«É impossível que certas flores sejam filhas das grosseiras plantas de que brotam.»
Fialho de Almeida, O País das Uvas (1893)
«É impossível que certas flores sejam filhas das grosseiras plantas de que brotam.»
Fialho de Almeida, O País das Uvas (1893)
«Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária.»
Machado de Assis, «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884)
POEMA DA VOZ QUE ESCUTA
Chamam-me lá em baixo.
São as coisas que não puderam decorar-me:
As que ficaram a mirar-me longamente
E não acreditaram;
As que sem coração, no relâmpago do grito,
Não poderam colher-me.
Chamam-me lá em baixo,
Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,
Onde a multidão formiga
Sem saber nadar.
Chamam-me lá em baixo
Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante
E transparente e desgraçado e vil
Quando a noite vem, criança distraída,
Que debilmente apaga os traços brancos
Deste quadro negro -- a Vida.
Chamam-me lá em baixo:
Voz de coisas, voz de luta.
É uma voz que estala e mansamente cala
E me escuta.
Março de 1939
Políbio Gomes dos Santos (Ansião, 1911-1939)
A Voz que Escuta (1944)
SONETO
Eu tenho a pagar 10 e na carteira
Apenas tenho 8. Eis a arrelia.
Eis-me buscando em mente uma maneira
De pagar o que devo em demasia.
E fico às vezes nisto todo o dia,
Um dia inteirinho em estúpida canseira.
Se busco distrair-me, de vigia,
Olha-me a rir a dívida grosseira.
E entretanto na rua vão passando
Carros de luxo, altivos salpicando
O lodaçal dos trilhos sobre mim...
E sinto, na revolta, o algarismo,
Do trono do brutal capitalismo,
A rir de nós, os bobos do festim!
Rui de Noronha (Lourenço Marques [Maputo], 1906-1943),
in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban III (1996)
«Almas, desesperos, ambições, impotências -- e a trégua desta noite, em volta da lareira.»
Ferreira de Castro, «O Natal em Ossela», (1932/1974), Os Fragmentos
INSTANTE
A cena é muda e breve:
Num lameiro,
Um cordeiro
A pastar ao de leve.
Embevecida,
A mãe ovelha deixa de remoer
E a vida
Pára também, a ver.
Miguel Torga (São Martinho de Anta, Sabrosa, 1907 - Coimbra, 1995)
Diário I (1941)
«Mary virara-se outra vez de costas e Giovanni quis adivinhar-lhe a direcção dos olhos, acompanhá-los depois no voo extasiado que terminava na torre do Palazzo Vecchio.»
Augusto Abelaira, A Cidade das Flores, 1959
PARTIR!,,,
«Súbito, uma revoada de vozes escapou-se em surdina do âmago da igreja e derramou pelo claustros o clamor inquietante duma dolência arrastada.»
Manuel Ribeiro, A Catedral, 1920
«O automóvel roda apressado, galgando covas, trepidando, queixando-se da aspereza do caminho.»
Adelino Mendes, «A cidade d'Albert», A Capital, Lisboa, 29-III-1917
TRISTÍSSIMA CANÇÃO
«É um pobre -- é um pobre de pedir --, é um fantasma.»
Raul Brandão, O Pobre de Pedir, póst., 1931
«À beira da estrada, as duas filas de altas e esbeltas árvores, martirizadas pelo frio, parecem sentinelas que não se fatigam nunca, guardando e vigiando este pedaço de terra francesa...»
Adelino Mendes, «A cidade d'Albert», A Capital, Lisboa, 29-III-1917
«A obra em si mesmo é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.»
Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881
CANTAM AO LONGE
Cantam ao longe. Anoitece.
Faz frio pensar na vida;
E a Natureza parece
Dizer, em voz comovida,
Que o Homem não a merece.
Carlos Queirós (1907-1949),
Desaparecido (1935)
O certo é que, esta manhã, ao fazer a minha habitual visita à loja da Bertrand do Allegro de Sintra, dei com este novo romance de Miguel Real (aliás, apetitoso). E não é que uma das primeiras páginas é ocupada com este poema do nosso ilustre confrade do C.L.M.F.C., Manuel Nunes, sendo encimada com a nota: "O mais belo poema sobre Jesus escrito em Portugal em 2023".
Muito justo destaque. Mais do que um privilégio, é um orgulho para mim partilhar aquele cenáculo com Manuel de Matos Nunes!
«Ele pertencia à família dos Milhanos de Marinhais, sempre famosos no Ribatejo como arrozeiros sabidos e safos de mândria.»
Alves Redol, Gaibéus, 1939
«E era o único grito que quebrava o silêncio, também volátil, das velhas árvores em êxtase.»
Ferreira de Castro, Emigrantes, 1928
«A água vinha de longe por uma caleira de pedra, e era sua uma toada tão leda e inquebrantável, que parecia mesmo a pulsação do silêncio.»
Aquilino Ribeiro, A Via Sinuosa, 1918
POEMA DO CÃO AO ENTARDECER
Um cão no areal corria presto.
RECREIO
Na claridade da manhã primaveril,
Ao lado da brancura lavada da escola,
As crianças confraternizam com a alegria das aves...
A mão doce do vento afaga-lhes os cabelos,
E o sol abre-lhes rosas nas faces saudáveis
-- Um sol discreto que se esconde às vezes entre nuvens brancas...
As meninas dançam de roda e cantam
As suas cantigas simples, de sentido obscuro e incerto,
Acompanhadas de gestos senhoris e graves.
Os rapazes correm sem tino e travam lutas,
Gritam entusiasmados o amor espontâneo à vida,
A vida que vai chegando despercebida e breve...
E a jovem mestra olha todos enlevadamente,
Com um sorriso misterioso nos lábios tristes...
Alberto de Serpa (Porto, 1906-1992),
in José Régio, Poesia de Ontem e de Hoje para o Nosso Povo Ler (1956)
NASCIMENTO
A minha égua lazã
Teve uma linda cria,
Nascida antemanhã,
Mal, ao de leve, despontava o dia...
Cá fora,
Na placidez da hora enregelada e fria,
Silenciosa e deserta
A terra dormitava.
E pela porta aberta
Da velha estrebaria,
Um hálito de vida se escapava
E, como fumo, manso se perdia.
Sombras de uma lanterna fraca
Dançavam, ágeis, na parede escura.
E brandamente,
Naquela luz opaca,
Tudo envolvia uma doçura quente.
Sobre a palha doirada,
Enquanto o sol aos poucos
Ia surgindo à porta,
A mãe jazia, agora descansada.
E a dois passos, imóvel e estirada,
A cria parecia ter nascido
Pra logo ficar morta,
O corpo já doído
Do trabalho da vida começada.
Venho assomar-me à porta,
A contemplar o meu amigo dia.
E o campo, todo branco de geada,
Brilha até onde a minha vista alcança...
E, infantilidade,
Ou despropositada poesia,
O nascimento, a hora, a luz do dia,
Dão-me um fecundo amanhecer de esperança.
Francisco Bugalho (Porto, 1905 - Castelo de Vide, 1949)
presença #51, Coimbra, Março de 1938,
OCEÂNIAS
Ondas do mar me deitaram
sobre o calor das areias
que ao meu corpo se moldaram
pra aquecer as minhas veias.
E aquele corpo de escrava
dando-me força a vencia
pelo gozo que me dava
para o gozo que sofria.
A noite vinha a descer
e subia a maré-cheia...
Eu já tinha o meu poder:
fugi à praia, deixei-a.
Foi assim que regressei
das conquistas do mar bravo,
e ergui palácios de rei
sobre refúgios de escravo.
Branquinho da Fonseca (Mortágua, 1905 - Malveira da Serra, Cascais,1974),
in presença #7, Coimbra, 8-XI-1927