que a maioria de nós só conhece de ouvido, para lá das baias da nossa própria experiência. Pois para isso serve a literatura: para nos trazer à vista aquilo que nós, desarmados de ângulos e perspetivas alheios, sozinhos não alcançaríamos.
3. Sabemos que a Rua (ou as ruas) da Amargura não é lugar onde se recomende demorarmo-nos. É "um vale de lágrimas", "um descer ao fundo do poço", é "ser tido em baixa consideração", diz o Dicionário Criativo na net. Mas esta Rua da Amargura do Fernando Faria percorrem-na 170 páginas que, aos amargos do quotidiano, vêm juntar o "bucolismo da região" (expressão do autor), a ambiência familiar dos cafés de província, o afeto cúmplice entre um cão e o seu dono coxo, a vivacidade das infâncias e até certo dilema ontológico do protagonista...
4. Por acaso, o GoogleMaps aponta-nos umas quantas "Rua da Amargura" em localidades portuguesas (Caldas da Rainha, Machico, etc...). Mas não em Figueiró dos Vinhos. Esta obra vive de uma toponímia fictícia que, parece-me, poupa deliberadamente um elemento incontornável da geografia real: o Zêzere. Respeita-se o grande rio da Estrela e a sua margem direita, já a rondarem o Tejo. Tudo o mais - a Vilar de Prantos onde Feliciano Feijó desagua com a família; o cemitério de Vale Escuro onde desce à terra o corpo do enforcado Serafim; ou o alto panorâmico de Santa Tecla, escolhido por Vitalino Próspero para liquidar a desonra com um tiro na têmpora - são lugares de clara designação figurativa, uma espécie de padroeiros linguísticos da dramaticidade de cada história.
5. Igualmente contêm muito de sugestivo, e até de irónico, os nomes próprios e apelidos atribuídos às personagens. Estas, já agora, são-nos apresentadas numa galeria, que a cada uma faz corresponder um capítulo. As nove vivem o tempo dos telexes, das tamancas, dos Citroën dois cavalos, do êxito Nikita do Elton John...
6. Sobre um cenário natural de "Pinhais ondulantes e sem fim", "vinhedos, pomares, prados", "hortas e canaviais" que beneficiam das águas do Zêzere [e sabe-se lá quanto, de tudo isto, sobrou do tempo entretanto decorrido e dos incêndios de 2017...], desenha-se um quadro social de interioridade rústica, eivado de analfabetismo, desespero, alcoolismo, trabalho infantil e declínio dos ofícios artesãos, como o do sapateiro do Capítulo 7.
7. O primeiro capítulo, dedicado à violência portas dentro, cujas nuances pouco mudaram em quarenta anos, menos mal que relata com vivacidade e humor como os vapores do morangueiro tanto seduziam homem como mulher, resultando num modus vivendi doméstico de "dás mas também levas". E lá está o desfecho a recordar-nos que nem tudo é o que parece...
8. Outras vívidas passagens de humor são o bate-boca entre Gertrudes e Arquimínio frente ao Dr. Delegado, nas páginas 41 a 43, risível apesar do alcoolismo e da pobreza subjacentes; ou o monólogo interior de autorrecriminação de Feliciano Feijó, arrependido do excesso de ética deontológica que o levara a recusar um potezinho de mel ao velho apicultor Salomão Lampreia, última personagem a entrar em cena.
9. Há momentos do livro em que a "realidade" excede a ficção, como se costuma dizer, incorrendo o autor na acusação injusta de faltar à verosimilhança. Um desses momentos é o furto do porco (vivo e vacinado), no capítulo dedicado à personagem Pencas, "uma trave de um metro e noventa" batizado como Expedito Manso Rouxinol. Outro é o suicídio no exato meio geométrico do paredão da Barragem da Feitosa e o corpo de Cesaltina mais tarde pescado com um anzol...
10. O livro de Fernando Faria exprime-se numa linguagem elegante e rica, num estilo que é realista, por vezes cru mas muitas vezes cândido. A natureza também lá aparece, com o ar da sua graça, em descrições da vila encaixada na vertente, da noite de inverno rodeando um lagar de azeite onde decorre um jantar de amigos, etc. Mas surge também prestando um último serviço ao desespero humano, como quando um suicida pede no bilhete de despedida que lhe enterrem o cão debaixo de um loureiro, ou quando a figura de Serafim Baleia se destaca na paisagem, pendendo de uma oliveira.
11. Rua da Amargura tem a legitimidade da vida experienciada e a riqueza de um olhar simultaneamente maduro (do autor que o escreve) e fresco (do jovem magistrado que viveu o ambiente retratado). Mas, saberes profissionais e papeis sociais à parte, este livro do Fernando Faria lembra-me um verso da cantora Mafalda Veiga (do álbum Pássaros do Sul, 1987), verso onde se diz que, acima de tudo, "Nós somos o ser extravasado que o nosso sentir nos dá".
ACC, Sintra, 15Out2021
29 de novembro de 2021
13 de novembro de 2021
ALENTEJO(S)
Livro de estudiosos, para estudiosos, teve de se contentar, no que me diz respeito, com a leitura de um curioso.
Gosto de obras que me ensinem, ou que me alimentem a memória, ou que me revelem informações inesperadas. Aqui, em ALENTEJO(S) - imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção, editado / organizado por Ana Cristina Carvalho e Albertina Raposo, petisquei de tudo.
Mas, quando resolvi realçar alguns pontos que mais me tinham acordado, dei comigo a fazer a lista de quase todos os autores... não podia ser, porque acabaria a fazer um resumo que não estaria à altura do original.
Permiti-me, portanto, algumas referências de cunho mais pessoal, que a leitura me despertou:
- Manuel Ribeiro é autor cuja personalidade e obra me cativa desde os meus longínquos tempos de bibliotecário em Manteigas; vim encontrá-lo aqui e surpreendi-me com o que li;
- assim como José Régio (aqui, pela mão de Manuel Nunes) que, por enviesamento meu, teimo sempre em associar (só) a Vila do Conde (espraiada, entre pinhais...);
- tive possibilidade de conhecer pessoalmente Manuel da Fonseca e de trocar algumas impressões com ele, em tertúlia pós-revolucionária (a maior parte, se não todos os livros dele estão autografados e dormem cá por casa); a sessão alongou-se muitíssimo para lá do tempo previsto, e acabou com ele a levantar-se, clamando, com ar a condizer: «tenham paciência, mas temos de acabar, senão mijo-me todo...»; inesquecível, concordem;
- Florbela Espanca é ela mesma: a maior sonetista da língua portuguesa;
- o último livro que meu pai me recomendou que não perdesse, depois de ele ter lido, é de Fernando Namora; uma boa parte li no hospital, acompanhando os últimos dias dele;
- Bismarck disse que, contrariamente à estupidez, a ignorância tem cura; aqui vim descobrir o papel histórico de Branquinho da Fonseca nas Bibliotecas que alimentaram de prazer das melhores horas da minha vida.
Bem hajas, Cristina; valeu a pena o teu trabalho e saber, a que juntaste fotografias a desenhar a realidade descrita.
Recomendo.
11 de novembro de 2021
9 de novembro de 2021
6 de novembro de 2021
17 de outubro de 2021
Geografias Literárias
Estão online, em acesso aberto ao público, os dois livros que a Ana Cristina Carvalho organizou em 2020 e 2021, início da coleção “Literatura e Ambiente”, inédita em Portugal, que “correrá” todas as regiões do país e envolve dezenas de autores e revisores de várias universidades de Portugal, Brasil e Espanha:
Amazónia – Reflexos do Lugar nas Literaturas Portuguesa e Brasileira:
https://research.unl.pt/ws/
Alentejo(s) – Imagens do Ambiente Natural e Humano na Literatura de Ficção:
https://research.unl.pt/ws/
Os livros em papel podem ser adquiridos na Almedina, Bertrand, FNSC e outras livrarias de Portugal e do Brasil.
Sendo verdadeiramente um "trabalho coletivo que poderá constituir um manual de promoção de novas leituras, novos debates e novas reflexões", é uma obra de leitura e/ou de consulta indispensável e merecedora de ampla divulgação.
9 de outubro de 2021
8 de outubro de 2021
NOTAS SIMPLES SOBRE "RUA DA AMARGURA", DE FERNANDO FARIA
Rua da Amargura, de subtítulo “Episódios de uma comarca de província”, é
constituído por nove narrativas decorrentes de experiências do autor durante o
período em que, nos anos oitenta do século XX, desempenhou funções de delegado
do Procurador da República na comarca de Figueiró dos Vinhos.
A transposição ficcional dá como espaço de acção Vilar de Prantos, topónimo que se ajusta ao espírito da matéria narrada, tendo em conta a vida miserável de algumas personagens, os episódios de violência e os suicídios cometidos nas diferentes histórias (ao todo, quatro!), embora haja nelas, por vezes, um acento de picaresco e trágico-cómico.
Na diversidade do
narrado, há figuras que aparecendo em várias ou todas as histórias reforçam a
unidade dos textos já por si subordinados ao denominador comum de «episódios de
comarca» : o funcionário judicial Gonçalves, o médico Dr. Teófilo Assunção, o
cabo da GNR Secundino Dias e, naturalmente, Feliciano Feijó, cujos nomes são formados com as mesmas iniciais dos nomes do autor, Fernando Faria.
Quem esperar destas narrativas
um desenvolvimento literário na tradição dos vultos da modernidade habitualmente
citados – Allan Poe, Kafka, Borges, etc. – pode desiludir-se. Fernando Faria
escreve nos moldes de um realismo focado nos estratos sociais mais
desfavorecidos, com situações e personagens típicas, mas ultrapassando o mero memorialismo
ou o testemunho chão com apontamentos de valor artístico como este do conto “A
barragem da Feitosa (Cesaltina)”:
«Afastado, um pouco, do parapeito mágico e, consequentemente,
liberto do síndrome vertiginoso, Feliciano pôde apreciar a jusante da barragem
o fundo desfiladeiro cavado pelo rio ao longo de milénios, de cujas margens
calcárias brotavam carvalhos e medronheiros, os quais, à distância, dir-se-ia
não passarem de simples arbustos. A água, terminado o cativeiro da represa e
vencida a provação das turbinas, retomara o trilho no velho leito e deslizava
já, álacre como uma escolopendra, abrindo caminhos por entre arbustos e calhaus
brancos.» p. 70.
De salientar as múltiplas
referências técnicas ao trabalho do delegado, o qual até chega a funcionar como
uma espécie de Juiz de Paz (conto “Rua da Amargura (Gertrudes)”), promovendo a
concórdia entre os esposos e tentando evitar, em relação ao filho, o abandono
escolar e o trabalho infantil. Igualmente os processos de investigação dos
pequenos crimes – o porco roubado em “Só ficaram os ossos… (Pencas)” – e
aspectos de medicina legal – cremos poder chamar-lhes assim –, nas considerações feitas
em “O homem pênsil (Serafim)” – um título perfeito! – relativamente às várias
possibilidades do «aspecto do enforcado»:
«(…) expressão serena ou terrífica?; olhos abertos ou
fechados?; língua projectada ou mantida entre os maxilares?; cabeça decaída
para o peito ou tombada para um dos lados (dependendo da posição do laço)?;
maior ou menor profundidade do sulco causado pela corda na cerviz?; presença ou
ausência de protuberância nas calças, indiciadora de erecção peniana? Havia
casos, explicados pela neurologia.» p. 86
Estamos – como desde
logo fica exposto na nota introdutória –, perante um conjunto de ficções de
pendor autobiográfico, mostrando na sua vertente testemunhal a pobreza
existente no interior- centro do país num período já marcado pela consolidação
do regime democrático. Como Feliciano Feijó de imediato verificou, não iria
encontrar naquela vilória pastores da Arcádia, nem Lianores descalças a caminho
da fonte, nem sequer moleirinhas, toc, toc, toc, sobre os seus jumentinhos,
como nos versos de Guerra Junqueiro. A realidade era outra!
Diga-se que a Igreja e
a Política– normalmente presentes em histórias de província através de
personagens determinantes como o padre e o regedor – estão ausentes deste livro. Tudo se passa no
seio do povo e dos agentes da Justiça, havendo entre estes grande lisura e
cooperação, situação talvez idílica, mas que foi a adoptada pelo autor na sua
estratégia narrativa.
Feliciano Feijó não
fala muito da sua vida pessoal, sabendo-se apenas que está familiarmente
acompanhado e que tem dois filhos de dois e quatro anos que são deixados
diariamente no infantário. Situação comovente, aquela da separação imposta aos
pequenos em cada dia de trabalho dos progenitores, já sentida em algum momento
por todos os que são pais e até, em contexto mais adiantado, quando arribam à
condição de avós.
Outro ponto digno de
nota: o facto de a cada título de história se associar o nome do protagonista,
revelador do cunho pessoal das narrativas, da dimensão humanista que as enforma.
Para além disto – e abreviando,
para não roubar muito tempo aos visitantes do blogue – , cumpre dizer que se
sente neste livro a grande alegria de narrar. Alegria antiga, vinda dos poemas
homéricos, das Mil e Uma Noites e de
obras imortais como o Decameron.
Que seria do homem sem narrativas? Ouvir ou ler o que é narrado é um imperativo de sobrevivência. Pelo poder da narrativa se salvou Sherazade da morte anunciada, também por via dele resistiram Pimpinea e os seus jovens amigos e amigas ante a peste que grassou em Florença no ano de 1348, tal como nos relata a ficção admirável de Boccaccio.
Todos nos salvamos um
pouco quando escrevemos ou lemos ficções. E
especialmente nós, leitores, quando estamos perante livros, como este Rua da Amargura, que se lêem com
simpatia e agrado.
21 de setembro de 2021
FERREIRA DE CASTRO E ROBERTO NOBRE EM "PASSAGEIRO CLANDESTINO"
12 de setembro de 2021
EVOCAR JOSÉ RÉGIO - 120º ANIVERSÁRIO DO SEU NASCIMENTO
No próximo sábado, 18 de Setembro, sessão evocativa de JOSÉ RÉGIO na Biblioteca Municipal de S. Domingos de Rana. Para efeitos de controle da lotação da sala (máximo de 25 pessoas), pede-se seja feita inscrição pelos números de telefone indicados no cartaz.
5 de setembro de 2021
RUBAYAT de Omar Khayyan
Entretanto, é de poesia que venho escrever, recomendando a leitura de Rubayat, sua obra mais conhecida entre nós, numa versão hodierna.
Surpreendente que um matemático persa dos séculos 11 e 12 que, entre outras coisas, foi poeta, me tivesse despertado a atenção a este ponto. Atrevido sobre as determinações religiosas, ousado nas conceções de vida e de morte, apresenta-nos posições filosóficas em que descubro muitas das minhas posições interiores sobre o princípio, o meio e o fim da realidade (ou da ilusão) humana.
Deixo-lhe a ligação de acesso: clique em https://bibliotronicaportuguesa.pt/livronicos-na-internet/ e depois procure «Khayyan»; mais um clique e ficará com o livro disponível para leitura, sem custos.
Experimente: vale a pena.
31 de agosto de 2021
o início de A AMANTE HOLANDESA
«--Compreende?»
10 de agosto de 2021
7 de agosto de 2021
Revisitando TERRA MÃE
Acabei, mais uma vez, com agrado, a leitura de Terra Mãe de Fernando Faria, dando razão à profecia de Ricardo Alves, citada na contracapa desta segunda edição, revista e ampliada.
Além do que já conhecíamos, as histórias sobre os avós do autor vieram enriquecê-lo, e neles descobrimos uma comoção latente que contagia e, como todo o livro, desperta lembranças.
Se não leu, é dos livros a não perder; se leu, vá redescobrir as suas memórias e delicie-se com os novos pedaços sentidos de prosa.
4 de agosto de 2021
"OS MEUS DIAS", DE CARLOS DANIEL: OS DIAS, O TEMPO E A EXPLICAÇÃO DAS COISAS
CARLOS DANIEL publicou
dois romances – Foste tu que me
escreveste de Sintra? em 2005 e A
Morte do Rei de Espanha em 2012 – e desde 2017 que tem vindo a afirmar-se no “obscuro
ofício” da poesia com o Prémio Albano Martins (Município do Fundão) e no ano
seguinte com o livro Os Meus Dias,
editado por “A.23 Edições”.
Este livro estrutura-se
em três secções: “os dias de hoje”, “os dias de ontem” e “os dias de amanhã”, o
que de imediato nos remete para uma noção do devir poético e sentimental do
predicador: tempo presente (a primeira) e abertura à memória (na segunda) e à expectativa
do futuro (na terceira), qual rio, como o de Heraclito, de águas sempre mudáveis
e irrepetíveis.
Se quisermos caracterizar
cada uma destas partes, poderíamos dizer que "os dias de hoje" é a tentativa
de explicar o real vivido; "os dias de ontem", a mesma tentativa maturada pela
memória e pela consciência de uma identidade que se foi forjando num caldo de
viagens e experiências de vida; e "os dias de amanhã", talvez a assunção de um
desencanto, porque afinal não se pode explicar o perecível para lá da
constatação daquilo que ele é e como é sentido. Diz-se no poema “60”: «Os dias
são felizes nadas». E no “71”: «CANSAM-ME AS PALAVRAS DEPOIS DE PRONUNCIADAS
UMA BREVIDADE HUMILHANTE EXCEPTO SE AS MARCAR COM RISCOS NA COFRAGEM DO MEU
CORPO».
Noutro poema, o “63”, é
dito:
OS CAVALOS DO TEMPO MARCHAM SOBRE AS NOSSAS FERIDAS E SOMOS
DUPLAMENTE FELIZES
Enfiamos os dias
Em argolas de louça
E partimos os dentes se os quisermos mastigar
De versos
predominantemente curtos e relativamente enxutos de adjectivação, a poesia de Os Meus Dias parece simples, mas não é. Ela
parte de uma tentativa de explicar as coisas, logo presente no primeiro poema:
Se as quiséssemos ver
– as coisas –
Como elas são
Acabariam as angústias.
Perpassando essa
“explicação das coisas” – expressa pelo mesmo sintagma – em mais poemas do
livro: “21. Perenes”, “42. Palavra incompleta”, “47. Origem”. Explicar as
coisas, explicar o amor – se é que o amor é explicável – nas suas vertentes eufórica e disfórica:
“26. Alvorada”
(…)
Foi bom pensar-te
Cozinhar para ti
Desenhar um céu
Para os meus pássaros
Quando tu vens»
ou
“40. Sara”
(…)
Perder-te-ei num Verão
E nos Invernos também
Ficará longe o teu corpo
Num porto de fantasias»
Os Meus Dias é um livro seguro de um poeta que de forma consciente ou não
tem presente a lição de Cesário e Caeiro. Ou seja, fala de coisas simples e
tangíveis, mas vai para além delas. Dizia Caeiro: «O que nós vemos das coisas
são as coisas.» (poema XXIV de O
Guardador de Rebanhos) e «(…) o único sentido oculto das coisas / É elas
não terem sentido oculto nenhum,» (poema XXXIX do mesmo livo). Ora esta negação
do transcendente é filosofia, mesmo que não pareça e o predicador o negue.
Também há uma certa filosofia
em Os Meus Dias. E até na peculiar
predicação de ordem metafísica – tendo em vista a condição humana, a fugacidade
do tempo e o eterno retorno – expressa no poema “20. Brevidade”:
Se acreditarmos no que somos
Seremos breves
Nos discursos.
As pernas serão pilares perecíveis
Sob lintéis apoiados
Em ombros descomunais.
A cor desaparecerá em mil anos
Os frescos encher-se-ão de poeira
E dos ossos descarnados dos templos
Far-se-ão novas colunas
Outros pigmentos
Bronzes por cima
Mas nada impedirá o retorno da brevidade volátil
Esquecida a sua passagem
Escrever sobre um livro
de poesia é trabalho arriscado. Por várias razões e, sobretudo, por aquelas que
Mário Dionísio aponta no “antiprefácio” da sua Poesia Incompleta: «Como toda a arte, a poesia não se explica. A
experiência acaba por fazer-nos aceitar que não podemos explicar um quadro, um
soneto, uma máscara, que temos de contentar-nos com o trabalho muito mais
modesto e certamente muito mais demorado de, por meios diferentes e
simultâneos, forjar condições de aproximação.»
Assim, nada mais é
possível senão ensaiarmos as ditas aproximações, tentames, experiências
inacabadas, e daí o nome de “ensaio”, consagrado
desde Montaigne para os escritos que indagam sobre a natureza e o sentido da
arte. Sempre com o desejo firme de chegar a algum ponto, mas com a consciência
de se ficar muitas vezes pelo caminho.
Estes os juízos sumários, próprios para um blogue, que me é dado fazer sobre Os Meus Dias, livro de Carlos Daniel que as Musas, certamente, não deixarão de acolher.
15 de julho de 2021
o início de BEHIND THE BEAUTIFUL FOREVERS*
«Era quase meia-noite, a mulher perneta estava queimada com gravidade e a polícia de Bombaim vinha buscar Abdul e o seu pai.» Katherine Boo, O Sonho de uma Outra [2010] Vida, trad. Isabel Veríssimo, Alfragide, Rdições Asa, 2014, p. 11.
*Opto pelo título original, mais de acordo com uma poética oriental do que o português, meloso: tal como a capa, que reproduz a imagem original, muito orientada para encher o olho e puxar ao sentimento em programas de Oprah's e afins, um e outra não fazendo justiça à magnífica reportagem que este livro é.
6 de julho de 2021
CADERNOS DE SANTIAGO II
Com edição da Âncora saiu em Abril de 2021 o volume II de Cadernos de Santiago, colectânea de
poetas da Madeira com objectivos que apontam para a sua eventual extensão a autores da região biogeográfica da
Macaronésia, constituída para além da Madeira pelos arquipélagos dos Açores,
Canárias e Cabo Verde.
JOSÉ LAURINDO LEAL DE GÓIS, nosso colega do Clube de Leitura, participa
no volume com dez poemas sob o título Águas,
Memórias.
O conjunto poemático articula-se
entre as águas do tempo e a magoada voz
da memória, desde um primeiro poema,
“Cabeça sobre a Relva” – que é uma arte
poética no vero sentido da expressão – , até “Lembras-te Brígida Amada,” em que o conteúdo
da predicação se estabelece como súmula temática do conjunto.
Rasgadas as águas do tempo, é a infância e a juventude do predicador que
afloram na matéria dos poemas. «Evocação inatingível do eterno», diz-se em
“águas, memórias”, poema que dá título à participação do poeta na colectânea.
Poemas do «tempo derramado», ou
do «tempo transfigurado», do «rumor das águas» no seu incessante labor de
descobrir o sentido último do que se perdeu – a praia, agora «virtual», despojada
do ouro das areias; a «ânfora quebrada de água cristalina»; a casa, esse «navio
de sensações» que vem «do tempo ingénuo da infância». Algumas das expressões
citadas pertencem a “Tempo derramado”, poema de uma única estrofe de cinco
versos em que irrompe a figura matricial da casa – a casa a que sempre se
volta, se não fisicamente, pela via possível da memória.
Centrando-nos no derradeiro poema – “Lembras-te Brígida Amada,” –, diríamos
que ele surpreende pela serena dolência da predicação («Embora esteja sol lá
fora eu não o sinto»), pela adjectivação inesperada («lua maneirista»), pela
estilística da contradição («sonhos de ouro e lama»), pela quase-metáfora do «tanque» e das
«trutas» que, de resto, surge igualmente no poema “Raras luzes”. Para além do
mais, é uma canção de amor na sua exacta definição. E porque falamos de amor e
de um poeta madeirense, é impossível não recordar a trágica lenda da descoberta
mítica da Ilha de Madeira – os amantes Ana d´Arfet e Roberto Machim –, tal como
é narrada na Epanáfora Amorosa III, de D. Francisco Manuel de Melo.
A poesia de hoje, como a de sempre, faz-se de sedimentos da tradição
oral e escrita, e muito do que aí está
nestes segundos Cadernos de Santiago bem o demonstra.
NOTA: JOSÉ LAURINDO LEAL DE GÓIS interveio igualmente no volume Cadernos de Santiago I (Âncora Editores,
Maio de 2016) com um conjunto de doze poemas
intitulado A Penas Poemas.
5 de julho de 2021
o início de UMA ABELHA NA CHUVA
«Pelas cinco horas duma tarde invernosa de outubro, certo viajante entrou em Corgos, a pé, depois da árdua jornada que o trouxera da aldeia do Montouro, por maus caminhos, ao pavimento calcetado e seguro da vila: um homem gordo, baixo, de passo molengão; samarra com gola de raposa; chapéu escuro, de aba larga, ao velho uso; a camisa apertada, sem gravata, não desfazia no esmero geral visível em tudo, das mãos limpas à barba bem escanhoada; é verdade que as botas de meio cano vinham de todo enlameadas, mas via-se que não era hábito do viajante andar por barrocais; preocupava-o a terriça, batia os pés com impaciência no empedrado.» Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva [1953], 22.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1984.
1 de julho de 2021
ENCHARCAR-SE DE ORVALHO...
"O primeiro alvor da madrugada na janela do escritório, um começo de luz apenas, ainda por fixar no contorno do mundo. Como a mulher se tivesse recusado a deixá-lo entrar no quarto, passara ali a noite, encolhido no meiple de couro, com a samarra pelas pernas. Não conseguira adormecer, mas alcançara do excesso das palavras e do álcool um pouco de repouso. No entanto, doía-lhe a cabeça. A boca seca, amarga. Levantar-se e abrir a janela. Uma golada de água, a pureza fria da madrugada. A cinza da luz amontoava-se nas vidraças, mas não era possível prever se o dia chegaria ou não. Quando começava a clarear um pouco mais, a lufada de sombra varria a cinza da janela. Um desejo irreprimível de cheirar os campos molhados. Beber água, passar os dedos na casca rugosa dum pinheiro, encharcar-se de orvalho. Atravessou a casa adormecida, abriu a porta com cuidado e saiu."
(Carlos de Oliveira nasceu em 10 de Agosto de 1921 e faleceu em 1 de Julho de 1981, faz hoje 40 anos)
25 de junho de 2021
20 de junho de 2021
Apresentação de RUA DA AMARGURA
Convido todos os visitantes deste blogue para a apresentação pública do meu livro RUA DA AMARGURA (episódios de uma comarca de província), evento cujos detalhes constam do "convite" anexo.
O evento será realizado numa sala muito ampla e arejada, assim se observando as recomendações da DGS para a prevenção da Covid19.
Desde já agradeço o interesse e a informação sobre a eventual presença.
Fernando Faria
15 de junho de 2021
o início de O RINOCERONTE DO REI
8 de junho de 2021
MANUEL MATOS NUNES, POETA
Manuel Matos Nunes (MMN) revelou-se como poeta. De sua autoria vieram a lume os Cadernos do Verão (Abril , 2021), sob a chancela da On y va. Os seus textos deixaram assim o mundo virtual da sua formação como objecto na imaginação do autor. De facto, constituem-se como obra pela sua coerência e na medida em que poemas e referências se interligam e se tornam indispensáveis.
Constituem-na 3 secções antecedidas de uma epígrafe que serve de linha de leitura e que é uma écfrasis nocional. A primeira é designada por Delírios Ecfrásticos e o poeta explora a linguagem ecfrástica em várias situações pois procede à representação verbal de uma representação visual. Usa com frequência a referencialidade genérica na medida em que são observadas outras características para além da representação pura, como, por exemplo a personalidade, Fui Narciso nos auto-retratos , pintor/de mineiros e camponeses(...), Van Gogh na noite estrelada sobre o Ródano (pg 37). Poema deslocada para outra secção por decisão do autor.
Quanto à segunda secção Figurações do Incomum ela revela uma das causas da Poesia: a representação do incompreensível, do imaterial e do absurdo em todos os poemas e que são de certo modo uma das linhas de conduta do livro, e perante a admiração geral das instituições,/abandonou tudo, partindo não se sabe para onde/em demanda de um peixe fóssil, o coelacanto. (KZ,funcionário das Finanças) pg.27.
Quanto à terceira secção que nomeia a obra o autor partilha uma série de emoções e experiências vividas em várias geografias e situações sendo de assinalar a oscilação da forma , de ritmos e cor que fazem deste um livro de imagens. Gostei particularmente de A agressiva razão do vazio, pela amargura: saber que já não se senta ninguém/no sofá da sala, onde os livros/se acomodam hoje. pg. 60. Livro de poesia promissor no qual MMN revela a sua Cultura que nos tem transmitido ao longo dos anos e a sua imensa febre de conhecimento em busca de perfeição.
4 de junho de 2021
BOMBAIM. (A desumanidade...)
"Ao amanhecer de um dia no fim de Julho, Sunil encontrou um apanhador de lixo caído na lama no cruzamento onde a rua de terra de Annawadi se encontrava com a grande estrada do aeroporto. Sunil conhecia mal o velho; ele trabalhava muito e dormia à porta do mercado de peixe de Marol, a cerca de 800 metros dali. A perna do homem estava esmagada e ensanguentada e ele pedia ajuda aos transeuntes. Sunil deduziu que ele fora atropelado por um carro. Alguns motoristas não se preocupavam muito em desviar-se dos apanhadores de lixo que esquadrinhavam as bermas das estradas.
Sunil teve demasiado medo de ir à esquadra da polícia pedir uma ambulância, especialmente depois do que se dizia que acontecera a Abdul. Em vez disso, correu para o campo de batalha dos contentores de lixo da Estrada da Carga, na esperança de que um adulto tivesse coragem de ir à esquadra. Milhares de pessoas passavam por ali todas as manhãs.
Duas horas depois, quando Rahul saiu de Annawadi para ir para a escola, o ferido pedia água.
(... ... )
Quando Zehrunisa passou por ali uma hora depois, o apanhador de lixo gritava com dores. Ela achou que a perna dele tinha um aspecto horrível, mas ia levar comida e medicamentos ao marido, que também estava com um aspecto horrível do outro lado da cidade, na prisão de Arthur Road.
(... ...)
Quando Rahul e o irmão voltaram da escola no princípio da tarde, o apanhador de lixo ferido estava deitado, quieto, a gemer baixinho. Às 14h30, um homem do Shiv Sena fez um telefonema para um amigo na esquadra da polícia de Sahar sobre um cadáver que estava a perturbar as crianças pequenas. Às 16 horas, os guardas chamaram outros apanhadores de lixo para carregarem o corpo para dentro de uma carrinha da polícia, par não apanharem as doenças que toda a gente sabia que os apanhadores de lixo tinham."
(sem dúvida, um dos livros mais inquietantes que já li.)
21 de maio de 2021
o início de LOTTE EM WEIMAR
«O mordomo do hotel "Elephant" em Weimar, Mager, um homem culto, teve, num dia quase ainda de Verão, já Setembro de 1816 ia adiantado, uma vivência emocionante e gostosamente perturbadora.» Thomas Mann, Lotte em Weimar -- O Regresso da Bem-Amada [1940], trad. Teresa Seruya, 2.ª ed., Lisboa, Nova Vega, 2017
14 de maio de 2021
7 de maio de 2021
o imortal rinoceronte de D. Manuel I
29 de abril de 2021
28 de abril de 2021
6 de abril de 2021
o início de O SEMINARISTA
«Sou conhecido como o Especialista, contratado para serviços específicos.»
Rubem Fonseca, O Seminarista (2009), Porto, Sextante editora, 2010, p. 5
5 de abril de 2021
31 de março de 2021
17 de março de 2021
8 de março de 2021
4 de março de 2021
O SEMINARISTA
"Eles me pegaram porque dei mole.
Foi assim: eu me preparava para sair de casa para dar uma volta, ver se achava uma pista do Sangue de Boi e, quando peguei a Glock, Kirsten peerguntou:
«Você vai levar essa coisa? Precisa?»
«Está bem», eu disse colocando a pistola de volta no armário de cuecas.
Eu havia acabado de sair do sebo da rua da Quitanda, onde comprara uma edição de poemas de Edna St. Vicent Millay, e caminhava lendo, embevecido, pela Primeiro de Março, quando subitamente colocaram um capuz na minha cabeça e mãos fortes e hábeis me jogaram na mala de um carro. Os caras deviam ser muito audaciosos para fazer uma coisa dessas numa rua de movimento durante o dia. Tudo durou alguns segundos. Senti o carro andando em alta velocidade. Quando parou, me tiraram da mala, mas mantiveram o capuz cobrindo a minha cabeça.
«Anda, dá o serviço», uma voz disse.
«Que serviço?»
«O que foi que o cara cheio de joias te contou?»
«Que cara?»
«O cara que você matou.»
«Quando foi isso?»
«Três meses atrás. Um sujeito cheio de anéis, pulseiras, até brincos.»
«Ah... sei. Ele não me contou nada. Dei um tiro na cabeça dele, um só, como sempre faço, quer dizer, fazia, eu abandonei o métier. Não sei de nada. No dia seguinte nem li os jornais, exatamente para não saber nada sobre o freguês. Esse é o meu modus operandi.»
1 de março de 2021
26 de fevereiro de 2021
25 de fevereiro de 2021
24 de fevereiro de 2021
17 de fevereiro de 2021
16 de fevereiro de 2021
15 de fevereiro de 2021
11 de fevereiro de 2021
10 de fevereiro de 2021
as personagens de «O Príncipe»: Francesco II Gonzaga, marquês de Mântua
8 de fevereiro de 2021
SAADI, antítese de MAQUIAVEL
De Maquiavel sabemos todos um pouco, e, agora que acabámos de ler a sua obra mais famosa, é aconselhável tomarmos cuidado para não nos tornarmos admiradores de «heróis» que seguiram os seus ditames, entre os quais se colocou em bicos de pés, Napoleão Bonaparte, ao comentar, com sobranceria, quem era suposto ser o mestre.
A equilibrar o pensamento, surge então Saadi (emparceirando com Rumi e Hafez no céu da literatura persa), de quem deixo dois excertos: «Quando todos os seres humanos são úteis uns aos outros, que homem se atreverá a existir inútil para a sua pátria e para o Mundo?». «Toda esta gente vai a casa do meu amigo em razão do seu cargo importante; eu porém hei de ir lá, quando ele deixar de o ter, e estou bem certo que então me hei de achar sozinho [com ele]».
E, realçando a antítese, cito o tradutor da versão portuguesa das Fábulas Orientais: «Pelo que, na lição bem modesta destas Fábulas, poderá encontrar o Príncipe altíssimas máximas na arte de governar, o Ministro de Estado excelentes exemplos propostos a sua imitação, e todo o homem em geral doutrinas de moral pura que, postas por ele em prática, aumentarão a sua sensibilidade e melhorarão indubitavelmente o seu coração». (Francisco Freire de Carvalho, que foi Professor de História e de Antiguidades na Universidade de Coimbra).
Finalmente: um dos exemplos que Maquiavel invoca recorrentemente, César Borgia, filho do celebérrimo papa Alexandre VI, acabou sepultado à porta de uma igreja, em Viana (Logronho), «para ser pisado pelo povo». O mausoléu elevado ao bom conselheiro que foi Saadi, mantém-se como símbolo de homenagem à grandeza interior do homem, em contraste com o poder terreno, sempre transitório.