5 de maio de 2020

DIA MUNDIAL DA LÍNGUA PORTUGUESA

Elogio da língua portuguesa

Francisco Rodrigues Lobo, Corte na aldeia. Lisboa: Edições Vercial, 2010

DIÁLOGO I


E verdadeiramente que não tenho a nossa língua por
grosseira, nem por bons os argumentos com que alguns
querem provar que é essa; antes é branda para deleitar,
grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para
pronunciar, breve para resolver e acomodada às matérias
mais importantes da prática e escritura. Para falar é
engraçada com um todo senhoril, para cantar é suave com
um certo sentimento que favorece a música; para pregar é
substanciosa, com uma gravidade que autoriza as razões e
as sentenças; para cartas nem tem infinita cópia que dane,
nem brevidade estéril que a limite; para histórias nem é tão
florida que se derrame, nem tão seca que busque o favor
das alheias. A pronunciação não obriga a ferir o céu da
boca com aspereza, nem a arrancar as palavras com
veemência do gargalo. Escreve-se da maneira que se lê, e
assim se fala. Tem de todas as línguas o melhor: a
pronunciação da Latina, a origem da Grega, a familiaridade
da Castelhana, a brandura da Francesa, a elegância da
Italiana. Tem mais adágios e sentenças que todas as
vulgares, em fé de sua antiguidade. E se à língua Hebreia,
pela honestidade das palavras, chamaram santa, certo que não sei eu outra que tanto fuja de palavras claras em matéria descomposta quanto a nossa. E, para que diga tudo, só um mal tem: e é que, pelo pouco que lhe querem seus naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte.

Francisco Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia (1619)

15 comentários:

  1. Desta vez, a batalha da formatação foi minha. Que valha pelo conteúdo.
    J. A. Marcos Serra

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  2. Grande retrato! Muito a propósito!
    E a última frase, então... Até parece que o R. Lobo estava a ver o descalabro que é o AO90.

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    1. J. A. Marcos Serra6 de maio de 2020 às 11:40

      Tanta sintonia literária entre nós... e tão dissonantes no AO90... que pecou por ficar tão curto: (J e G / S e Z / multiplicidade do X / S e C ...e outros exemplos). Perfeito? Não. Há alguns aleijões. Melhor que antes? Sem dúvida. Imagine-se a ter de escrever com a ortografia da Notícia de Torto!

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    2. Ui, Zé Serra! Não sabia o meu amigo defensor desse aborto!
      Já passaram, quantos anos? 10? 8?, que está oficiosamente em vigor e não há praticamente nenhum dia em que não encontre no D. R., jornais, legendas de filmes e TV, argoladas tão banais e arrepiantes como fato por facto, contato por contacto (esta en vinil, à porta de museus e repartições), pato por pacto, infecioso por infeccioso, egícios por egípcios, etc etc etc. E repare que não são pessoas com a quarta classe (sem desprimor); a maior parte dessa gente é licenciada... É depois, a história da receção, para uniformizar (no Brasil é recepção)...
      A que se deve esta balbúrdia?
      Há alguma dúvida do nefasto papel do AO90?
      E não venha com a história de pharmacia e portuguez. Eu sou pela evolução do idioma, como o são na sua quase totalidade os críticos do AO. O problema é que o que fizeram é ligeiro, irresponsável e criminoso!
      Há tanta gente de olhos fechados...

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    3. jams.bonde@gmail.com7 de maio de 2020 às 00:02

      Quando há sentimento não há objetividade e neste caso foi o que aconteceu.
      Mas não foi só agora: sempre aconteceu quando houve implementação de novos AO.
      Então, caro Confrade, só há calhordas a darem erros ortográficos depois do AO? Antes do AO ninguém dava erros? Se assim foi, recuemos já...
      E poderia argumentar com "a pharmacia e o portuguez", sim. E com o "hei-de" e o "hei de", porque já tinha sido assim.
      Qual é o ponto exato em que a ortografia (não é a língua) estava boa?
      Partilho uma experiência recente.
      Estou a rever um livro sobre as Penhas Douradas. O autor é seu acérrimo correlegionário no que se refere ao AO. Este livro tem, porém, um pormenor: tem muitas participações e contributos de várias pessoas (uma delas eu). No que se refere ao AO, uns, saudosistas; outros, convertidos. O autor decidiu respeitar as opções de cada um e o livro está, portanto, escrito com as duas versões ortográficas, conforme o autor de cada contributo. Bela tarefa a da revisão, hem!
      Mas agora vem o caricato da história:estou fartinho de emendar textos do autor, porque está permanentemente a cair no uso de palavras conforme o atual Acordo... e eu a emendar-lhas para o antigo.
      Engraçado, não é? Posso mostrar-lhe pessoalmente.
      E o homem (do antigo AO), garanto-lhe, é um indivíduo culto e cheio de diplomas e medalhas.
      O erro não escolhe Acordos...

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  3. Zé Serra, não resisti a partilhar na minha página do Facebook. Espero que não leve a mal. Estava a pensar pôr lá qualquer coisa a propósito do Dia Mundial e não podia encontrar melhor... Obrigado.

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    1. J. A. Marcos Serra6 de maio de 2020 às 11:44

      Fez muito bem! Há que valorizar e dar a conhecer os escritores portugueses. Foi o que me disse a minha professora de Língua Portuguesa, quando lhe pedi autorização para publicar isto, que ele me enviou.

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  4. A desvalorização da Língua Portuguesa pelos portugueses já vem de longe...

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  5. Muito bem metido!
    E «A Corte na Aldeia» é um livro extraordinário...

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  6. Grande Rodrigues Lobo, autor que tenho sempre à mão e que na "Corte na Aldeia" tem presente a magia de Sintra. Ligo pouco a "dias". Dia da língua portuguesa é quando um homem ou uma mulher quiserem. Agradeço aos colegas que se lembram destas coisas e não resisto a publicar este soneto de Natália Correia.

    LÍNGUA MATER DOLOROSA

    Tu que foste do Lácio a flor do pinho
    dos trovadores a leda a bem-talhada
    de oito séculos a cal o pão e o vinho
    de Luís Vaz a chama joalhada

    tu o casulo o vaso o ventre o ninho
    e que sôbolos rios pendurada
    foste a harpa lunar do peregrino
    tu que depois de ti não há mais nada,

    eis-te bobo da corja coribântica:
    a canalha apedreja-te a semântica
    e os teus verbos feridos vão de maca.

    Já na glote és cascalho és malho és míngua,
    de brisa barco e bronze foste a língua;
    língua serás ainda... mas de vaca.

    Fonte:
    Poema publicado pela primeira vez no livro "Inéditos", 1973-76, e que integra a antologia de toda a poesia de Natália Correia, "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias", 2º volume, Projornal, Lisboa.'

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    1. O poema é conhecido, mas não fica mal a propósito do tal dia da língua portuguesa.

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    2. Belíssimo poema. Não conhecia.

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  7. Sobre "A Corte na Aldeia" e Sintra, fui ver ao texto da Editorial Presença, 1982. Transcrevo a primeira nota do Diálogo I, autoria de José Adriano de Carvalho: « A localização da "aldeia" obedece às coordenadas dum "locus amoenus"..., grato para atrair, por diferentes razões, moradores, e assim, criar o fundo paisagístico do quadro dialógico. No entanto, a tentação de identificar essa "aldeia"... das cercanias de Lisboa, assumou, pela prinmeira vez (que saibamos), nas páginas de R. Jorge, "Francisco Rodrigues Lobo..."ed. cit., p. 325, que, prudentemente, aí insinua a sua identificação com Sintra... Depois, tal questão, através da introdução que A. Lopes Vieira apôs à mais divulgada das edições de "Corte na Aldeia" (Lisboa, Clássicos Sá da Costa, s.d.), passou a certeza... (conf., por exemplo, Diogo Ramada Curto, "O Discurso Político em Portugal, 1600-1650". Lisboa, Projecto Universidade Aberta, 1988, p. 46, obra, aliás, de esclarecida erudição ao serviço de uma aliciante interpretação)».
    --- A nota é um bocado complicada, abusadora das reticências, desculpem lá, mas já agora é interessante saber-se que esta obra tem a ver com a "nossa" Sintra.

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  8. Li em tempos de liceu (no caso, colégio)... e agora deixou-me com vontade de reler.
    Bom sinal.

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