31 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (24)

 

Ó tocadora de arpa, se eu beijasse

Teu corpo sem beijar a tua poma

E beijando-o unisse pela soma

Aos quatro sexos meus e te enterrasse

 

Tão fundo o meu caralho que gravasse

Em soberba medalha de cristão

Ajoelhando amigos e irmão

Quando, processional, o entregasse

 

À forma que submete e que extasia,

À forma inteira, igual da luz do dia,

E tu por baixo, árdua, entre os varais.

 

Caverna em estalactites, minha sina.

Não poder eu descê-la, descer mais

Que vê-la e que perdê-la na retina!

 

MÁRIO CESARINY, O Virgem Negra, Fernando Pessoa explicado às criancinhas naturais & estrangeiras por M.C.V. Who Knows Enough About It (1988)

 


30 de outubro de 2023

POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL - II

 

ÉCLOGAS


Lançou-se Limabeu antre uns penedos

Donde via correr um claro rio,

Acostumado a ouvir os seus segredos.


Com os olhos num bosque alto, sombrio,

A quem a primavera já pagava

A perda que lhe fez o tempo frio.


- Aquilo (começou) que vos contava,

Plantas águas, penedos, foi engano;

Já me desenganou quem me enganava.


Mais foi a perda sua que meu dano,

Mas (como dizem) tudo tempo cura,

Pois o que perde o mês não perde o ano.


Enjeita-se no campo a fermosura

Do lírio já colhido, que não cheira:

Mais há de ter o bosque que verdura!


Inda mal! pois não foi esta a primeira

(Como devera ser) que me levara,

Donde não vira mais esta ribeira.


Não falta nos desertos água clara,

A lapa que da clama me defenda,

Se ventar, ou chover, também me ampara.


... ... 


Frei Agostinho da Cruz

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (23)

 

AMOR DA PALAVRA, AMOR DO CORPO

 

                               a Maria Aliete Galhoz

 

A nudez da palavra que te despe.

Que treme, esquiva.

Com os olhos dela te quero ver,

que te não vejo.

Boca na boca através de que boca

posso eu abrir-te e ver-te?

Todo o espaço dou ao espelho vivo

e do vazio te escuto.

Silêncio de vertigem, pausa, côncavo

de onde nasces, morres, brilhas, branca?

És palavra ou és corpo unido em nada?

É de mim que nasces ou do mundo solta?

Amorosa confusão, te perco e te acho,

à beira de nasceres tua boca toco

e o beijo é já perder-te.

 

ANTÓNIO RAMOS ROSA, Nos seus Olhos de Silêncio (1970)


29 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (22)

 

BILHETE PARA O AMIGO AUSENTE

 

Lembrar teus carinhos induz

a ter existido um pomar

intangíveis laranjas de luz

laranjas que apetece roubar.

 

Teu luar de ontem na cintura

é ainda o vestido que trago

seda imaterial seda pura

de criança afogada no lago.

 

Os motores que entre nós aceleram

os vazios comboios do sonho

das mulheres que estão à espera

são o único luto que ponho.

 

NATÁLIA CORREIA, O Vinho e a Lira (1966)


28 de outubro de 2023

101 poemas portugueses - #4

 TROVA À MANEIRA ANTIGA

Comigo me desavim,
Sou posto em todo o perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.


Com dor, da gente fugia,
Antes que esta assim crescesse;
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo,
Tamanho imigo de mim?

Sá de Miranda (Coimbra, 1481 - Amares, 1558)
in José Régio, Poesia de Ontem e de Hoje para o Nosso Povo Ler (1956)

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (21)

 

21.

 

como uma pedra no silêncio

como um chicote na moleza

o pensamento preciso sem cerimónia

dá um passo

 

o ponteiro do relógio com ferrugem

embota as hélices frementes

mas na cilada dos divãs crescente

o pastor de macaco pensa que

não basta cruzar os braços

 

não basta cruzar os braços

esperar a lua entre nuvens

enquanto a paisagem se derrama

não basta pensar um dia

 

roldanas prontas nos guindastes

rolam pesados cabos de aço

 

é preciso criar os dias

é preciso criar o sentido dos dias

 

MÁRIO DIONÍSIO, O Riso Dissonante (1950)


27 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (20)

 

RETRATO DE RAPARIGA

 

Muito hirta     de pé    no patamar do sono

Contornando sem pressa a curva de uma artéria

Por mais ocasional que fosse o nosso encontro

dava-me a entender que estava à minha espera

Com um livro na mão     com um lenço ao pescoço

uma expressão cansada    a palidez inquieta

de quem andasse ao vento ou trouxesse no rosto

em vez de pó-de-arroz um pó de biblioteca

 

surgia de repente onde sempre estivera

em Zurique    em Paris    em Liège    em Colónia

Por único endereço uma carreira aérea

Mas não sei se era louca     ou apenas mitómana

Onde quer que eu a visse uma coisa era certa

Numa rua     num bar    num museu    numa doca

dava-me a entender que estava à minha espera

dava-me a entender que se chamava Europa

 

DAVID MOURÃO-FERREIRA, Do Tempo ao Coração (1966)



26 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (19)

 

Deus,

Precisava bem de ter uma conversa a sério contigo,

se tu não tivesses tido a cobardia de não existires.

Mas safaste-te, não exististe e agora?

Para aqui sem te poder pedir satisfações

e atirar-te à cara com umas tantas questões urgentes

e algum cuspo que viesse atrás.

Se tivesses um pouco de vergonha,

existias mesmo para aguentar com dignidade

o que todos temos para te dizer,

eu, particularmente.

Mas és assim, sem espinha dorsal

e cavaste para onde é o não ser.

Porque eu queria que me dissesses aqui sem tergiversares

para que é que fizeste esta merda.

E não me venhas com o palanfrório da eternidade e o mais,

que não adianta.

Olha agora a gente a aturar os anjinhos e os seus alaúdes

como se isso não fosse mais chatice

do que a chatice que querias compensar.

Não, a coisa é mais séria.

A coisa é que me puseste aqui sem me dares cavaco

e eu que aguente.

A coisa é que és pior que os antigos senhores

com os seus caprichos que metiam sangue, torturas

e outros passatempos

de quem está farto e não sabe como distrair-se.

Estavas chateado?

Fizeste a criação por não teres que fazer?

Mas não vale a pena adiantar mais conversa.

És assim

um tipo invertebrado,

sem um mínimo de vergonha,

e com tipos assim não gosto de conversar.

Se não és o cobarde que te digo na cara que és,

então existe mesmo, existe,

que depois sim, a gente vai ter a sério

uma conversa de homens como deve ser.

Até lá, metes-me náusea e não quero sequer ouvir falar

de ti,

sequer ouvir,

sequer ouvir…

 

VERGÍLIO FERREIRA, Conta-Corrente III (1980-1981)


25 de outubro de 2023

o início de EURICO O PRESBÍTERO

 «A raça dos Visigodos, conquistadora das Espanhas, subjugara toda a Península havia mais de um século.»  Alexandre HerculanoEurico o Presbítero, [1844], edição crítica dirigida por Vitorino Nemésio, Lisboa, Livraria Bertrand, s.d., p. 1.

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (18)

 

CALAI

 

Calai os versos abstractos

E a mansidão dos olhos que têm os bois pacatos.

 

Calai tanto, tanto espírito na terra,

E a cristianíssima paz que nos faz guerra.

 

Calai, promessas de anjo, o céu sublime,

Quando as mãos, cheias de oiro, trazem máscaras de crime.

 

Calai loas de amor às crianças maltrapilhas

Que esses farrapos de alma não lhes cobrem as virilhas.

 

Calai as lágrimas à beira dos enfermos:

Prefiro a solidão que é soluço nos ermos.

 

Calai, palhinhas de Jesus, que sois o ai de quem ama:

Paz na terra e no céu: ao cristão, ao judeu, e à gentílica moirama.

 

Calai-vos, bêbedos aos bordos nas estradas:

Para matar tristezas, Nossa Senhor das Dores com suas sete espadas.

 

AFONSO DUARTE, Ossadas (1947)

24 de outubro de 2023

POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL - I

 O MENINO DE SUA MÃE


No plaino abandonado

Que a morna brisa aquece,

De balas trespassado

- Duas, de lado a lado -,

Jaz morto, e arrefece.


Raia-lhe a farda o sangue.

De braços estendidos,

Alvo, louro, exangue,

Fita com olhar langue

E cego os céus perdidos.


Tão jovem! Que jovem era!

(Agora que idade tem?)

Filho único, a mãe lhe dera

Um nome e o mantivera:

«O menino da sua mãe.»


Caiu-lhe da algibeira

A cigarreira breve.

Dera-lha a mãe. Estava inteira

E boa a cigarreira.

Ele é que já não serve.


De outra algibeira, alada

Ponta a roçar o solo, 

A brancura embainhada

De um lenço... Deu-lho a criada

Velha que o trouxe ao colo.


Lá longe, em casa, há a prece:

«Que volte cedo, e bem!»

(Malhas que o Império tece!)

Jaz morto, e apodrece,

O menino da sua mãe.


Fernando Pessoa


(F. Faria)

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (17)

 

AS PEQUENINAS COISAS

 

São elas, as pequeninas coisas.

Nos portos que toquei, por música,

no estribilho agridoce em que sempre

me põem as danças, elas lá estão,

as graciosas,

mas trazendo pela mão

rosas blindadas por um azeite feroz.

 

Abrem-se sussurram

com lâminas fininhas

entalam-nos entre o peso dos dias.

Mas elas, as pequeninas coisas,

bem pouco se parecem com a política

ou com essa gramática que se usa agora

enquanto se espera pelo almoço.

 

Eu falo delas

das que roçam o que têm

por um antigo e infelicíssimo modo de chorar.

 

ARMANDO DA SILVA CARVALHO, O Comércio dos Nervos (1968)



23 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (16)

 

A ÁRVORE

 

Semelhante à sombra do homem,

assim chego à luz das chamas. Ardo

em dúvida, múltiplo e dividido,

e também ouço o barulho dos que medem

a dupla distância: da razão à loucura,

da cabeça aos pés.

Na verdade, os áridos olhos evitam o azul,

a cor uníssona,

e rendem ao túmulo solar o culto

da sua própria abertura.

Pródigos em sagrado

para que eu, receosamente, nomeie

os grandes braços da tempestade.

 

NUNO JÚDICE, O Mecanismo Romântico da Fragmentação (1975)

 


21 de outubro de 2023

101 poemas portugueses - #3


Serranilha


A serra é alta, fria e nevosa:
vi venir serrana, gentil, graciosa.
Vi venir serrana gentil graciosa
cheguei-me per'ela con gran cortezia.
Cheguei-me per'ela com gran cortezia,
disse-lhe: «Senhora, quereis companhia?»
Disse-me: «Escudeiro segui vossa via.»

Gil Vicente (c. 1465 - c. 1576)
in Sophia de Mello Breyner Andresen, Primeiro Livro de Poesia (1991)

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (15)

 

SE TU VIESSES VER-ME…

 

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,

A essa hora dos mágicos cansaços,

Quando a noite de manso se avizinha,

E me prendesses toda nos teus braços…

 

Quando me lembra: esse sabor que tinha

A tua boca… o eco dos teus passos…

O teu riso de fonte… os teus abraços…

Os teus beijos… a tua mão na minha…

 

Se tu viesses quando, linda e louca,

Traça as linhas dulcíssimas dum beijo

E é de seda vermelha e canta e ri

 

E é como um cravo ao sol a minha boca…

Quando os olhos se me cerram de desejo…

E os meus braços se estendem para ti…

 

FLORBELA ESPANCA, Charneca em Flor (1931)


20 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (14)

 

CARTA A RUI FEIJÓ SOBRE O MISTÉRIO DE ORIANA

 

Oriana adormeceu à beira-mar

e os seus cabelos longos de tristeza

salgou-os nessas ondas a coalhar

que há no mar do silêncio à portuguesa.

Correram-lhe das pálpebras pesadas

o Guadiana e o Tejo, o Minho e o Doiro;

o sol posto deixou-lhe as mãos doiradas,

e adormeceu com luz como um tesoiro.

Que estranho nome o de Oriana: estrela,

mulher ou pátria? flor, constelação?

Palavra numerosa, será ela

o múltiplo acordar desta canção:

aquela por quem eu, e por seu pranto,

sustenho a espada de Amadis e canto.

 

CARLOS DE OLIVEIRA, Terra de Harmonia (1950)


19 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (13)

 

DAQUI, DESTA LISBOA…

 

Daqui, desta Lisboa compassiva,

Nápoles por suíços habitada,

onde a tristeza vil e apagada

se disfarça de gente mais activa;

 

daqui, deste pregão de voz antiga,

deste traquejo feroz de motoreta

ou do outro de gente mais selecta

que roda a quatro a nalga e a barriga;

 

daqui, deste azulejo incandescente,

da soleira de vida e piaçaba,

da sacada suspensa no poente,

do ramudo tristôlho que se apaga;

 

daqui, só paciência, amigos meus!

Peguem lá o soneto e vão com Deus…

 

ALEXANDRE O´NEILL, De Ombro na Ombreira (1969)


18 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (12)

 

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL

 

Põe devagar os dedos

devagar…

 

e sobe     devagar

até ao cimo

 

o suco lento que sentes

escorregar

é o suor das grutas

o seu vinho

 

Contorna o poço

aí tens de parar

descer, talvez

tomar outro caminho…

 

Mas põe os dedos e sobe

devagar…

 

Não tenhas medo

daquilo que te ensino

 

MARIA TERESA HORTA, Educação Sentimental (1975)


POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (11)

 

A PORTA APORTA

 

a porta roda ao invés da lua

a porta roda bússola enterrada ao invés dos olhos

a porta geme é um cão nocturno

a porta geme extinta na trela da noite

a porta areia

a porta caruncho pária de mar

a porta maré que vem e que vai que bate e que fecha

a porta com máscara de morte

a porta sem sorte

a porta joelho na alma das portas

a porta mulher da casa de passe

a porta manchou a manhã com o grito de porta

a porta enforcada no mastro da casa

a porta por asa

a porta roda

a porta sexo a vida toda

a porta tosca da madrugada pregos são estrelas mortas

a porta pregada

a porta leilão

a porta batente a porta aranha por coração

a porta tu

a porta eu

a porta ninguém na terra pequena

a porta roda

a porta geme

a porta facho

a porta leme

 

LUIZA NETO JORGE, Quarta Dimensão (1961)


17 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (10)

 

CARTA ABERTA

 

Um homem progride, blindado e hirsuto

como um porco-espinho.

É o poeta no seu reduto

abrindo caminho.

Abrindo caminho com passos serenos

e clava na mão,

que as noites são grandes e os dias pequenos

nesta criação.

 

Esmagando as boninas, os cravos e os lírios,

cortando as carótidas às aves canoras.

Chegaram as horas

de acender os círios,

de velar as ninfas no estreito caixão,

de enterrar as frases e as vozes incautas,

de oferecer a Lua para os astronautas

e as rosas fragantes à destilação.

 

ANTÓNIO GEDEÃO, Linhas de Força (1967)


16 de outubro de 2023

101 poemas portugueses #2


Cantiga sua partindo-se


Senhora, partem tão tristes
Meus olhos por vós, meu bem,
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,
Tão doentes da partida,
Tão cansados, tão chorosos,
Da morte mais desejosos
Cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes os tristes,
Tão fora d'esperar bem,
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.


João Roiz de Castelo Branco (Sécs. XV-XVI).
antologiado por Garcia de Resende no Cancioneiro Geral

15 de outubro de 2023

MIL SÓIS RESPLANDECENTES

Para não ter de assumir o desconforto (ou a desvergonha) de recomendar o que proponho, a leitura deste livro excelente de Khaled Hosseini, deixo a missão a leitora cuidadosa, persistente e informada.

Oiçam-na! https://youtube.com/watch?v=dK7JAX7xprg&feature=share

13 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (9)

 

ELEGIA PARA UMA GAIVOTA

 

Morreu no Mar a gaivota mais esbelta,

a que morava mais alto e trespassava

de claridade as nuvens mais escuras com os olhos.

 

Flutuam quietas, sobre as águas, suas asas.

Água salgada, benta de tantas mortes angustiosas, aspergiu-a.

E três pás de ar pesado para sempre as viagens lhe vedaram.

 

Eis que deixou de ser sonho apenas sonhado.

 – : É finalmente sonho puro,

sonho que sonha finalmente, asa que dorme voos.

 

Cantos dos pescadores, embalai-a!

Versos dos poetas, embalai-a!

Brisas, peixes, marés, rumores das velas, embalai-a!

 

Há na manhã um gosto vago e doce de elegia,

tão misteriosamente, tão insistentemente,

sua presença morta em tudo se anuncia.

 

Ela vai, sereninha e muito branca.

E a sua morte simples e suavíssima

é a ordem-do-dia na praia e no mar alto.

 

SEBASTIÃO DA GAMA, Campo Aberto (1951)


12 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (8)

 

Não. Beijemo-nos, apenas.

Nesta agonia da tarde.

 

Guarda –

Para outro momento,

Teu viril corpo trigueiro.

 

O meu desejo não arde

E a convivência contigo

Modificou-me – sou outro…

 

A névoa da noite cai.

 

Já mal distingo a cor fulva

Dos teus cabelos – És lindo!

 

A morte

Devia ser

Uma vaga fantasia!

 

Dá-me o teu braço: – não ponhas

Esse desmaio na voz.

 

Sim, beijemo-nos, apenas!,

  Que mais precisamos nós?

 

ANTÓNIO BOTTO, Canções (1921-1932)


11 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (7)

 

AO LONGE OS BARCOS DE FLORES

 

Só, incessante, um som de flauta chora,

Viúva, grácil, na escuridão tranquila,

– Perdida voz que de entre as mais se exila,

– Festões de som dissimulando a hora.

 

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila

E os lábios, branca, do carmim desflora…

Só, incessante, um som de flauta chora,

Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

 

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora

Cauta, detém. Só modulada trila

A flauta flébil… Quem há-de remi-la?

Quem sabe a dor que sem razão deplora?

 

Só, incessante, um som de flauta chora…

 

CAMILO PESSANHA, Clepsidra  (1920)


10 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (6)


SALOMÉ

 

Insónia roxa. A luz a virgular-se em medo,

Luz morta de luar, mais Alma do que a lua…

Ela dança, ela range. A carne, álcool de nua,

Alastra-se pra mim num espasmo de segredo…

 

Tudo é capricho ao seu redor, em sombras fátuas…

O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou…

Tenho frio… Alabastro!... A minh´Alma parou…

E o seu corpo resvala a projectar estátuas…

 

Ela chama-me em Íris. Nimba-se a perder-me,

Golfa-me os seios nus, ecoa-me em quebranto…

Timbres, elmos, punhais… A doida quer morrer-me:

 

Mordura-se a chorar – há sexos no seu pranto…

Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me

Na boca imperial que humanizou um Santo…

 

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, Orpheu, nº 1, Janeiro-Fevereiro-Março de 1915 

9 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (5)

 

Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz, talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anónima viuvez,

 

Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar.

 

Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões p´ra cantar que a vida.

 

Ah, canta, canta sem razão!

O que em mim sente ´stá pensando.

Derrama no meu coração

A tua incerta voz ondeando!

 

Ah, poder ser tu, sendo eu!

Ter a tua alegre inconsciência,

E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo! Ó canção! A ciência

 

Pesa tanto e a vida é tão breve!

Entrai por mim dentro! Tornai

Minha alma a vossa sombra leve!

Depois, levando-me, passai!

 

FERNANDO PESSOA, Atena, nº 3, Dezembro de 1924

8 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (4)

 


JAZZ


Numa cadência de enigma

entrecortada de espasmos

saltos berros mil ruídos

o jazz canta a saudade

dum sonho que não se sabe.


Chora o jazz a velha perda

dum paraíso qualquer

deixado em longes de sombra.

 

E no seu ritmo diverso

langoroso e crepitante

martelado e insistente

triste e cheio de alegria

do que há muito está perdido.


ADOLFO CASAIS MONTEIRO, presença, nº 19, de Fevereiro / Março de 1929


7 de outubro de 2023

101 poemas portugueses - #1

Cantiga de amigo

Se eu podesse desamar
a que[n] me sempre desamou,

e podess' algun mal buscar
a quen me sempre mal buscou!
Assi me vingaria eu,
     se eu podesse coita dar
     a quen me sempre coita deu.

Mais non poss' eu enganar
meu coraçon, que m' enganou,
por quanto me fez desejar
a quen me nunca desejou.
E por esto non dormio eu
     se eu podesse coita dar
     a quen me sempre coita deu.

Mais rog' a Deus que desempar
a quen m' assi desemparou,
vel que podess' eu destorvar
a quen me sempre destorvou.
E logo dormiria eu,
     se eu podesse coita dar
     a quen me sempre coita deu.

Vel que ousass' eu preguntar
a quen me nunca preguntou,
por que me fez em si cuidar,
pois ela nunc' en mi cuidou.
E por esto lazeiro eu,
     se eu podesse coita dar
     a quen me sempre coita deu.

Pero da Ponte (Século XIII)

Cantiga presente nas três colectâneas da poesia trovadoresca: Cancioneiro da Ajuda, Cancioneiro da Vaticana e Cancioneiro da Biblioteca Nacional, in  Maria Ema Tarracha Ferreira, Antologia Literária Comentada -- Idade Média, Lisboa, Editorial Aster. s.d.
Há quem sustente ter sido Pero da Ponte galego (de Pontevedra), mas não se sabe. O certo é que foi trovador na corte de Afonso X o Sábio, rei de Leão e Castela, também ele grande poeta e avô de D. Dinis.