Deus,
Precisava bem de ter uma conversa a
sério contigo,
se tu não tivesses tido a cobardia de
não existires.
Mas safaste-te, não exististe e agora?
Para aqui sem te poder pedir satisfações
e atirar-te à cara com umas tantas
questões urgentes
e algum cuspo que viesse atrás.
Se tivesses um pouco de vergonha,
existias mesmo para aguentar com
dignidade
o que todos temos para te dizer,
eu, particularmente.
Mas és assim, sem espinha dorsal
e cavaste para onde é o não ser.
Porque eu queria que me dissesses aqui
sem tergiversares
para que é que fizeste esta merda.
E não me venhas com o palanfrório da
eternidade e o mais,
que não adianta.
Olha agora a gente a aturar os anjinhos
e os seus alaúdes
como se isso não fosse mais chatice
do que a chatice que querias compensar.
Não, a coisa é mais séria.
A coisa é que me puseste aqui sem me
dares cavaco
e eu que aguente.
A coisa é que és pior que os antigos
senhores
com os seus caprichos que metiam sangue,
torturas
e outros passatempos
de quem está farto e não sabe como
distrair-se.
Estavas chateado?
Fizeste a criação por não teres que
fazer?
Mas não vale a pena adiantar mais
conversa.
És assim
um tipo invertebrado,
sem um mínimo de vergonha,
e com tipos assim não gosto de
conversar.
Se não és o cobarde que te digo na cara
que és,
então existe mesmo, existe,
que depois sim, a gente vai ter a sério
uma conversa de homens como deve ser.
Até lá, metes-me náusea e não quero
sequer ouvir falar
de ti,
sequer ouvir,
sequer ouvir…
VERGÍLIO FERREIRA, Conta-Corrente III (1980-1981)