8 de março de 2014

POESIA E PROSA (I)

Enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia
O poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:
Abaixo o mistério da poesia.

ANTÓNIO GEDEÃO, "Abaixo o Mistério da Poesia"

Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente, (...)

ALBERTO CAEIRO, O Guardador de Rebanhos, XXVIII



O GRITO DE DIGNA PARDO ANTE A QUEDA MORTAL DE SEU AMO JUVENAL URBINO* 

Foi às quatro horas e sete minutos da tarde de Domingo
de Pentecostes, pairavam nos ramos altos da mangueira
as línguas flamejantes do divino Paracleto. O calor prenunciava
a chuva, o mar rumorejava dentro de todos os búzios.
O papagaio palrava insídias e uma escada romba preparava-se
para escrever uma página da história da infelicidade.
Nem sequer teve tempo de encomendar a alma: o corpo
desprendeu-se da árvore  como um fruto podre
lançado ao solo em súbita demolição de músculos e ossos,
e nenhum anjo-da-guarda  saiu dos catecismos para  lhe aparar
a queda. O grito da criada, Digna Pardo de seu nome, trespassou
de pânico as cúpulas de ouro da cidade velha, os pássaros
calaram-se, enquanto Deus, indiferente ao destino dos homens,  
sorria de ócio e tédio na sombra roxa da sua eternidade.

* Digna Pardo e Juvenal Urbino são personagens de Gabriel García Márquez em O Amor nos Tempos da Cólera

 Nota: poema (ou prosa?) publicado anteriormente em www.comolhosdeler.blogspot.com

2 comentários: