29 de outubro de 2024

pedra-de-toque #7

«O automóvel roda apressado, galgando covas, trepidando, queixando-se da aspereza do caminho.» 

Adelino Mendes, «A cidade d'Albert», A Capital, Lisboa, 29-III-1917

27 de outubro de 2024

101 poemas portugueses - #52


TRISTÍSSIMA CANÇÃO


Nesta saudade em que vivo
Há um mistério que eu estranho:
É pesar-me o bem que tive
Mais do que os males que tenho.
 
E ainda é maior a amargura,
Lembrando que o bem passado
Foi menos do que mesquinho,
pois foi apenas sonhado!
 
Nasceu dos meus pensamentos
Altivos e namorados,
E fez, morrendo, a harmonia
Dos meus versos magoados...
 
E mesmo assim, que saudade
Eu tenho, de encanto estranho,
Que lembra o bem que eu não tive,
E é o maior mal dos que eu tenho!...


Guilherme de Faria (Guimarães, 1907 - Boca do Inferno, Cascais, 1929),
Desencanto (1929)

 

22 de outubro de 2024

pedra-de-toque #6

«É um pobre -- é um pobre de pedir --, é um fantasma.» 

Raul Brandão, O Pobre de Pedir, póst., 1931

21 de outubro de 2024

pedra-de-toque #5

«À beira da estrada, as duas filas de altas e esbeltas árvores, martirizadas pelo frio, parecem sentinelas que não se fatigam nunca, guardando e vigiando este pedaço de terra francesa...» 

Adelino Mendes, «A cidade d'Albert», A Capital, Lisboa, 29-III-1917

17 de outubro de 2024

Pedra-de-toque #4

«A obra em si mesmo é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.» 

Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881

16 de outubro de 2024

101 poemas portugueses - #51

 

CANTAM AO LONGE


Cantam ao longe. Anoitece.
Faz frio pensar na vida;
E a Natureza parece
Dizer, em voz comovida,
Que o Homem não a merece.

Carlos Queirós (1907-1949),

Desaparecido (1935)

15 de outubro de 2024

"INSOLÚVEL FLAUTIM"




Provavelmente, para alguns leitores e visitantes, o que venho partilhar não será novidade.

O certo é que, esta manhã, ao fazer a minha habitual visita à loja da Bertrand do Allegro de Sintra, dei com este novo romance de Miguel Real (aliás, apetitoso). E não é que uma das primeiras páginas é ocupada com este poema do nosso ilustre confrade do C.L.M.F.C., Manuel Nunes, sendo encimada com a nota: "O mais belo poema sobre Jesus escrito em Portugal em 2023".

Muito justo destaque. Mais do que um privilégio, é um orgulho para mim partilhar aquele cenáculo com Manuel de Matos Nunes! 
 

14 de outubro de 2024

Pedra-de-toque #3

«Ele pertencia à família dos Milhanos de Marinhais, sempre famosos no Ribatejo como arrozeiros sabidos e safos de mândria.» 

Alves Redol, Gaibéus, 1939

11 de outubro de 2024

Pedra-de-toque #2

«E era o único grito que quebrava o silêncio, também volátil, das velhas árvores em êxtase.» 

Ferreira de Castro, Emigrantes, 1928

10 de outubro de 2024

Pedra-de-toque #1

«A água vinha de longe por uma caleira de pedra, e era sua uma toada tão leda e inquebrantável, que parecia mesmo a pulsação do silêncio.» 

Aquilino Ribeiro, A Via Sinuosa, 1918

5 de outubro de 2024

Poesia Portuguesa (04)

 VII

Não, não queremos cantar
as canções azuis
dos pássaros moribundos.

Preferimos andar aos gritos
para que os homens nos entendam
na escuridão das raízes.

Aos gritos como os pescadores quando puxam as redes
em tardes de fome pitoresca para quadros de exposição.
Aos gritos como os fogueiros que se lançam vivos nas fornalhas
para que os navios cheguem intactos aos destinos dos outros.
Aos gritos como os escravos que arrastaram as pedras no Deserto
para o grande monumento à Dor Humana do Egipto.
Aos gritos como o idílio dum operário e duma operária
a falarem de amor
ao pé duma máquina de tempestade
a soluçar cidades de fome
na cólera dos ruídos ...

Aos gritos, sim, aos gritos.

E não há maior orgulho
do que o nosso destino
de nascer em todas as bocas ...

... Nós, os poetas viris
que trazemos nos olhos
as lágrimas dos outros.



José Gomes Ferreira em "Poesia I"
Heróicas 1936. 1937. 1938
Portugália Editora
3ª edição, Março de 1967
Páginas 108 e 109

4 de outubro de 2024

o início de GENTE COMUM - UMA HISTÓRIA NA PIDE

«O meu nome é Aurora Rodrigues», Aurora Rodrigues, Gente Comum -- Uma História na Pide, 2.ª ed., introduções de Paula Godinho e António Monteiro Cardoso, Lisboa, Parsifal , 2022.

2 de outubro de 2024

101 poemas portugueses - #50

 

POEMA DO CÃO AO ENTARDECER


Um cão no areal corria presto.

Presto corria o cão no areal deserto.
 
Era ao entardecer, e o cão corria presto
no areal deserto.
 
Corria em linha recta, presto, presto,
pela orla do mar.
Pela orla do mar, em linha recta,
corria presto, o cão.
 
Era ao entardecer.
No areal as águas derramadas
nas angústias do mar
lambuzavam de espuma as patas automáticas
do cão que presto, presto, corria em linha recta
pela orla do mar.
 
Sem princípio nem fim, em linha recta,
pela orla do mar.
 
Era ao entardecer,
na hora espessa, peganhenta e húmida,
em que um resto de luz no espasmo da agonia
geme nas coisas e empasta-as como goma.
No espaço diluído, esfumado e cinzento,
corria presto o cão no areal deserto.
Corria em linha recta, presto, presto,
definindo uma forma movediça
que perfurava a névoa e prosseguia
pela orla do mar, em linha recta,
focinho levantado, olhos estáticos,
fixando o breve ponto onde se encontram
além de todo o longe
as rectas que se dizem paralelas.
 
Alternavam-se as patas na cadência,
na cadência ritmada do movimento presto,
deixando no areal as marcas do contacto.
Presto, presto.
 
Como se um desejo o chamasse, corria presto o cão
no areal deserto.
O ritmo sempre igual, a língua pendurada,
os olhos como brocas, furadores de distâncias.
 
Em seu último espasmo a luz enrodilhou
o cão, o mar, o céu, o próximo e o distante.
Era um suposto cão correndo presto, presto,
num suposto areal, realmente deserto,
por uma linha recta mais suposta
que o areal e o mar.
Mas presto, presto, sempre presto, presto,

ia correndo o cão no areal deserto.


António Gedeão (1906-1997), Poemas Póstumos (1983)