2 de janeiro de 2025

o início de EU À SOMBRA DA FIGUEIRA DA ÍNDIA

«A gente lá em Luanda tinha umas barrocas debaixo da casa, para onde dava a balaustrada do jardim.» Alberto Oliveira Pinto, Eu à Sombra da Figueira da Índia, Porto, Edições Afrontamento, 1990, p. 9.

10 de dezembro de 2024

Pelo Tejo vai-se para o mundo (04)

 UMA ALEGRE PRUDÊNCIA
(César Franck: Sonata para Violoncelo e Piano em Lá Maior)

Tanto foi o que ignorei e o que perdi.
E no entanto salva-me o poderoso
som de Jacqueline du Prè, a violoncelista
que morreu muito jovem.
Cada um é o solista do seu próprio silêncio:
tem de saber muito bem quando deve entrar.
Se calhar sou um rato empedernido pela dor
que numa manhã de Primavera
parou para ouvir o canto dos pássaros.



UNA ALEGRE PRUDÈNCIA
(César Franck: Sonata per a violoncel i piano en la major)

És tant el que he ignorat i el que he perdut.
I, en canvi, com em salva aquell so poderós
de Jacqueline du Prè, la violoncel-lista
que va morir tan jove.
Cadascú és el solista del seu propi silenci:
li cal saber molt bé quan ha d'entrar.
Potser soc una rata que el dolor
va endurir i que, un matí de primavera,
s'ha parat a escoltar el cant dels ocells.



Joan Margarit em "Animal de Bosque"
Tradução de Àlex Tarradellas, Rita Custódio e Miguel Filipe Mochila
Língua Morta | Flâneur
Abril de 2024

pedra-de-toque #11

«Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária.» 

Machado de Assis, «Cantiga de esponsais»Histórias sem Data (1884)

8 de dezembro de 2024

101 poemas portugueses #56

 

POEMA DA VOZ QUE ESCUTA


Chamam-me lá em baixo.

São as coisas que não puderam decorar-me:

As que ficaram a mirar-me longamente

E não acreditaram;

As que sem coração, no relâmpago do grito,

Não poderam colher-me.

Chamam-me lá em baixo,

Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,

Onde a multidão formiga

Sem saber nadar.

Chamam-me lá em baixo

Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante

E transparente e desgraçado e vil

Quando a noite vem, criança distraída,

Que debilmente apaga os traços brancos

Deste quadro negro -- a Vida.

Chamam-me lá em baixo:

Voz de coisas, voz de luta.

É uma voz que estala e mansamente cala

E me escuta.

 

Março de 1939


Políbio Gomes dos Santos (Ansião, 1911-1939)

A Voz que Escuta (1944)

29 de novembro de 2024

101 poemas portugueses - #55

 

SONETO


Eu tenho a pagar 10 e na carteira
Apenas tenho 8. Eis a arrelia.
Eis-me buscando em mente uma maneira
De pagar o que devo em demasia.

E fico às vezes nisto todo o dia,
Um dia inteirinho em estúpida canseira.
Se busco distrair-me, de vigia,
Olha-me a rir a dívida grosseira.

E entretanto na rua vão passando
Carros de luxo, altivos salpicando
O lodaçal dos trilhos sobre mim...

E sinto, na revolta, o algarismo,
Do trono do brutal capitalismo,
A rir de nós, os bobos do festim!


Rui de Noronha (Lourenço Marques [Maputo], 1906-1943),

in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban III (1996)

25 de novembro de 2024

pedra de toque #10

«Almas, desesperos, ambições, impotências -- e a trégua desta noite, em volta da lareira.»

Ferreira de Castro, «O Natal em Ossela», (1932/1974), Os Fragmentos

24 de novembro de 2024

101 POEMAS PORTUGUESES . #54

 

INSTANTE


A cena é muda e breve:
Num lameiro,
Um cordeiro
A pastar ao de leve.

Embevecida,
A mãe ovelha deixa de remoer
E a vida
Pára também, a ver.


Miguel Torga (São Martinho de Anta, Sabrosa, 1907 - Coimbra, 1995)

Diário I (1941)



15 de novembro de 2024

pedra de toque - #9

«Mary virara-se outra vez de costas e Giovanni quis adivinhar-lhe a direcção dos olhos, acompanhá-los depois no voo extasiado que terminava na torre do Palazzo Vecchio.» 

Augusto Abelaira, A Cidade das Flores, 1959

13 de novembro de 2024

101 poemas portugueses - #53


PARTIR!,,,


Eu vou-me embora para além do Tejo,
não posso mais ficar!

Já sei de cor os passos de cada dia,
na boca as mesmas palavras
batidas nos meus ouvidos...
-- Ai as desgraças humanas destas paisagens iguais!...
Abro os olhos e não vejo
já não ando, já não oiço...
Não posso mais...
Grita-me a Vida de longe
e eu vou-me embora para além do Tejo.

Passa a ave no céu bebendo azul e diz:    Vem!
O vento envolve-me numa carícia,
envolve-me e murmura: -- Vem!
As ondas estalam nas praias e vão mar fora,
as mãos de espuma a prender-me os sentidos
chamam no fundo dos meus olhos: -- Vem!

-- Camaradas, eu vou, esperai um pouco...
Ai, mas a vida nunca espera por ninguém...
E a noite chega vingadora;
o vento rasga-me o fato,
as ondas molham-me a carne
e a ave pia misticamente no ar;
abro os olhos e não vejo,
já não ando, já não oiço
-- e fico, desgraçado de ficar!...



Manuel da Fonseca (Santiago do Cacém, 1911 - Lisboa, 1993)
Rosa dos Ventos (1940)

7 de novembro de 2024

pedra-de-toque #8

«Súbito, uma revoada de vozes escapou-se em surdina do âmago da igreja e derramou pelo claustros o clamor inquietante duma dolência arrastada.» 

Manuel Ribeiro, A Catedral, 1920

29 de outubro de 2024

pedra-de-toque #7

«O automóvel roda apressado, galgando covas, trepidando, queixando-se da aspereza do caminho.» 

Adelino Mendes, «A cidade d'Albert», A Capital, Lisboa, 29-III-1917

27 de outubro de 2024

101 poemas portugueses - #52


TRISTÍSSIMA CANÇÃO


Nesta saudade em que vivo
Há um mistério que eu estranho:
É pesar-me o bem que tive
Mais do que os males que tenho.
 
E ainda é maior a amargura,
Lembrando que o bem passado
Foi menos do que mesquinho,
pois foi apenas sonhado!
 
Nasceu dos meus pensamentos
Altivos e namorados,
E fez, morrendo, a harmonia
Dos meus versos magoados...
 
E mesmo assim, que saudade
Eu tenho, de encanto estranho,
Que lembra o bem que eu não tive,
E é o maior mal dos que eu tenho!...


Guilherme de Faria (Guimarães, 1907 - Boca do Inferno, Cascais, 1929),
Desencanto (1929)

 

22 de outubro de 2024

pedra-de-toque #6

«É um pobre -- é um pobre de pedir --, é um fantasma.» 

Raul Brandão, O Pobre de Pedir, póst., 1931

21 de outubro de 2024

pedra-de-toque #5

«À beira da estrada, as duas filas de altas e esbeltas árvores, martirizadas pelo frio, parecem sentinelas que não se fatigam nunca, guardando e vigiando este pedaço de terra francesa...» 

Adelino Mendes, «A cidade d'Albert», A Capital, Lisboa, 29-III-1917

17 de outubro de 2024

Pedra-de-toque #4

«A obra em si mesmo é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.» 

Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881

16 de outubro de 2024

101 poemas portugueses - #51

 

CANTAM AO LONGE


Cantam ao longe. Anoitece.
Faz frio pensar na vida;
E a Natureza parece
Dizer, em voz comovida,
Que o Homem não a merece.

Carlos Queirós (1907-1949),

Desaparecido (1935)

15 de outubro de 2024

"INSOLÚVEL FLAUTIM"




Provavelmente, para alguns leitores e visitantes, o que venho partilhar não será novidade.

O certo é que, esta manhã, ao fazer a minha habitual visita à loja da Bertrand do Allegro de Sintra, dei com este novo romance de Miguel Real (aliás, apetitoso). E não é que uma das primeiras páginas é ocupada com este poema do nosso ilustre confrade do C.L.M.F.C., Manuel Nunes, sendo encimada com a nota: "O mais belo poema sobre Jesus escrito em Portugal em 2023".

Muito justo destaque. Mais do que um privilégio, é um orgulho para mim partilhar aquele cenáculo com Manuel de Matos Nunes! 
 

14 de outubro de 2024

Pedra-de-toque #3

«Ele pertencia à família dos Milhanos de Marinhais, sempre famosos no Ribatejo como arrozeiros sabidos e safos de mândria.» 

Alves Redol, Gaibéus, 1939

11 de outubro de 2024

Pedra-de-toque #2

«E era o único grito que quebrava o silêncio, também volátil, das velhas árvores em êxtase.» 

Ferreira de Castro, Emigrantes, 1928

10 de outubro de 2024

Pedra-de-toque #1

«A água vinha de longe por uma caleira de pedra, e era sua uma toada tão leda e inquebrantável, que parecia mesmo a pulsação do silêncio.» 

Aquilino Ribeiro, A Via Sinuosa, 1918

5 de outubro de 2024

Poesia Portuguesa (04)

 VII

Não, não queremos cantar
as canções azuis
dos pássaros moribundos.

Preferimos andar aos gritos
para que os homens nos entendam
na escuridão das raízes.

Aos gritos como os pescadores quando puxam as redes
em tardes de fome pitoresca para quadros de exposição.
Aos gritos como os fogueiros que se lançam vivos nas fornalhas
para que os navios cheguem intactos aos destinos dos outros.
Aos gritos como os escravos que arrastaram as pedras no Deserto
para o grande monumento à Dor Humana do Egipto.
Aos gritos como o idílio dum operário e duma operária
a falarem de amor
ao pé duma máquina de tempestade
a soluçar cidades de fome
na cólera dos ruídos ...

Aos gritos, sim, aos gritos.

E não há maior orgulho
do que o nosso destino
de nascer em todas as bocas ...

... Nós, os poetas viris
que trazemos nos olhos
as lágrimas dos outros.



José Gomes Ferreira em "Poesia I"
Heróicas 1936. 1937. 1938
Portugália Editora
3ª edição, Março de 1967
Páginas 108 e 109

4 de outubro de 2024

o início de GENTE COMUM - UMA HISTÓRIA NA PIDE

«O meu nome é Aurora Rodrigues», Aurora Rodrigues, Gente Comum -- Uma História na Pide, 2.ª ed., introduções de Paula Godinho e António Monteiro Cardoso, Lisboa, Parsifal , 2022.

2 de outubro de 2024

101 poemas portugueses - #50

 

POEMA DO CÃO AO ENTARDECER


Um cão no areal corria presto.

Presto corria o cão no areal deserto.
 
Era ao entardecer, e o cão corria presto
no areal deserto.
 
Corria em linha recta, presto, presto,
pela orla do mar.
Pela orla do mar, em linha recta,
corria presto, o cão.
 
Era ao entardecer.
No areal as águas derramadas
nas angústias do mar
lambuzavam de espuma as patas automáticas
do cão que presto, presto, corria em linha recta
pela orla do mar.
 
Sem princípio nem fim, em linha recta,
pela orla do mar.
 
Era ao entardecer,
na hora espessa, peganhenta e húmida,
em que um resto de luz no espasmo da agonia
geme nas coisas e empasta-as como goma.
No espaço diluído, esfumado e cinzento,
corria presto o cão no areal deserto.
Corria em linha recta, presto, presto,
definindo uma forma movediça
que perfurava a névoa e prosseguia
pela orla do mar, em linha recta,
focinho levantado, olhos estáticos,
fixando o breve ponto onde se encontram
além de todo o longe
as rectas que se dizem paralelas.
 
Alternavam-se as patas na cadência,
na cadência ritmada do movimento presto,
deixando no areal as marcas do contacto.
Presto, presto.
 
Como se um desejo o chamasse, corria presto o cão
no areal deserto.
O ritmo sempre igual, a língua pendurada,
os olhos como brocas, furadores de distâncias.
 
Em seu último espasmo a luz enrodilhou
o cão, o mar, o céu, o próximo e o distante.
Era um suposto cão correndo presto, presto,
num suposto areal, realmente deserto,
por uma linha recta mais suposta
que o areal e o mar.
Mas presto, presto, sempre presto, presto,

ia correndo o cão no areal deserto.


António Gedeão (1906-1997), Poemas Póstumos (1983)

23 de setembro de 2024

101 poemas portugueses - #49


RECREIO


Na claridade da manhã primaveril,
Ao lado da brancura lavada da escola,
As crianças confraternizam com a alegria das aves...

A mão doce do vento afaga-lhes os cabelos,
E o sol abre-lhes rosas nas faces saudáveis
-- Um sol discreto que se esconde às vezes entre nuvens brancas...

As meninas dançam de roda e cantam
As suas cantigas simples, de sentido obscuro e incerto,
Acompanhadas de gestos senhoris e graves.

Os rapazes correm sem tino e travam lutas,
Gritam entusiasmados o amor espontâneo à vida,
A vida que vai chegando despercebida e breve...

E a jovem mestra olha todos enlevadamente,
Com um sorriso misterioso nos lábios tristes...


Alberto de Serpa (Porto, 1906-1992), 

in José Régio, Poesia de Ontem e de Hoje para o Nosso Povo Ler (1956)

16 de setembro de 2024

13 de setembro de 2024

101 poemas portugueses - #48


NASCIMENTO


A minha égua lazã
Teve uma linda cria,
Nascida antemanhã,
Mal, ao de leve, despontava o dia...

Cá fora, 
Na placidez da hora enregelada e fria,
Silenciosa e deserta
A terra dormitava.
E pela porta aberta
Da velha estrebaria,
Um hálito de vida se escapava
E, como fumo, manso se perdia.

Sombras de uma lanterna fraca
Dançavam, ágeis, na parede escura.
E brandamente,
Naquela luz opaca,
Tudo envolvia uma doçura quente.

Sobre a palha doirada,
Enquanto o sol aos poucos 
Ia surgindo à porta,
A mãe jazia, agora descansada.
E a dois passos, imóvel e estirada,
A cria parecia ter nascido
Pra logo ficar morta,
O corpo já doído
Do trabalho da vida começada.

Venho assomar-me à porta,
A contemplar o meu amigo dia.
E o campo, todo branco de geada,
Brilha até onde a minha vista alcança...
E, infantilidade,
Ou despropositada poesia,
O nascimento, a hora, a luz do dia,
Dão-me um fecundo amanhecer de esperança.


Francisco Bugalho (Porto, 1905 - Castelo de Vide, 1949)

presença #51, Coimbra, Março de 1938,


6 de setembro de 2024

101 poemas portugueses - #47


OCEÂNIAS


Ondas do mar me deitaram
sobre o calor das areias
que ao meu corpo se moldaram
pra aquecer as minhas veias.

E aquele corpo de escrava
dando-me força a vencia
pelo gozo que me dava
para o gozo que sofria.

A noite vinha a descer
e subia a maré-cheia...
Eu já tinha o meu poder:
fugi à praia, deixei-a.

Foi assim que regressei
das conquistas do mar bravo,
e ergui palácios de rei
sobre refúgios de escravo.


Branquinho da Fonseca (Mortágua, 1905 - Malveira da Serra,  Cascais,1974),

in presença #7, Coimbra, 8-XI-1927

27 de agosto de 2024

LIRA MAIOR (5)

 

HORICLOR

 

Caem das gargantas negras as plumas

com que Horiclor se enfeita e se perfuma.

O tempo ondula a sua face lisa

em que pousam os pássaros anónimos.

Ele lava os presságios e o motor da aurora

e desafia o vazio com um arco-íris de nomes.

A partitura do vento, dos eclipses e distâncias

é um jogo em suas mãos de embriagado aeronauta.

Quando o silêncio da terra é absoluto

desenha ovelhas ou apenas uma árvore.

Outras vezes faz tremular uma bandeira de miséria

e sonho. Ele sabe onde se esconde a flor que nasce

do sexo das sereias e conhece a eloquência das magnólias.

Às vezes deseja que sopre um vento desesperado e se apaguem as estrelas

e um túmulo se abra com uma onda no meio.

O seu pensamento é inundado por rios subterrâneos

e as suas palavras brotam de uma pequena lâmpada situada no horizonte.

Então o vento abre os olhos e as torres incendeiam-se.

 

ANTÓNIO RAMOS ROSA – Nomes de Ninguém (1997)