28 de dezembro de 2013

Há tanto tempo que nao comunico aqui! Mas hojedecidi vir desejar BOAS FESTAS e tambemum Ano Novo bom! Da proxima vezquero partilhar um poema novo. Ate breve! n

6 de dezembro de 2013

Literatura implacável

Arundhati Roy sabe muito bem que sem estilo nem oficina, isto é, sem arte, não há literatura; e por isso adapta a crueldade de que a vida se entranha a uma estética que não alivia nem carrega: o desconcerto do Mundo é suficiente para que nos seja relatado com realismo, com implacável realismo. O resto é mestria da escritora na ordenação do caos.
(também aqui)

5 de dezembro de 2013

o início de O DEUS DAS PEQUENAS COISAS

Maio em Ayemenem é um mês quente e abafado. Os dias são longos e húmidos. O rio estreita e corvos pretos devoram mangas reluzentes nas árvores imóveis no seu verde-pó. Bananas vermelhas amadurecem. Jacas rebentam. Vespas dissolutas zumbem indolentemente no ar suculento. Depois chocam contra a limpidez das vidraças e morrem, inchadas e aturdidas pelo sol.

Arundhati Roy, O Deus das Pequenas Coisas [1997], tradução de Teresa Casal, Lisboa, Biblioteca Sábado, 2010.

28 de novembro de 2013

uma epígrafe de Euclides da Cunha

Realmente, a Amazónia é a última página, ainda a escrever-se, do Génesis.

in Ferreira de Castro, A Selva (1930)

24 de novembro de 2013

Arundhati Roy, 52


Nascida em Shillong, capital do estado indiano de Meghalaya,
Arundhaty Roy completa hoje 52 anos

21 de novembro de 2013

Voltaire, 319

François-Marie Arouet, dito Voltaire, nasceu em Paris, em 21 de Novembro de 1694.

20 de novembro de 2013

12 de novembro de 2013

Ainda "A MORTE DO REI DE ESPANHA"


"Juan Muriel tem cinco peixes num aquário e um manequim lindíssimo (...)"
 
              CARLOS DANIEL, A Morte do Rei de Espanha, Lisboa, Chiado Editora, 2012, p. 185.
 
 
Fotografia obtida ontem numa loja da Baixa

10 de novembro de 2013

CULTURA ITALIANA: PIRANDELLO E OS CONFLITOS DO EU





                                           CULTURA ITALIANA: PIRANDELLO E OS CONFLITOS DO EU 


O Clube de Leitura de Sintra debateu em de Maio a obra e a representação literária de Pirandello (1867-1936). As linhas de força deste verista são: a solidão, o absurdo da existência, o mistério da personalidade. Lembrei nesta ocasião a proximidade ‘familiar’ desta poética a três outras: Giacomo Leopardi (1798-1837), Antero e Pessoa. Os conflitos do Eu e da Existência têm caracter dominante e percursos únicos e vários nas Obras destes escritores.

A profundidade destas interrogações seja num discurso pessoal seja num percurso ontológico vai diferenciar as três poéticas embora com referentes simbólicos comuns: a Dor física e a sua libertação pela morte como a propõe Leopardi ou o Antero no Ciclo do Elogio da Morte.; por outro lado a solidão, as máscaras, a multiplicação do Eu, a despersonalização, os percursos do Não-Ser até ao Ser único e absoluto, aproximam-nos de Pessoa e do próprio Pirandello.

Dá-se o caso de eu amar a cultura italiana. Dá-se a circunstância de eu ter participado no evento: ‘ E naufragar me é doce neste mar: Leopardi na Madeira’ que assinalou o bicentenário do nascimento deste importantíssimo poeta italiano. Nessa ocasião, isto é, em 1999, depois da leitura dos Canti escrevi para Pádua e disse que o nosso Camões possui terríveis afinidades com o poeta de Recanati. Disse: ‘de facto, o nosso épico, que muito bebe nos académicos de Florença, reflete na Canção IX, da minha especial predileção, e nos sonetos, problemáticas semelhantes ao caso do poeta italiano’.

Observei a feliz coincidência das relações de cultura entre os dois povos. Subtis mas perenes, impercetíveis mas resistentes e plásticas como as qualidades das suas respetivas línguas. Fossem essas relações diplomáticas ou comerciais de antiquíssimo registo desde a remota Génova e da poderosa Veneza de Quinhentos; fossem literárias ou artísticas com a deslocação de pintores e suas escolas, de arquitetos e de escultores; fossem musicais e até científicas: a organização dos nossos gabinetes de História Natural, o recorte dos nossos jardins botânicos desde o renascentista ao barroco.

São lentos mas de sábia lentidão os processos criativos na teia que reúne os povos. Contudo, o universo das palavras, o ser das palavras domina as poéticas neste fascínio em busca do cerne da poesia; incessante desvendar do outro para a compreensão de nós-mesmos. Agora, na busca da essencialidade também num refazer de linguagens plásticas que ultrapassam a própria razão e vai mais longe que Descartes: para existirmos não basta nos pensarmos. Parafraseando a essencialidade de Clarice Lispector direi que existimos quando nos vemos ao espelho. Se nos movemos  na busca do outro, deslocando os eixos culturais do mundo, atualizando Quinhentos, é por que já desanuviamos a nossa aura. E nos confirmamos como europeus.                                 

1 de novembro de 2013

JESUS POBREZINHO, anónimo

Vindo um lavrador da arada,
Encontrou um pobrezinho;
O pobrezinho lhe disse:
-- Tenho fome e tenho frio;
Lavrador, por Deus te peço,
Leva-me no teu carrinho. --
Deu-lhe a mão o lavrador,
No carro já o metia;
À sua casa o levava,
À melhor sala que tinha.
Mandou-lhe fazer a ceia,
Do melhor manjar que havia;
Sentou-o à sua mesa,
Coa a sua mão o servia.
Mandou-lhe fazer a cama,
Da melhor roupa que tinha;
Por baixo damasco roxo,
Por cima cambraia fina.

Era meia-noite em ponto,
O pobrezinho gemia.
Levantou-se o lavrador,
A ver o que o pobre tinha:
Deu-lhe o coração um baque,
Como ele não ficaria...
Achou-o crucificado
Numa cruz de prata fina!

-- Meu Senhor, quem tal soubera,
Que em minha casa vos tinha...
Mandara fazer preparos,
Do melhor que se acharia...
-- Cala, cala, ó lavrador,
Não fales com fantasia...
No Céu te tenho guardada
Cadeira de prata fina;
Tua mulher a teu lado,
Que também o merecia.

in José Régio, Poesia de Ontem e de Hoje para o Nosso Povo Ler, Lisboa, Campanha Nacional de Educação de Adultos, 1956, pp. 18-19.

(lido na sessão de 4 de Outubro de 2013)

22 de outubro de 2013

1 parágrafo de Carlos Daniel

De todas as vidas se pode escrever um livro, é verdade, mais que não seja para narrar ao pormenor a sua infindável rotina quotidiana. Mas nem de todas se pode fazer uma nota marcante, breve e verdadeira. Quem tiver dúvidas que retire dos escaparates meia dúzia de calhamaços, com mais de quatrocentas páginas, e pratique esse exercício na parte de dentro de uma carteira de fósforos, relendo depois o que lá conseguiu meter. Se encontrou matéria suficiente para precisar da tal folha de papel de máquina, essa vida já valeu a pena.

A Morte do Rei de Espanha, Lisboa, Chiado Editora, 2012, p. 203.

5 de outubro de 2013

e assim termina OS MILAGRES DO ANTICRISTO

«Ninguém pode livrar as pessoas dos seus males, mas muito se deverá perdoar àquele que fizer nascer nelas nova coragem para carregá-los.»
O Anticristo, neste extraordinário romance de Selma Lagerlöf, materializou.se numa pequena imagem, alegadamente do Salvador, ostentando a inscrição: "O meu reino é deste mundo." Publicado em 1897, quando as forças socialistas estão pujantes e parecem imparáveis, o anticristo, necessário e fundamental ante a miséria que as sociedades modernas exorbitavam, é o socialismo. Conciliar "a Terra com o Céu" (p. 348), porque nem todos se bastam com a matéria, parece-me ser o sentido (ou um dos sentidos) desta narrativa da escritor sueca -- não distante, aliás, do que preconizava o seu contemporâneo e confrade russo, Tólstoi.

Luca Signorelli, Os Milagres do Anticristo
(Catedral de Orvieto)

3 de outubro de 2013

outro soneto de Camões

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!

in José Régio, Poesia de Ontem e de Hoje para o Nosso Povo Ler, Lisboa, Campanha Nacional de Educação de Adultos, 1956, pp. 16-17.

(lido na sessão de 7 de Setembro)

25 de setembro de 2013

Valter Hugo Mãe 42

Valter Hugo Mãe (Valter Hugo Lemos) nasceu em Saurimo, na Lunda Sul,  Angola,
em 25 de Setembro de 1971

19 de setembro de 2013

e assim começa OS MILAGRES DO ANTICRISTO

Corria o tempo em que Augusto era imperador de Roma e Herodes rei de Jerusalém.

Selma Lerglöf, Os Milagres do Anticristo, tradução de Liliete Martins, Lisboa, Cavalo de Ferro, 2008, p. 9.

6 de setembro de 2013

dou estrelas a Régio...

Hoje apetece-me dar estrelas aos contos do Régio (a bloga ou é lúdica ou não é bloga!); e como gosto de pensar que sou um gourmet  destas coisas (como diria o Jaime Brasil), aqui vai o atrevimento dum mero leitor.

«Menina Olímpia e sua criada Belarmina» (****) Um conto cheio de piedade. A caracterização da grotesca menina Olímpia, menina já entrada e metida consigo -- na realidade, no limiar da demência --, que se veste e pinta como quando era rica e casadoira sem deixar indiferentes os passantes, e da velha criada Belarmina que a acompanha na degradação do modo de vida de ambas, numa ilha portuense. O confronto entre as duas, quando, por bem-querer,  a aia Belarmina sugere à patroa que se vista com mais conforto na sua pobreza e com menos espavento do que costumava na sua idumentária de vinte anos atrás, é, para mim, o grande momento da história:  «Quando compreendera, menina Olímpia esganiçara umas risadas de escárnio, tivera uns gestos de frenéticos, falara -- pela primeira vez -- na diferença de condição que as separava [...]» -- e por aí fora, até à cruel humilhação da criada: «Reparasse ela ao menos, bruta!, (chegara a chamar-lhe bruta!) reparasse ela ao menos, bruta!, como a cumprimentavam respeitosamente os cavalheiros [...]» (p. 34).

«História de Rosa Brava» (*****) O melhor dos textos, cheio de raça, de finura psicológica, o modo como as personagens nos são reveladas, a força selvagem  de Rosa, com «os seus esplêndidos olhos negros, olhos cuja sombria beleza só primo Rogério até então soubera ver [...]» (p. 65). Do melhor que se pode ler.

«Os namorados de Amância» (**) Talvez o menos conseguido, história de proveito e exemplo sobre a frivolidade, provavelmente adequado à revista Eva, onde foi originalmente publicado.

«Os paradoxos do bem» (***) Muito interessante para quem conhece bem Régio, versando sobre os grandes problemas que sempre o interessaram, a Arte e Deus. Neste particular, prefiro o Régio escritor de ideias, o crítico, o ensaísta, o diarista, o metafísico desse deslumbrante Confissão dum Homem Religioso.

«Marina e a Camélia» (****) Um pequeníssima jóia, quase neo-realista...

28 de agosto de 2013

Régio: menos é mais

Na apresentação desta colectânea, organizada para a colecção «Livros de Bolso» da Europa-América (# 391), José Alberto Reis Pereira (sobrinho do autor) incluiu um lapidar excerto de José Régio, datado de 1948 e então inédito (desconheço se já foi publicado), sobre a arte da escrita como desígnio:
«[...] uma arte em que as palavras fossem as rigorosamente justas, próprias, adequadas -- e ao mesmo tempo inesperadas e sugestivas. Uma combinação imprevista de palavras vulgares. O rigor científico, a precisão ascética -- e o indefinido e rico da música. A simplicidade que nada sacrifica da densidade, da subtileza... e do perigo.»



17 de agosto de 2013

V. S. Naipaul, 81

V. S. (Vidiadhar Surajprasad) Naipaul, nasceu a 17 de Agosto de 1932,
em Chaguanas, Trinidad e Tobago

16 de agosto de 2013

Quero a fome de calar-me, Daniel Faria

Quero a fome de calar-me. O silêncio. Único Recado que repito para que me não esqueça. pedra Que trago para sentar-me no banquete A única glória no mundo - ouvir-te. Ver Quando plantas a vinha, como abres A fonte, o curso caudaloso Da vergôntea - a sombra com que jorras do rochedo Quero o jorro da escrita verdadeira, a dolorosa Chaga do pastor Que abriu o redil no próprio corpo e sai Ao encontro da ovelha separada. Cerco Os sentidos que dispersam o rebanho. Estendo as direcções, estudo-lhes A flor - várias árvors cortadas Continuam a altear os pássaros. Os caminhos Seguem a linha do canivete nos troncos As mãos acima da cabeça adornam As águas nocturnas - pequenos Nenúfares celestes. As estrelas como as pinhas fechadas Caem - quero fechar-me e cair. O silêncio. DANIEL FARIA

12 de agosto de 2013

Miguel Torga, 106

Miguel Torga (pseuydónimo de Adolfo Rocha, com que assinou os
primeiros livros) nasceu em São Martinho de Anta, Sabrosa, em
12 de Agosto de 1907

24 de julho de 2013

Carlos Vale Ferraz, 67

Carlos Vale Ferraz, pseudónimo de Carlos Matos Gomes
-- nome com que também assina obras de história militar --,
nasceu em Vila Nova da Barquinha, a 24 de Julho de 1946


22 de julho de 2013

TROVA À MANEIRA ANTIGA, Sá de Miranda

Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,
Antes que esta assim crescesse;
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo,
Tamanho imigo de mim?

in José Régio, Poesia de Ontem e de Hoje para o Nosso Povo Ler, Lisboa, Campanha Nacional de Educação de Adultos, 1956, pp. 11-12.

(lido na sessão de 7 de Junho de 2013)

8 de julho de 2013

TODA A POESIA É LUMINOSA, Eugénio de Andrade

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.

Os Sulcos da Sede

lido na sessão de 5 de Julho de 2003

4 de julho de 2013

Gide sobre Kafka

O realismo das suas descrições raia muitas vezes pelo imaginário e não saberei dizer o que mais admiro nelas: a anotação «naturalista» de um universo fantástico, mas que a exactidão minuciosa da descrição torna real aos nossos olhos, ou a firme audácia dos desvios para o extraordinário.

no Dicionário Biográfico Universal de autores, Artis/Bompiani, vol. 2.

3 de julho de 2013

27 de junho de 2013

João Guimarães Rosa, 105

João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, em 27 de Junho de 1908.

24 de junho de 2013

uma epígrade de de Pinedo


Ficheiro:Francesco De Pinedo.jpg

Ser forçado a descer naquele horror, mesmo que se aterre incólume, é ficar onde se desceu e morrer sepultado na sombra.
Francesco de Pinedo, 2.ª epígrafe de A Selva, de Ferreira de Castro.

14 de junho de 2013

...DE PASSAREM AVES, Jorge de Sena

Das aves passam as sombras,
um momento, no chão, perto de mim.
No tardo Verão que as trouxe e as demora,
por que beirais não sei
onde se abrigam piando
como ao passar chilreiam.

Um momento só. Rápidas voam!
E a vida em que regressam de outras terras
não é tão rápida: fiquei olhando,
as sombras não, mas a memória delas,
das sombras não, mas de passarem aves.

in Ana Hatherly, Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa, Lisboa, Direcção-Geral do Ensino Primário, 1960, pp.110-111.
(lido na sessão de 7 de Junho)

5 de junho de 2013

brônzeo

Regresso aO Malhadinhas, quase trinta anos depois, sem nunca ter deixado de frequentar o Aquilino, não tantas vezes, porém, quanto devia, ai de mim.  Porque a leitura de qualquer livro do homem da Nave traduz-se num imenso prazer, físico inclusive. Isto sim, é grande literatura, é a escrita em estado vivo, e que assim permanecerá enquanto houver língua portuguesa. Como disse há dias, em amena cavaqueira com um editor esclarecido, o Aquilino é brônzeo!... 

24 de maio de 2013

A Magnólia: Letra de Luiza Neto Jorge e Música de Rodrigo Leão

A Magnólia

A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem a forma
o meu resplendor.

Um diminuto berço me acolhe
onde a palavra se elide
na matéria - na metáfora -
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,

um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.

16 de maio de 2013

13 de maio de 2013

Bruce Chatwin, 73

Chatwin nasceu em Dronfield, Inglaterra, a 13 de Maio de 1940.

3 de maio de 2013

ELEGIA DE SETEMBRO, Eugénio de Andrade

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos poisados nas últimas rosas
dos grande e calmos dias de Setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se recordam os mortos, sem os ferir
sem os trazer a esta espuma negra
onde os corpos e corpos se repetem
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada olhando as rosas
e tão alheia
que nem dás por mim.

Ana Hatherly, Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa, Lisboa, Direcção-Geral do Ensino Primário, 1960, pp. 82-85.

(lido na sessão de 5 de Abril de 2013)

27 de abril de 2013

uma epígrafe de Carlos Ceia

Bem se esforçou o Autor real deste livro encontrar uma epígrafe apropriada para a abertura, mas não encontrou nada no mercado de citações que servisse a boa interpretação do romance e as suas personagens também não ajudaram nada.

Carlos Ceia, O Professor Sentado, Lisnoa, Edições Duarte Reis, 2004, p. 7.

19 de abril de 2013

um poema de Filipa Leal

Apontas para o rosto sarcástico do sol de Inverno
E disparas. Há tantos meses que não chove – reparaste?
É o próprio céu a desistir de ti. E mesmo assim tu disparas, só sabes disparar.
Estás enganada, Europa. Envelheceste mal e perdeste a humildade.
Não é contra o sarcasmo que disparas, não é contra o Inverno,
Nem sequer contra o insólito, contra o desespero.
Tu disparas contra a luz.
Podes atirar-nos tudo à cara, Europa: bombas, palavras, relatórios de contas.
Podes até atirar-nos à cara um deputado, uma cimeira.
Mas os teus filhos não querem gravatas. Os teus filhos querem paz.
Os teus filhos não querem que lhes dês a sopa. Os teus filhos querem trabalhar.
Há tantos meses que não chove – reparaste?
A terra está seca. Nem abraçados à terra conseguimos dormir.
Enquanto te escrevo, tu continuas a fazer contas, Europa.
Quem deve. Quem empresta. Quem paga.
Mas os teus filhos têm fome, têm sono. Os teus filhos têm medo do escuro.
Os teus filhos precisam que lhes cantes uma canção, que os vás adormecer.
Eu acreditei em ti e tu roubaste-me o futuro e o dos meus irmãos.
Se estamos calados, Europa, é apenas porque, contrários ao teu gesto,
Nós não queremos disparar.

(lido na sessão de 5 de Abril de 2013)

6 de abril de 2013

Os Fragmentos -- Um Romance e Algumas Evocações

Livro híbrido, como indica o subtítulo, completando a designação principal da obra: fragmento, o que ficou estilhaçado, o que não se completou. Trata-se de um melancólico acerto de contas de Ferreira de Castro com uma parte do trabalho literário (e também jornalístico) que a Censura suprimiu.
Morto em 29 de Junho de 1974, o percurso do autor de A Selva foi marcado por essa circunstância, de Emigrantes (1928) a O Instinto Supremo (1968) -- e mesmo estes fragmentos tiveram de aguardar pela revolução do 25 de Abril para que pudessem ver a luz do dia.
Foi importante termos lido no ano passado os textos dos Ecos da Semana, crónicas publicadas  no suplemento de A Batalha, entre 1924 e 1926, para verificarmos que, descontado o arrebatamento quase juvenil desses escritos anarquistas, Ferreira de Castro, se manteve visceralmente libertário.
Presumo que ele soubesse que este livro não acrescentaria nada à relevância da sua obra literária e do lugar que ela ocupa na ficção narrativa portuguesa novecentista; mas fora-lhe um imperativo a subtracção desses textos ao esquecimento:
     O Intervalo, o tal romance com pano de fundo na Revolta da Andaluzia (1931), que fazia parte dum painel mais vasto, intitulado «Biografia do Século XX», nunca concretizado, com pretexto para a contextualização epocal em «Origem de "O Intervalo"»;
     «O Natal em Ossela», inofensivo (ou nem por isso...) conto alusivo à quadra, que não escapou ao lápis azul, motivando uma importante reflexão a propósito do sentido de pertença a essa «Aldeia Nativa», para além dos artifícios nacionalistas;
     o sensacional «Historial da Velha Mina», evocação duma reportagem nunca publicada junto dos homens das Minas de São Domingos, exploradas por capital britânico; e sensacional, acima de tudo, pela extrema contensão do tom castriano, característica da generalidade da sua escrita madura.
Os Fragmentos são, pois, a um tempo, testemunho, (re)afirmação de um ideário e de uma concepção da literatura impregnada de sentido no tempo que lhe coube.

2 de abril de 2013

BIOGRAFIA DO SÉCULO XX

“Os socialistas, que haviam lançado a greve de Badajoz, tornaram-se pele de bombo constantemente surrada. Não escaparam sequer os que tinham assento nas Cortes, nem mesmo a mais bela de todas as deputadas, porque tempos antes palmilhara as pobres terras estremenhas, a pregar essas modestas reformas que constituíam o breviário do seu partido. Ansiosas de a castigarem, damas aristocráticas e da alta burguesia, formando copioso grupo, dirigiram-se ao Parlamento. E ao seu presidente solicitaram que a formosa palradora fosse despida das imunidades que usufruía e levada imediatamente à fronteira, pois embora nada e criada em Espanha, trazia glóbulos rubros germânicos no sangue provadamente venenoso.”
(FERREIRA DE CASTRO, O Intervalo, cap. VI.)
Margarita Nelken  (Madrid, 1896 - México, 1968), feminista e deputada socialista das Cortes Constituintes republicanas a quem Ferreira de Castro, provavelmente, se refere.

1 de abril de 2013

O SONHO SEM DESTINO, Natércia Freire

Se os caminhos são breves
e os dias tão compridos,
e as tuas mãos mais leves
que a espuma dos vestidos;

se é de ti que me ondeia
uma brisa subtil...
E a vaga diz: -- Sereia!
E o sonho diz: -- Abril!

Se cresces e dominas
os campos que acalento,
e inundas as colinas
de fontes que eu invento;

se tens na luz dos olhos
o misterioso apelo
das cidades de fogo,
das cidades de gelo;

se podes bem guardar
na tua mão fechada
o meu altivo Tudo
e o meu imenso Nada;

se cabe nos meus braços
a bruma que tu és,
e em algas e sargaços
te abraço nas marés;

se, puro, na presença
da nossa grande Casa,
pões na voz de horizonte
um lume de asa e brasa.

Não sei porque te sonho
na sombra matinal,
e ao meu lado te vejo,
real e irreal.

Sabeis -- adaga fria,
que ao meu peito cintilas --
onde se oculta o dia
das aragens tranquilas?

Se tudo sabes, mata
com dedos de oiro fino,
ou com gume de prata,
o sonho sem destino!

in Ana Hatherly, Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa, Lisboa, Direcção-Geral do Ensino Primário, 1960, pp. 73-74.
(lido na sessão de 1 de Março)

31 de março de 2013

BIOGRAFIA DO SÉCULO XX - A Espanha rebelde

E há quem fale de "leveza", a propósito de FC:
"De novo custodiados, voltámos a marchar. Na esquina do «ayuntamento», na do edifício dos telefones, em todas as outras negrejavam metralhadoras. E aqui e acolá, nas paredes, alguém que nelas se fora amparando deixara os contornos das suas mãos impressos a sangue, como assinaturas num processo ainda não concluído".  (O Intervalo, cap. V)

29 de março de 2013

e assim começa A VELOCIDADE DA LUZ

Agora levo uma vida falsa, uma vida apócrifa, clandestina e invisível embora mais verdadeira do que se fosse real, mas eu era ainda eu quando conhecia Rodney Falk.

Javier Cercas, A Velocidade da Luz, trad. Helena Pitta, Porto, Edições Asa, 2006.

24 de março de 2013

NO CENTRO DA TEMPESTADE

Ferreira de Castro, desenho de Roberto Nobre, 1925 (do "Guia da Exposição" do Museu Ferreira de Castro)
 
Um romance "diferente" do escritor de Ossela em discussão na COMUNIDADE DE LEITORES DE S. DOMINGOS DE RANA --- quinta-feira, 28 de Março, 21 horas.

 
Descêra, apressadamente, as escadas. «Era verdade, ela saía todas as segundas, quartas e sextas-feiras… Dizia que ia visitar a mãe… Em algumas semanas, até saía mais vezes, com o pretexto de fazer compras ou de ver as amigas… Muitas tardes, quando êle voltava do Banco, ainda ela não havia regressado a casa. «Fui ao Centro, comprar o bacalhau alto de que tu gostas» – dizia-lhe. E êle, tão tolo, a acreditar naquilo! (…)» [FERREIRA DE CASTRO, A Tempestade, Lisboa, Guimarães Editores, 1940, p. 129].
 


22 de março de 2013

DE UM NOVO CONTINENTE, António Quadros

As árvores são sombras das raízes
E os homens são sombras de outras raízes
Mais fundas. Assim, dentro de mim,
Uma sombra cobre todas as luzes e todos os sons
Velando a minha alegria intacta e longínqua
E prometendo o paraíso perdido mas não esquecido.
Imagino o meu céu nos meus limites
E o céu dos outros ainda nos meus limites.
As minhas mãos atravessam o universo misterioso
E tocam as ignotas fontes da poesia e da vida.
O meu olhar, porém, fica comigo e chora
Esse amor de lágrimas e tristezas
Onde, como solitária ilha de coral,
A minha existência espera o nascimento de um novo continente.
Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa, edição de Ana Hatherly, Lisboa, Direcção-Geral do Ensino Primário, 1960, p. 72.

(lido na sessão de 1 de Março de 2013)

21 de março de 2013

16 de março de 2013

como um espelho

Há muita gente que bota logo maldade, e as mulheres, coitadas, são como um espelho: qualquer bafo parece que as suja...

Trindade Coelho, «Manuel Maçores», Os Meus Amores (1891), Mem Martins, Publicações Europa-América, 3.ª ed., s.d., p. 204.

8 de março de 2013

5 de março de 2013

Edição Incendiária

www.austincreativedepartment.com/

ORLANDO, dois ou três tweets

* Com livros assim, com tanta ponta por onde se pegar, e sem tempo nem engenho para o fazer, cinjo-me a dois ou três tweets a propósito de Orlando -- Uma Biografia, de Virginia Woolf, que debatemos na última sessão do Clube de Leitura do Museu Ferreira de Castro.
* O modernismo da obra, rejeitando as evidências realistas (o romance vitoriano é ironicamente caracterizado);
* Um humor refinadamente impiedoso, um wit muito Grupo de Bloomsbury (ou do imaginário que dele persiste);
* As implicações psicanalíticas do dualismo sexual da personagem central, o Orlando / a Orlando -- cuja dualidade, aliás, parece cingir-se apenas aos órgãos reprodutores;
* A rarefacção do tempo da narrativa, um longo período que vai da época isabelina ao próprio dia em que o livro saiu do prelo, 11 de Outubro de 1928.
* O génio literário de Virginia Woolf, em que a vida ("o que é a Vida?", pergunta-se em várias ocasiões) é literatura; a escrita como apaziguamento de pulsões interiores e conhecimento de si; o estilo precioso, filigranado, rigorosamente medido: «Devemos moldar as nossas palavras até que sejam o mais fino invólucro dos nossos pensamentos.» (p. 123).
* Génio literário que a tradução de Ana Luísa Faria me parece servir exemplarmente, a ponto de ficarmos com a vontade de ir a correr buscar o texto original.

25 de fevereiro de 2013

Amin Maalouf, 64

Amin Maalouf nasceu em Beirute, a 25 de Fevereiro de 1949.

24 de fevereiro de 2013

uma epígrafe de Joaquim de Carvalho

As nações com a responsabilidade histórica da gente portuguesa, não podem imobilizar-se estaticamente, nem devem iludir-se infantilmente; têm que desentranhar sucessivamente da massa das suas tradições e aspirações um ideal coerente com a conjuntura histórica, que exprima e defina o seu estar mudável em concordância com o seu ser permanente. (Compleição do Patriotismo Português, 1953).

in Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade -- Psicanálise Mítica do Destino Português (1978), Lisboa, Círculo de leitores, 1988.

18 de fevereiro de 2013

torna-se o amador na cousa amada...

     Tu estás a matar-me, peixe, pensou o velho. Mas tens todo o direito. Nunca vi uma coisa maior, ou mais bela, ou mais serena, ou mais nobre do que tu, meu irmão. Vem e mata-me. Não quero saber qual de nós mata.

Ernest Hemingway, O Velho e o Mar, trad. Jorge de Sena, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., p. 102.

11 de fevereiro de 2013

a grande literatura de Dinis Machado

Grande literatura é isto:  domínio da palavra a benefício da narrativa, espessa, sumarenta, cheia de coisas a dizer e de indícios doutras que ficam por enunciar. Estórias e estorietas, há muito quem conte, alguns até reputados de bons escritores; mas O que Diz Molero (1977) é a história, narrada de forma múltipla, dum escritor de obra escassa, sete títulos, três dos quais sob o pseudónimo Dennis McShade.
Li-o por volta de 1983, e voltei agora a ele, no Clube de Leitura do Museu Ferreira de Castro. Por esse então, final da adolescência, apesar de muitas referências me escaparem -- que não as da BD (Dinis Machado terá sido o único escritor português a ter aposto numa obra literária os nomes de Zig e Puce...) ou as dos Westerns de John Ford; é um livro cheio de cinema (até na prosa) e quadradinhos --, havia também uma memória que me era familiar: o imaginário lisboeta das décadas de 1930-1940, que me foi transmitido pelo meu pai, da mesma geração do autor: as figuras populares, suas alcunhas e seus maneirismos; a Guerra Civil de Espanha e a II Guerra Mundial, o modo como eram ansiosamente seguidas e as próprias implicações sociais e políticas desses dois cataclismos entre nós; o cinema de Hollywood e os filmes em 31 partes do Flash Gordon; os comics americanos, Dick Tracy e Mandrake, os combates de boxe... Referências pulp e eruditas, de Camilo Pessanha a Jorge Luis Borges, fluindo naturalmente, porque reflexo da vida e da vivência.  Não sei se algum vez um livro me deu tanto prazer a reler.
A verdade é que em que O que Diz Molero a prosa é rigorosamente vigiada e calibrada, tão fundamental quanto o inventário da infância se presta  a todas as derrapagens do sentimentalismo : não há lamechice, mas ternura, um humor terno e nunca boçal.
Nota aos jovens leitores: tem até vampiros... -- não daqueles de ecrã, que ocupam os escaparates dos híperes, mas o tenebroso "Vampiro Humano", tenebroso para o rapaz (o protagonista do romance, ou um dos protagonostas) e para os seus amigos de correrias e partida pelo Bairro.

7 de fevereiro de 2013

"A MORTE DO REI DE ESPANHA", de Carlos Daniel

Tínhamos falado – eu e o Carlos Daniel – em se fazer uma crítica ao seu livro nas páginas do blogue. Acertámos que após essa crítica o autor faria um comentário.
O resultado é o que aqui fica.  

INSCIÊNCIA E AMBIGUIDADE NO NARRADOR DE A MORTE DO REI DE ESPANHA
 
Depois de Foste tu que me escreveste de Sintra? (2005), Carlos Daniel publicou em Julho do ano passado um segundo romance com o título A Morte do Rei de Espanha. Vamos tentar uma leitura deste seu trabalho a partir da compreensão da figura do narrador, instância do romance  que intervém em três peças fundamentais do seu paratexto: a que é designada por “Narrador – apresentação” (p. 7), a transcrição da decisão do 3º Juízo da Vara Criminal de Cádis (pp. 381-387) e o posfácio (pp. 388-390).
O narrador, que não deve ser confundido com o autor empírico, é a instância em que recai a lógica da construção romanesca.  Normalmente, o leitor pode desconfiar de tudo, menos de que a história por ele contada possa não ser a história “verdadeira”. Omnisciente ou nem tanto, o narrador  é, normalmente, uma personagem de rectas intenções, confiável tanto quanto pode ser, o que não significa que não trate com simpatia diferenciada cada uma das personagens que coloca em cena. Zé Fernandes, narrador intradiegético de A Cidade e as Serras, deverá ter-nos contado a história tal como ela “aconteceu”, embora se perceba o favorecimento da sua pessoa e se saiba da admiração que nutre por Jacinto, protagonista do romance, por ele referido como “o meu Príncipe”.  O narrador de Madame Bovary parece equidistante de Charles  e  Emma, salientando a mediocridade do primeiro e a conduta imoral da segunda, mas sente-se que é impiedoso no tratamento que dispensa aos amantes da heroína e a alguns comparsas  como, por exemplo, o farmacêutico Homais.
Se o leitor aceita com naturalidade a bondade do narrador (a inversa seria razão suficiente para nem sequer pegar no livro) é porque acredita que ele é a chave de entrada nos mistérios da história que deseja conhecer.
Como diz Roland Barthes, o narrador é um “ser de papel”, uma invenção do autor, mas um ser que sabe coisas que as outras personagens não sabem e que, em princípio, está interessado em contá-las. Assim, parece invulgar que o narrador de A Morte do Rei de Espanha se disponha a perturbar a confiança do leitor através de uma declaração prévia sobre a verdade do seu relato. Leia-se o que nos diz: “Não me quero desculpar por, de vez em quando, ter revelado alguma parcialidade e um pouco de precipitação na descrição dos acontecimentos”. Para  acrescentar no parágrafo seguinte: “Mas posso garantir-vos que relatei as verdades essenciais ou, pelo menos, a interpretação que fiz delas” (p.7). Não sendo uma narrativa referencial, o romance não pode ser submetido a uma prova de verdade, pelo que aquilo que o narrador conta – e só ele sabe o que deve contar – é lei. O romance é ficção (veja-se a epígrafe retirada de Histórias Falsas de Gonçalo M. Tavares) e as tentativas de o apresentar como “história verdadeira” são próprias de períodos histórico-literários em que o género ainda não tinha conquistado a dignidade que o Romantismo e o Realismo viriam a conceder-lhe. No actual estádio dos gostos literários, os leitores amam a ficção, sendo esta entendida como condição básica da literariedade duma obra.
A disposição do narrador de A Morte do Rei de Espanha tem, porém, uma lógica interna. Carlos Daniel move as suas personagens num quadro de ambiguidade  de que participa a instância narrativa. Porque, afinal, este consciencioso narrador que diz relatar as “verdades essenciais” conta uma história que se verifica não conhecer por completo. Vejamos então que história é essa.
Pedro Olivares, cabeça de um grupo económico andaluz, é acusado de um triplo homicídio e acaba por ser condenado em juízo. Seu filho, Juan Muriel, na altura ainda criança, não acredita que o pai seja o autor desses crimes e por tal razão toma a decisão de matar o rei de Espanha, primeira figura do estado que ele vê como primeiro responsável da injustiça cometida. Note-se que esta ideia, aparentemente bizarra, é verosímil. Pela exposição obsessiva da sua imagem – nos ministérios, gabinetes da polícia e salas de tribunal –, um chefe de estado como o rei de Espanha pode muito bem ser visto pelo cidadão comum (e também por uma criança) como a figura tutelar de todos os erros e injustiças cometidos pela administração pública. São os inconvenientes da personalização do poder, do uso e abuso da imagem do rei como símbolo desse mesmo poder.
Entrado na idade adulta, Juan Muriel vai urdindo sucessivos planos para liquidar o monarca. Só que o filho do poderoso Pedro Olivares, entretanto licenciado em Direito e preparado para assumir o controle dos negócios da família, reencontra Sara Marques, a sua namorada da adolescência, e algo de novo começa e nascer em si. Juan Muriel terá percebido, talvez ao princípio de forma não muito consciente, que a vida dum rei ou o poder dum grupo económico poderão valer um ou mais crimes, mas não valerão certamente a emoção dum grande amor. Ou, se quisermos seguir outra pista, que o afecto pode e deve dirigir-se a uma pessoa digna de o receber, não se deixando ficar pelo melancólico despir e vestir do “manequim lindíssimo”, mas imóvel, com que ornamenta a sala de sua casa (capítulo 10, p. 185).
No final do romance, Juan Muriel tem o rei sob a mira da sua arma, poderia ter consumado o atentado, mas não o faz. Sara Marques, curiosamente agente de informação dos serviços secretos espanhóis, está do outro lado da rua por onde o rei passa numa visita oficial em Lisboa. Nem ela o impediu, nem ele avançou para o atentado. A vingança não se consuma, talvez por não ser compatível com o amor.
Voltando ao narrador, note-se que a narrativa encerra, conforme data que consta do livro, em 17 de Novembro de 2003, enquanto a decisão judicial que iliba Pedro Olivares do crime de triplo homicídio (repetição do julgamento face a novas provas surgidas, a segunda peça a que nos referimos) é de 26 de Abril de 2007. Vem a saber-se por essa peça que foi a sua mulher, Maria Mercedes Olivares, a mandante dos crimes depois atribuídos ao marido. Pedro Olivares seria amante de uma das vítimas, Isabella Perrugini, pelo que a matança, perpetrada com a ajuda de apaniguados, teria, além de outros motivos, razões passionais. 
Não sendo omnisciente  como poderia o narrador  intradiegético de A Morte do Rei de Espanha antecipar tão decisiva reviravolta judicial? Note-se que, embora inominado, ele é, com toda a probabilidade, um dos dois amigos do protagonista referidos no romance pelos nomes de Tiago e Clemente. Com a narrativa fechada, o recurso do narrador é anexar-lhe a cópia da nova decisão do tribunal e lançar-se num posfácio em que pretende justificar o desconhecimento dos factos. Referindo-se à mistificação organizada pela mulher de Pedro Olivares, diz: “Durante muito tempo todos fomos enganados pela sua actuação maquiavélica e uma boa parte das especulações que se seguiram, e às quais eu dei voz, revelaram-se infundadas”(p. 388). Mas não se fica por aqui o seu mea culpa. Ele mesmo declara ter participado numa mistificação: o encobrimento do verdadeiro estado mental de Pedro Olivares depois do atentado de que foi vítima na prisão. Assim se confessa: “ Não é verdade que Pedro Olivares tenha ficado diminuído, física ou mentalmente, após o atentado na prisão. A estratégia desenhada por ele, que o dava inutilizado para qualquer acto de gestão, tinha como único objectivo garantir a sua segurança. (…) Dada a proximidade deste relato com os factos ocorridos, e estando prevista a publicação deste livro muito antes de Pedro Olivares ter cumprido a sua pena, não hesitei em participar nesta mistificação, por me parecer uma boa garantia para a sua sobrevivência” (pp. 388-389).
Enfim, um narrador pouco confiável, metido num papel que o aproxima das restantes personagens do romance. Errou e mistificou, tendo assumido os seus desvios, da mesma forma que Juan Muriel parece ter admitido o erro da sua vingança e a Justiça de Cádis reconheceu e remediou a falha da instrução criminal do processo.
E isto leva-nos a considerar que, em rigor, as três peças paratextuais (assim lhes chamámos) em que o narrador intervém (duas por declaração própria e a outra por simples transcrição da decisão judicial), não funcionarão como paratexto, mas como parte integrante do texto romanesco. O autor manipula o narrador de forma a que se dê ao leitor o suspense duma história que, no final, por uma peça jurídica e algumas declarações, se revela razoavelmente diferente daquilo que o texto principal deixa entrever.
Não situaríamos este expediente narrativo nos domínios da originalidade, pois cremos que na arte do romance já tudo foi feito ou experimentado e nada surgirá que seja verdadeiramente novo. Mas lá que é curioso, é. E inusitado: um narrador insciente e ambíguo mas que, pelo menos, tem a humildade de reconhecer as suas limitações e tentar emendar os erros que cometeu. Este é um aspecto interessante do romance de Carlos Daniel, um texto articulado com outros textos a que não falta imaginação e arte de contar.
Manuel Nunes

Passado um ano sobre a conclusão deste livro a crítica do Manuel Nunes despertou-me para ele.
Vem de novo a propósito esta ideia recorrente, que muitas vezes me assalta, de que somos feitos de duas metades: aquela que nós percepcionamos e a outra, talvez mais importante, que reside naquilo que os outros vêem em nós.
Falta ainda uma "terceira metade", que refiro no livro, e que é o valor intangível das coisas.
Quando alguém mete uma mão tão competente naquilo que escrevemos (que somos?), ficamos libertos de explicações, ganhamos liberdade. Mas ao mesmo tempo sentimo-nos obrigados a olharmo-nos com mais profundidade.
Penso que o meu narrador, inconstante e imperfeito, sou eu.
Nunca quero sobrevalorizar importância de escrever um livro como se isso fosse uma grande coisa, uma tarefa maior e mais nobre do que as vidas que nos rodeiam e que contêm uma grandeza e uma miséria que nunca conseguiremos reproduzir. E se nos conseguirmos aproximarmos delas isso corresponderá sempre a um mérito e a um talento relativos, cuja verdadeira "propriedade" pertence aos donos dessas vidas, aquilo que eles "são", aquilo que fizeram de nós.
Apropriamo-nos despudoradamente de outras vidas, de outras histórias e fazemos delas uma coisa nossa:
... "e já será um privilégio se alguém se reconhecer nelas e disser "é isso que eu sou" , ainda que se não reconheça naquilo que acabou de ler"...
Como diz o Manuel já tudo foi testado e inventado. É por isso que privilegio o plano das emoções e das convicções nunca o da verdade, e da segurança que é sempre uma presunção.
Essa é a história do meu "honesto" narrador.

1- Este livro tem três pontas: o enfrentar das paixões, a procura do carácter e a prepotência(?) do acaso.
Sobre as paixões é preciso não fugir delas com o pretexto de "não sofrer". É bom usá-las, gastá-las, vivê-las para podermos sair delas mais estóicos e mais felizes. Elas não são a razão de viver mas são uma boa razão para viver. "Amar é preciso, viver não é preciso". Perseguirei sempre as paixões nos meus livros.

2- O carácter é outra ponta. Ele não corresponde a coisas formais e tangíveis como a verdade e a honestidade. É antes um acerto com os condicionalismos da nossa existência, com a definição da nossa posição no mundo, com a busca de um equilíbrio que sejamos capazes de afirmar e defender.
Contém a permeabilidade à aprendizagem, à busca de sabedoria, à consonância com o instinto, ao assumir do erro, ao confronto com as nossas forças e fraquezas.
Pedro Olivares procurava esse carácter.

3- A nossa vida constrói-se nas entrelinhas do acaso.
O nosso intelecto é uma brincadeira de crianças.
As imagens que acumulamos arrastam-nos para a ideia de alma.
Estamos no dia 1 da humanidade e temos à nossa frente um puzzle para adultos. E já descobrimos que lhe faltam peças.
Trocar um Deus ausente por um acaso omnipresente, trágico e divertido, pode ser bom negócio.

Carlos Daniel



31 de janeiro de 2013

OS SAPATOS DE HERMES

Sandro Boticcelli, Alegoria da Primavera,1482, Galeria Uffizi, Florença
 
Hoje, lendo o relatório de Molero, comentado por Austin perante o espanto de Mister DeLuxe (ainda não tinha intervindo no processo o lápis regulador de John Computer do Departamento de Correcções e Acertos), lembrei-me dos sapatos voadores de Hermes, exemplarmente retratados na Alegoria da Primavera de Sandro Botticelli. Sapatos incomparáveis que o Maior Vendedor de Sapatos do Mundo, referido por Molero, não ousou citar.  Falou dos sapatos que andaram “nos pés de Proust à procura do tempo perdido”, dos que afagaram os pés de Gene Kelly em plena execução da Serenata à Chuva, dos sapatos calçados pelas bailarinas do Bolshoi, pelos evadidos das penitenciárias, pelos que costumam andar nas nuvens com as suas solas aéreas e os seus "atacadores de bruma". Dos sapatos de Hermes, nada. Não há vendedores perfeitos!


27 de janeiro de 2013

é um ponto de vista

A gente só tem uma vida, e portanto só tem uma história. Quando se precisa de contá-la é porque ela tem um erro em qualquer parte. Se estivesse certa, a gente só a vivia, e nem dela falava. Quando a gente a conta, é porque está errada. Quanto mais errada, mais falamos dela. O que é absurdo, claro, porque não se pode emendá-la.

Teolinda Gersão, «Uma orelha«, Histórias de Ver e Andar, 3.ª ed., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2002, pp. 88-89.

12 de janeiro de 2013

ciência demasiado humana

A história é feita de argumento e contra-argumento. Ou impomos as nossas ideias ou alguém no-las impõe.

Philip Roth, O Animal Moribundo, 2.ª ed.,trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006, p.96.

7 de janeiro de 2013

Dois ou três lugares-comuns a pretexto duma obra maior

     Gostaria de escrever aprofundadamente sobre este livro de Primo Levi, mas não me é possível. Não posso, por outro lado, deixar de me referir a uma das melhores obras que vieram a debate no Clube de Leitura do Museu Ferreira de Castro.
     Assim, com toda a disposição mas pouco tempo, direi a primeira banalidade: a ficção realista é sempre ultrapassada pela realidade, trate-se de um ambiente concentracionário na floresta amazónica (A Selva, de Ferreira de Castro), uma migração colectiva na América da Grande Depressão (As Vinhas da Ira, de John Steinbeck) ou uma exploração mineira em França (Germinal, de Émile Zola).
Se Isto É um Homem, de 1947, é um relato verídico de um sobrevivente, escrito ao longo de mais de um ano, tão intensamente vivo como profundamente meditado. E, por isso, o horror pôde ser descrito com objectividade, a benefício da narrativa, que não se deixa seduzir pela magnitude do tema (a vivência do próprio autor no infame campo de Auschwitz, até à libertação pelas tropas soviéticas, em Janeiro de 1944), conduzindo a narrativa porventura com uma grandiloquência que só a prejudicaria. Como Levi é um grande escritor, serve o texto com absoluta mestria, num estilo contido e recurso frequente a frases curtas, remates de períodos que nos deixam k.o.
Se Isto É um Homem: a condição simultaneamente trágica e patética do bicho-homem que conhecemos de nós próprios, mas que aqui outrém -- o autor -- revela. E, embora revelando-se, apenas o faz parcialmente, pois o autor/narrador fala de um eu que só em determinados e ocasionais momentos o é, porque do que se trata é a confirmação à outrance, e pelos meios conhecidos, do desiderato dos alemães nesta perseguição insana: a de retirar os judeus da humanidade -- não apenas exterminando-os, mas, naqueles que não eram desde logo executados, esvaziando-os dessa mesma humanidade, como que para comprovar teorias rácicas tão dementes quanto extraordinariamente estúpidas (um racista biológico, quando não for um doido varrido, será sempre um cretino, ignorante e por vezes perigoso).
    

à margem, mas a propósito

Outro lugar-comum, que por o ser não é menos verdadeiro, é o da natureza excepcionalmente maligna do feixe de ideias imbecil e mal cozinhado que foi o nacional socialismo, pior do que o estalinismo, na medida em que este, entre outras coisas, pintava o despotismo com as cores do humanismo (como embuste, talvez nada lhe leve a palma); o nazismo, pelo contrário, não ocultou a sua natureza degeneradamente maligna: a da suposta e absurda existência de uma raça superior, doutras inferiores, e até de uma categoria que estava -- nas cabeças deformadas dos --, abaixo da humanidade e que havia que exterminar, não sem  antes ser sugada, metodicamente, pelo trabalho até à exaustão, com rigor e cultura germânicos.