19 de março de 2025

as aberturas de BICHOS

 

6. «Tenório». «Esta é a história verdadeira de Tenório, o galo.»

5. «Bambo». «O filho do caseiro novo é que lhe fez aquilo.»

4. «Morgado». «À ceia, o patrão, com cara de poucos amigos, recusara-lhe as festas desta maneira:»

3. «Madalena». «Queimava.»

2. «Mago». «Mago respirou fundo.»

1. «Nero». «Sentia-se cada vez pior.»


Miguel Torga, Bichos (1940), 19.ª ed, Coimbra, 1995 

18 de março de 2025

as aberturas de OS MEUS AMORES

11. «A Choca». «Aquela tarde, a Choca recolhera ao poleiro mais cedo do que o costume.»

10. «Luzia». «Mesmo ao fundo da povoação ficava, parece que já esquecida, a casita do António Valente.»

9. «"Terra Mater"». «Manhã de Julho.»

8. «Mãe!». «Bela cabra, a Ruça! -- posso dizê-lo aos senhores.»

7. «"Abyssus abyssum"». «Nesse dia, os dois pequenitos tinham jurado que haviam de ir ao rio.»

6.2. «Balada s - II. - Para a escola». «No velho casarão do convento é que era a aula.»

6.1. «Baladas - I. - Maricas» «Vocês lembram-se da Maricas, aquela magrinha de cabelos muito castanhos, quase louros, que morava defronte da redacção, lembram-se?»

5. «"Vae Victoribus!"». «Em Dezembro, às seis é noite cerrada.»

4.2. «Comédia da província - II. Tipos da terra». «Desembarcaram num largo.»

4.1. «Comédia da província - I. Prelúdios de festa». «Este ano, a Festa da Senhora das Dores devia ser coisa de estalo.» 

3. «Última dádiva». «Distante do rio apenas um tiro de bala ficava o horto do José Cosme, belo horto, ainda que pequeno, todo mimoso de frutas e hortaliças, fechado entre velhas paredes musgosas, atufadas em silvedo, comunicando com a estrada por um pequeno portelo mal seguro.»

2. «Sultão». «Ao cair da tarde, o Tomé da Eira entrava em casa cansado, esfalfado de andar um dia inteiro a mourejar no campo.»

1. «Idílio rústico». «Quando atravessou a povoação, rua abaixo, com o rebanho atrás dele, era ainda muito cedo.»


Trindade Coelho, Os Meus Amores [1891], Mem Martins, Publicações Europa-América, s.d.

17 de março de 2025

"Ferreira de Castro lido por Jaime Brasil"

 



"Conversas sobre Ferreira de Castro" - Sexta-feira, 21 de Março, 18 horas, no Museu Ferreira de Castro.





Com tactilização (degustação táctil) dos seus livros:

















 

Jaime Brasil (1896-1966), grande jornalista cultural, repórter, escritor, biógrafo, polemista e divulgador, foi um dos mais próximos amigos de Ferreira de Castro, cujas actividade literária e vida pessoal acompanhou de perto durante mais de quarenta anos, até à sua morte.

Os mais velhos, ligados à literatura e aos livros, conhecem-no, pelo menos de nome; mas se já com os ficcionistas -- poetas, romancistas e todos os outros -- é difícil conseguir que se mantenham à tona neste tempo voraz, os ensaístas e afins estão destinados aos alfarrabistas e a um público muito especializado.

Jaime Brasil não foi apenas um oficiante das "artes e das letras" -- título da página que durante algumas décadas coordenou n'O Primeiro de Janeiro -- mas um homem de acção: militar insurrecto, voluntário na Guerra Civil de Espanha, anarquista, jornalista, sindicalista, oposicionista, preso político, homem generoso, porém complicado e por vezes truculento. 

Escritor de ideias de primeira água, nos vinte livros que publicou avulta o género biográfico: de Rodin a Leonardo e Velázquez, ou de Balzac a Ferreira de Castro, passando por Victor Hugo e Zola, entre outros, e também a polémica, a reportagem, ou os de sexualidade, numa perspectiva libertária e emancipação feminina.

De que modo ele leu Ferreira de Castro é o que tentaremos descobrir.



10 de março de 2025

as aberturas de PALAVRAS NÓMADAS

12. «Lou Lim Leoc». «Passamos o portão, entramos num reino de magia.»

11. «No reino das lâmpadas». «Acordarmos de manhã cedo com o pescoço dorido e decidirmos comprar uma almofada mais confortável pode ter consequências verdadeiramente imprevisíveis.»

10. «Dia de São Pedreiro». «O processo de procura de casa em Macau é algo que ultrapassa as fronteiras da mais fértil imaginação.»

9. «A chegada: no dorso do dragão». «Chega-se a Macau, a chamada "Las Vegas do Oriente", depois de 27 horas de viagem, uns emplastros nas costas, curvada devido a fortes dores que começam a habitar o corpo na véspera.»

8. «Macau -- cheiros, sabores e saberes colados à alma». «Vi Macau, pela primeira vez, em Agosto de 1991 -- um prémio de escrita inesperado, quando terminara o primeiro ano da minha licenciatura -- conduziu-me àquele universo, onde tudo era diferente, e, ao mesmo tempo, embrulhado na breve névoa da familiaridade.»

7.  «Em Amherst: no universo de Emily Dickinson». «Uma carícia fria a semear salpicos de branco no rosa-dourado, nos múltiplos tons de castanho das árvores.»

6. «Numa esquadra em Montevideu: entre as paredes do devaneio». «Estamos na esquadra da polícia de Montevideu.»

5. «Pouca sorte com cabeleireiros». «Manhã de luz em Montevideu, um sol de inverno que brilha mas não aquece.»

4. «Da identidade provisória e amarela». «Estou novamente nessa longa fila, numa rua erma, escondida da Cidade Velha, de uma decadência cinzenta a escamotear tempos áureos já quase esquecidos, junto ao edifício das migrações, a destoar do panorama humano que me rodeia.»

3. «O dragão da biblioteca». «Entro agora na biblioteca da Faculdade de Humanidades da Universidade da República Oriental do Uruguai.»

2. «A visitante». «Abro as portas da memória e entro num dia de Março de 2002, uma página de calendário já desbotada, arrancada dos muros escorregadios do tempo.»

1. «Voo para um novo tempo». «Revejo aquele 30 de Novembro de 2001 como uma espécie de retrato a sépia posto em cima da cómoda da memória, as horas atribuladas, a ida de comboio para Lisboa, depois de táxi para o aeroporto.»


Dora Nunes Gago, Palavras Nómadas, Vila Nova de Famalicão, Húmus, 2023.

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9 de março de 2025

101 poemas portugueses - #61

 

NATAL DE POBRES


Quando a mulher adormeceu

naquela noite de Natal,

o homem foi, pé ante pé,

pôr um sapato (dela, não seu)

com um embrulho de jornal

na lareirinha da chaminé.

 

Um casal pobre... um ano mau...

Era um pedaço de bacalhau.

 

Ora alta noite, pela janela,

com fome e frio, entrou um gato

que, no escuro, cheirando aquela

comida boa no sapato,

rasgou o embrulho, comeu, comeu

e, quente e farto, adormeceu.

 

De manhã cedo, ela acordou,

foi à cozinha e viu o gatinho

adormecido no seu sapato.

Voltando ao quarto, feliz, falou

para o seu homem: -- Meu amorzinho,

como soubeste que eu queria um gato? 


Leonel Neves (Faro, 1921 - Odiáxere, Lagos, 1996),

O Menino e as Estrelas (1979) 

27 de fevereiro de 2025

pedra-de-toque #15

«Aprendi com o povo e com a vida, sou um escritor e não um literato, em verdade sou um obá -- em língua iorubá da Bahia obá significa ministro, velho, sábio: sábio da sabedoria do povo.» 

Jorge Amado, Navegação de Cabotagem (1992)

25 de fevereiro de 2025

LINHAS ENTRE NÓS em audiolivro

Depois da 1.ª edição em 2015, o confrade J. A. Marcos Serra disponibilizou livremente, na Bibliotrónica Portuguesa, a 2.ª edição em suporte digital , em 2018 (depois de aceder, clicar em PDF).
Atento às pessoas que gostam de livros, mas que, por qualquer razão, preferem via auditiva, acaba de oferecer ao público a 3.ª edição, por duas vias:

- em Internet Archive, ficheiros MP3 (aceder, em download options selecionar VBR MP3, clicar no botão de descarga 20 files e aguardar até ao fim); com esta opção, pode escutar os ficheiros posteriormente, a partir do seu computador ou outro aparelho;
- em Spotify, em corrente / streaming (escuta on-line a partir de qualquer dispositivo, como um podcast comum).
Para quem prefira esta via, dispõe ainda das seguintes alternativas:
- a Internet Archive (que disponibiliza as duas possibilidades);
- a Apple Podcasts;
- a Listen Notes;
- a Ivoox;
- a Rephonic.
- a Audiofiction

O audiolivro é fruto de um projeto no âmbito da ACTIS - Universidade Sénior de Sintra, e graças à gentileza dos estúdios da RCS - Rádio Clube de Sintra, dedicado a si.

Use sem reservas e partilhe com pessoas a quem possa interessar.

20 de fevereiro de 2025

101 poemas portugueses - #59

 

LUSITÃNIA


Os que avançam de frente para o mar
E nele enterram como uma aguda faca
A proa negra dos seus barcos
Vivem de pouco pão e de luar.

Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 1919 - Lisboa, 2004)
in Mar Novo (1958)

11 de fevereiro de 2025

101 poemas portugueses #60


Cada poema
cada desenho
são os marinheiros que navegaram na minha cama
são uma revolução não só gritada na rua
são uma flor nascendo nos campos
e é o luar e a sua magia
e é a morte que não me quer
e é UMA MULHER
surpreendente como um marinheiro
luminosa como a palavra REVOLUÇÃO
tão natural como o malmequer
tão metafísica como o luar
tão desejada como a morte hoje
A MINHA MÃE
infinita e profunda
como o mar.


Artur do Cruzeiro Seixas (Amadora, 1920 - Lisboa, 2020)

Obra Poética I (2002)


7 de fevereiro de 2025

o início de MONTEVIDEU

«Em Fevereiro de 74 desloquei-me a Paris com a anacrónica intenção de me converter num escritor dos anos vinte, estilo "geração perdida"». Enrique Vila-Matas, Montevideu [2022], trad. J. Teixeira de Aguilar, Alfragide, D. Quixote, 2023, p. 11.

1 de fevereiro de 2025

pedra-de-toque #14

 «A Beleza como dever, a coragem como único caminho para o futuro.»

Rui Chafes, «O perfume das buganvílias», Entre o Céu e a Terra (2012)

28 de janeiro de 2025

as aberturas de CONTOS EXEMPLARES

 

7. «Os três reis do Oriente». «Naquele tempo, na cidade de Kalash, o príncipe Zukarta instaurou o culto do bezerro de oiro.»

6. «O homem». «Era uma tarde do fim de Novembro, já sem nenhum Outono.»

5. Homero». «Quando eu era pequena, passava às vezes pela praia um velho louco e vagabundo a quem chamavam o Búzio.»

4. «Praia». «Era uma espécie de clube de Verão.»

3. «Retrato de Mónica». «Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da "Liga Internacional das Mulheres Inúteis", ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, toda a gente gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.» 

2. «A viagem». «A estrada ia entre campos e ao longe, às vezes, viam-se serras.»

1. «O jantar do bispo». «A casa era grande, branca e antiga.»


Sophia de Mello Breyner Andresen, Contos Exemplares [1962], 4.ª ed., Lisboa, Portugália, s.d.

23 de janeiro de 2025

101 poemas portugueses #58


O SONHO SEM DESTINO


Se os caminhos são breves
e os dias tão compridos,
e as tuas mãos mais leves
que a espuma dos vestidos;

se é de ti que me ondeia
uma brisa subtil...
E a vaga diz: -- Sereia!
E o sonho diz: -- Abril!

Se cresces e dominas
os campos que acalento,
e inundas as colinas
de fontes que eu invento;

se tens na luz dos olhos
o misterioso apelo
das cidades de fogo,
das cidades de gelo;

se podes bem guardar
na tua mão fechada
o meu altivo Tudo
e o meu imenso Nada;

se cabe nos meus braços
a bruma que tu és,
e em algas e sargaços
te abraço nas marés;

se, puro, na presença
da nossa grande Casa,
pões na voz de horizonte
um lume de asa e brasa.

Não sei porque te sonho
na sombra matinal,
e ao meu lado te vejo,
real e irreal.

Sabeis -- adaga fria,
que ao meu peito cintilas --
onde se oculta o dia 
das aragens tranquilas?

Se tudo sabes, mata
com dedos de oiro fino,
ou com gume de prata,
o sonho sem destino!


Natércia Freire (Benavente, 1919 - Lisboa, 2004)

Anel de Sete Pedras (1952 /

/ in Ana Hatherly, Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa (1960)

14 de janeiro de 2025

pedra-de-toque #13

«Eu, muito simplesmente, emagrecia porque as nuvens que me alimentavam andavam cada dia mais escassas.» 

Félix Cucurull, «Carta de despedida», Antologia do Conto Moderno; trad. Manuel de Seabra

13 de janeiro de 2025

101 poemas portugueses #57


FESTA ALEGÓRICA


O bobo do imperador Maximiliano
organizou uma festa alegórica
que o povo e a corte de soberano à frente
saborearam em grandes gargalhadas:
juntou na praça todo o cego pobre,
prendeu a um poste um porco muito gordo,
e anunciou ganhar o dito porco aquele
que à paulada o matasse. Os cegos todos
a varapau se esmocaram uns aos outros,
sem acertar no porco por serem cegos,
mas uns nos outros por humanos serem.
A festa acabou numa sangueira total:
porém havia muito tempo que o imperador
e a corte e o povo não se riam tanto.
O bobo, esse tinha por dever bem pago
o fabricar as piadas para fazer rir.


SB, 7/1/74

Jorge de Sena (Lisboa, 1919 - Santa Bárbara, Califórnia, 1978)´
40 Anos de Servidão (póst., 1979)

4 de janeiro de 2025

pedra-de-toque #12

«É impossível que certas flores sejam filhas das grosseiras plantas de que brotam.» 

Fialho de AlmeidaO País das Uvas (1893)

2 de janeiro de 2025

o início de EU À SOMBRA DA FIGUEIRA DA ÍNDIA

«A gente lá em Luanda tinha umas barrocas debaixo da casa, para onde dava a balaustrada do jardim.» Alberto Oliveira Pinto, Eu à Sombra da Figueira da Índia, Porto, Edições Afrontamento, 1990, p. 9.

10 de dezembro de 2024

Pelo Tejo vai-se para o mundo (04)

 UMA ALEGRE PRUDÊNCIA
(César Franck: Sonata para Violoncelo e Piano em Lá Maior)

Tanto foi o que ignorei e o que perdi.
E no entanto salva-me o poderoso
som de Jacqueline du Prè, a violoncelista
que morreu muito jovem.
Cada um é o solista do seu próprio silêncio:
tem de saber muito bem quando deve entrar.
Se calhar sou um rato empedernido pela dor
que numa manhã de Primavera
parou para ouvir o canto dos pássaros.



UNA ALEGRE PRUDÈNCIA
(César Franck: Sonata per a violoncel i piano en la major)

És tant el que he ignorat i el que he perdut.
I, en canvi, com em salva aquell so poderós
de Jacqueline du Prè, la violoncel-lista
que va morir tan jove.
Cadascú és el solista del seu propi silenci:
li cal saber molt bé quan ha d'entrar.
Potser soc una rata que el dolor
va endurir i que, un matí de primavera,
s'ha parat a escoltar el cant dels ocells.



Joan Margarit em "Animal de Bosque"
Tradução de Àlex Tarradellas, Rita Custódio e Miguel Filipe Mochila
Língua Morta | Flâneur
Abril de 2024

pedra-de-toque #11

«Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária.» 

Machado de Assis, «Cantiga de esponsais»Histórias sem Data (1884)

8 de dezembro de 2024

101 poemas portugueses #56

 

POEMA DA VOZ QUE ESCUTA


Chamam-me lá em baixo.

São as coisas que não puderam decorar-me:

As que ficaram a mirar-me longamente

E não acreditaram;

As que sem coração, no relâmpago do grito,

Não poderam colher-me.

Chamam-me lá em baixo,

Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,

Onde a multidão formiga

Sem saber nadar.

Chamam-me lá em baixo

Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante

E transparente e desgraçado e vil

Quando a noite vem, criança distraída,

Que debilmente apaga os traços brancos

Deste quadro negro -- a Vida.

Chamam-me lá em baixo:

Voz de coisas, voz de luta.

É uma voz que estala e mansamente cala

E me escuta.

 

Março de 1939


Políbio Gomes dos Santos (Ansião, 1911-1939)

A Voz que Escuta (1944)

29 de novembro de 2024

101 poemas portugueses - #55

 

SONETO


Eu tenho a pagar 10 e na carteira
Apenas tenho 8. Eis a arrelia.
Eis-me buscando em mente uma maneira
De pagar o que devo em demasia.

E fico às vezes nisto todo o dia,
Um dia inteirinho em estúpida canseira.
Se busco distrair-me, de vigia,
Olha-me a rir a dívida grosseira.

E entretanto na rua vão passando
Carros de luxo, altivos salpicando
O lodaçal dos trilhos sobre mim...

E sinto, na revolta, o algarismo,
Do trono do brutal capitalismo,
A rir de nós, os bobos do festim!


Rui de Noronha (Lourenço Marques [Maputo], 1906-1943),

in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban III (1996)

25 de novembro de 2024

pedra de toque #10

«Almas, desesperos, ambições, impotências -- e a trégua desta noite, em volta da lareira.»

Ferreira de Castro, «O Natal em Ossela», (1932/1974), Os Fragmentos

24 de novembro de 2024

101 POEMAS PORTUGUESES . #54

 

INSTANTE


A cena é muda e breve:
Num lameiro,
Um cordeiro
A pastar ao de leve.

Embevecida,
A mãe ovelha deixa de remoer
E a vida
Pára também, a ver.


Miguel Torga (São Martinho de Anta, Sabrosa, 1907 - Coimbra, 1995)

Diário I (1941)



15 de novembro de 2024

pedra de toque - #9

«Mary virara-se outra vez de costas e Giovanni quis adivinhar-lhe a direcção dos olhos, acompanhá-los depois no voo extasiado que terminava na torre do Palazzo Vecchio.» 

Augusto Abelaira, A Cidade das Flores, 1959

13 de novembro de 2024

101 poemas portugueses - #53


PARTIR!,,,


Eu vou-me embora para além do Tejo,
não posso mais ficar!

Já sei de cor os passos de cada dia,
na boca as mesmas palavras
batidas nos meus ouvidos...
-- Ai as desgraças humanas destas paisagens iguais!...
Abro os olhos e não vejo
já não ando, já não oiço...
Não posso mais...
Grita-me a Vida de longe
e eu vou-me embora para além do Tejo.

Passa a ave no céu bebendo azul e diz:    Vem!
O vento envolve-me numa carícia,
envolve-me e murmura: -- Vem!
As ondas estalam nas praias e vão mar fora,
as mãos de espuma a prender-me os sentidos
chamam no fundo dos meus olhos: -- Vem!

-- Camaradas, eu vou, esperai um pouco...
Ai, mas a vida nunca espera por ninguém...
E a noite chega vingadora;
o vento rasga-me o fato,
as ondas molham-me a carne
e a ave pia misticamente no ar;
abro os olhos e não vejo,
já não ando, já não oiço
-- e fico, desgraçado de ficar!...



Manuel da Fonseca (Santiago do Cacém, 1911 - Lisboa, 1993)
Rosa dos Ventos (1940)

7 de novembro de 2024

pedra-de-toque #8

«Súbito, uma revoada de vozes escapou-se em surdina do âmago da igreja e derramou pelo claustros o clamor inquietante duma dolência arrastada.» 

Manuel Ribeiro, A Catedral, 1920

29 de outubro de 2024

pedra-de-toque #7

«O automóvel roda apressado, galgando covas, trepidando, queixando-se da aspereza do caminho.» 

Adelino Mendes, «A cidade d'Albert», A Capital, Lisboa, 29-III-1917

27 de outubro de 2024

101 poemas portugueses - #52


TRISTÍSSIMA CANÇÃO


Nesta saudade em que vivo
Há um mistério que eu estranho:
É pesar-me o bem que tive
Mais do que os males que tenho.
 
E ainda é maior a amargura,
Lembrando que o bem passado
Foi menos do que mesquinho,
pois foi apenas sonhado!
 
Nasceu dos meus pensamentos
Altivos e namorados,
E fez, morrendo, a harmonia
Dos meus versos magoados...
 
E mesmo assim, que saudade
Eu tenho, de encanto estranho,
Que lembra o bem que eu não tive,
E é o maior mal dos que eu tenho!...


Guilherme de Faria (Guimarães, 1907 - Boca do Inferno, Cascais, 1929),
Desencanto (1929)

 

22 de outubro de 2024

pedra-de-toque #6

«É um pobre -- é um pobre de pedir --, é um fantasma.» 

Raul Brandão, O Pobre de Pedir, póst., 1931