Miguel Torga, Bichos (1940), 19.ª ed, Coimbra, 1995
Blog do Clube de Leitura do Museu Ferreira de Castro
Miguel Torga, Bichos (1940), 19.ª ed, Coimbra, 1995
Trindade Coelho, Os Meus Amores [1891], Mem Martins, Publicações Europa-América, s.d.
Dora Nunes Gago, Palavras Nómadas, Vila Nova de Famalicão, Húmus, 2023.
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NATAL DE POBRES
Quando a mulher adormeceu
naquela noite de Natal,
o homem foi, pé ante pé,
pôr um sapato (dela, não seu)
com um embrulho de jornal
na lareirinha da chaminé.
Um casal pobre... um ano mau...
Era um pedaço de bacalhau.
Ora alta noite, pela janela,
com fome e frio, entrou um gato
que, no escuro, cheirando aquela
comida boa no sapato,
rasgou o embrulho, comeu, comeu
e, quente e farto, adormeceu.
De manhã cedo, ela acordou,
foi à cozinha e viu o gatinho
adormecido no seu sapato.
Voltando ao quarto, feliz, falou
para o seu homem: -- Meu amorzinho,
como soubeste que eu queria um gato?
Leonel Neves (Faro, 1921 - Odiáxere, Lagos, 1996),
O Menino e as Estrelas (1979)
«Aprendi com o povo e com a vida, sou um escritor e não um literato, em verdade sou um obá -- em língua iorubá da Bahia obá significa ministro, velho, sábio: sábio da sabedoria do povo.»
Jorge Amado, Navegação de Cabotagem (1992)
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O audiolivro é fruto de um projeto no âmbito da ACTIS - Universidade Sénior de Sintra, e graças à gentileza dos estúdios da RCS - Rádio Clube de Sintra, dedicado a si.
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LUSITÃNIA
Cada poema
cada desenho
são os marinheiros que navegaram na minha cama
são uma revolução não só gritada na rua
são uma flor nascendo nos campos
e é o luar e a sua magia
e é a morte que não me quer
e é UMA MULHER
surpreendente como um marinheiro
luminosa como a palavra REVOLUÇÃO
tão natural como o malmequer
tão metafísica como o luar
tão desejada como a morte hoje
A MINHA MÃE
infinita e profunda
como o mar.
Artur do Cruzeiro Seixas (Amadora, 1920 - Lisboa, 2020)
Obra Poética I (2002)
«A Beleza como dever, a coragem como único caminho para o futuro.»
Rui Chafes, «O perfume das buganvílias», Entre o Céu e a Terra (2012)
Sophia de Mello Breyner Andresen, Contos Exemplares [1962], 4.ª ed., Lisboa, Portugália, s.d.
O SONHO SEM DESTINO
Se os caminhos são breves
e os dias tão compridos,
e as tuas mãos mais leves
que a espuma dos vestidos;
se é de ti que me ondeia
uma brisa subtil...
E a vaga diz: -- Sereia!
E o sonho diz: -- Abril!
Se cresces e dominas
os campos que acalento,
e inundas as colinas
de fontes que eu invento;
se tens na luz dos olhos
o misterioso apelo
das cidades de fogo,
das cidades de gelo;
se podes bem guardar
na tua mão fechada
o meu altivo Tudo
e o meu imenso Nada;
se cabe nos meus braços
a bruma que tu és,
e em algas e sargaços
te abraço nas marés;
se, puro, na presença
da nossa grande Casa,
pões na voz de horizonte
um lume de asa e brasa.
Não sei porque te sonho
na sombra matinal,
e ao meu lado te vejo,
real e irreal.
Sabeis -- adaga fria,
que ao meu peito cintilas --
onde se oculta o dia
das aragens tranquilas?
Se tudo sabes, mata
com dedos de oiro fino,
ou com gume de prata,
o sonho sem destino!
Natércia Freire (Benavente, 1919 - Lisboa, 2004)
Anel de Sete Pedras (1952 /
/ in Ana Hatherly, Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa (1960)
«Eu, muito simplesmente, emagrecia porque as nuvens que me alimentavam andavam cada dia mais escassas.»
Félix Cucurull, «Carta de despedida», Antologia do Conto Moderno; trad. Manuel de Seabra
FESTA ALEGÓRICA
«É impossível que certas flores sejam filhas das grosseiras plantas de que brotam.»
Fialho de Almeida, O País das Uvas (1893)
«Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária.»
Machado de Assis, «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884)
POEMA DA VOZ QUE ESCUTA
Chamam-me lá em baixo.
São as coisas que não puderam decorar-me:
As que ficaram a mirar-me longamente
E não acreditaram;
As que sem coração, no relâmpago do grito,
Não poderam colher-me.
Chamam-me lá em baixo,
Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,
Onde a multidão formiga
Sem saber nadar.
Chamam-me lá em baixo
Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante
E transparente e desgraçado e vil
Quando a noite vem, criança distraída,
Que debilmente apaga os traços brancos
Deste quadro negro -- a Vida.
Chamam-me lá em baixo:
Voz de coisas, voz de luta.
É uma voz que estala e mansamente cala
E me escuta.
Março de 1939
Políbio Gomes dos Santos (Ansião, 1911-1939)
A Voz que Escuta (1944)
SONETO
Eu tenho a pagar 10 e na carteira
Apenas tenho 8. Eis a arrelia.
Eis-me buscando em mente uma maneira
De pagar o que devo em demasia.
E fico às vezes nisto todo o dia,
Um dia inteirinho em estúpida canseira.
Se busco distrair-me, de vigia,
Olha-me a rir a dívida grosseira.
E entretanto na rua vão passando
Carros de luxo, altivos salpicando
O lodaçal dos trilhos sobre mim...
E sinto, na revolta, o algarismo,
Do trono do brutal capitalismo,
A rir de nós, os bobos do festim!
Rui de Noronha (Lourenço Marques [Maputo], 1906-1943),
in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban III (1996)
«Almas, desesperos, ambições, impotências -- e a trégua desta noite, em volta da lareira.»
Ferreira de Castro, «O Natal em Ossela», (1932/1974), Os Fragmentos
INSTANTE
A cena é muda e breve:
Num lameiro,
Um cordeiro
A pastar ao de leve.
Embevecida,
A mãe ovelha deixa de remoer
E a vida
Pára também, a ver.
Miguel Torga (São Martinho de Anta, Sabrosa, 1907 - Coimbra, 1995)
Diário I (1941)
«Mary virara-se outra vez de costas e Giovanni quis adivinhar-lhe a direcção dos olhos, acompanhá-los depois no voo extasiado que terminava na torre do Palazzo Vecchio.»
Augusto Abelaira, A Cidade das Flores, 1959
PARTIR!,,,
«Súbito, uma revoada de vozes escapou-se em surdina do âmago da igreja e derramou pelo claustros o clamor inquietante duma dolência arrastada.»
Manuel Ribeiro, A Catedral, 1920
«O automóvel roda apressado, galgando covas, trepidando, queixando-se da aspereza do caminho.»
Adelino Mendes, «A cidade d'Albert», A Capital, Lisboa, 29-III-1917
TRISTÍSSIMA CANÇÃO
«É um pobre -- é um pobre de pedir --, é um fantasma.»
Raul Brandão, O Pobre de Pedir, póst., 1931