9 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (5)

 

Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz, talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anónima viuvez,

 

Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar.

 

Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões p´ra cantar que a vida.

 

Ah, canta, canta sem razão!

O que em mim sente ´stá pensando.

Derrama no meu coração

A tua incerta voz ondeando!

 

Ah, poder ser tu, sendo eu!

Ter a tua alegre inconsciência,

E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo! Ó canção! A ciência

 

Pesa tanto e a vida é tão breve!

Entrai por mim dentro! Tornai

Minha alma a vossa sombra leve!

Depois, levando-me, passai!

 

FERNANDO PESSOA, Atena, nº 3, Dezembro de 1924

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