31 de janeiro de 2022

o início de O ÚLTIMO CAIS

 

«Diário de Bordo / "Saímos de Quelimane na canhoneira Mandovi, com direcção à ilha de Moçambique, no dia 4 de Setembro de 1879, pelo meio dia.» Helena Marques, O Último Cais (1992), Alfragide, Leya, 2009, p. 9.

21 de janeiro de 2022

VATES (5)


AOS VINDOUROS, SE OS HOUVER...

Vós que trabalhais só duas horas
a ver trabalhar a cibernética,
que não deixais o átomo a desoras
na gandaia, pois tendes uma ética;

que do amor sabeis o ponto e a vírgula
e vos engalfinhais livres de medo,
sem preçarios, calendários, Pílula,
jaculatórias fora, tarde ou cedo; 

computai, computai a nossa falha
sem perfurar demais vossa memória,
que nós fomos pràqui uma gentalha
a fazer passamanes com a história;

que nós fomos (fatal necessidade!)
quadrúmanos da vossa humanidade.

ALEXANDRE O' NEILL, De Ombro na Ombreira (1969)

Nota: O' Neill, uma poesia que vai do satírico ao elegíaco (lembremo-nos de "Seis poemas confiados à memória de Nora Mitrani", Poemas com Endereço, 1962), aqui com uma saborosa antevisão de tempos  marcados pelo imaginário do nuclear, da computação, do amor livre e da sociedade do lazer. Mais de meio século depois, que dizer das palavras do poeta?

20 de janeiro de 2022

VATES (4)

De ANTÓNIO GEDEÃO, da obra Linhas de Força (1967) - na qual se encontram "Poema do coração", "Poema para Galileo", "Poema da buganvília", "Catedral de Burgos", "Lição sobre a água" e outros poemas bem conhecidos -, esta "Carta aberta"  que é a enunciação de uma arte poética da poesia moderna:

CARTA ABERTA

Um homem progride, blindado e hirsuto
como um porco-espinho.
É o poeta no seu reduto
abrindo caminho.
Abrindo caminho com passos serenos
e clava na mão,
que as noites são grandes e os dias pequenos
nesta criação.

Esmagando as boninas, os cravos e os lírios,
cortando as carótidas às aves canoras.
Chegaram as horas
de acender os círios,
de velar as ninfas no estreito caixão,
de enterrar as frases e as vozes incautas,
de oferecer a Lua para os astronautas
e as rosas fragrantes à destilação. 

17 de janeiro de 2022

VATES (3)

ou sim, ou não...
... oh! sim, onam!  4

Doente da luxúria de estar só
e não amar ninguém, ou quase, choro.
Zumbem, zangados zangãos, zês de ouro
mortal, e o zumbido é um solidó

enervador de vocação. Filhó
nostálgica e pardusca que o decoro
ousou deixar na mesa, sobre o ouro
sagaz mas fútil da baixela, Avó

qualificado pelos ministérios,
um colar torre espada, por serviços
antigos e distintos, na gaveta

terceira do armário da saleta,
ruim vinagre da vinha dos mistérios,
onanizo, mesquinho, os meus feitiços. 

JOÃO PEDRO GRABATO DIAS, Sonetos de Amor e Circunstância e Uma Canção Desesperada (Lourenço Marques, 1970)

Nota: João Pedro Grabato Dias é pseudónimo de ANTÓNIO QUADROS pintor (1933-1994) que além daquele usou os nomes fictícios de Multimati Barnabé João e Frei Ioannes Garabatus. 

16 de janeiro de 2022

CASA DA LUZ, FUNCHAL

NO FUNCHAL - II

No Museu da Electricidade
a que chamam a Casa da Luz
quando ele entrou
com seus sapatos flamejantes
as lâmpadas eléctricas
acenderam todas:

Seu nome era Eucanaã.

ANA HATHERLY, Itinerários (2003)

Nota: Este "post" é dedicado ao nosso amigo Laurindo que em 26-12-2021 aqui deixou uma foto com o título "Lembro-me desses Natais" e depois, em comentário, aludiu à Casa da Luz da cidade do Funchal. Na obra cuja capa se reproduz, há, além deste, outros poemas relacionados explicitamente com a Madeira: "Na Ilha de Porto Santo", "Voando para a Ilha da Madeira" e "No Funchal - I". Poemas  como "O Dragoeiro", "À sombra dos jacarandás", "Num hotel de cinco estrelas I e II" e "Turismo sénior" também parecem derivar da viagem à região. 
No poema, os «sapatos flamejantes» de Eucanaã pertencem, naturalmente, ao poeta brasileiro Eucanaã Ferraz (Rio de Janeiro, 1961). 

15 de janeiro de 2022

VATES (2)

DANIEL FILIPE

Correu sob as minhas pálpebras a tua imagem
agora pedra definitiva. Abraçava-te
inteiro, movendo-te entre mesas, sorrindo
aparentemente impreparado às arestas do dia. Óculo

de aferir o silêncio da pátria. Caçador
de girassóis entre o cimento. Tudo
o que de súbito extravasou da urna
e se tornou um rio que descia a cidade
e se mantinha vivo, voz agora impune.

Voz lírica e vibrátil, êmbolo
de aço que tempera. As visitas
sabem agora não te encontrar em casa. A voz
calou o que o futuro lhe daria. O passado
é porém um disco permanente
rolando sobre a agulha.

O que fizeste dessa voz, ferramenta
incorrupta, é agora amianto.
Passa purificadora pelo fogo
entre o mecanismo dos relógios.

Algures arquivam uma ficha. Sabem
já não estares ao alcance. O que fica é firme.
O resto simples cinza aérea
que já nem faz sombra no vento.

Deslizam-me dos dedos velhas fotografias. Servem
de vez em quando para lembrar teus fatos. 

9 de Abril, 1964

EGITO GONÇALVES, O Fósforo na Palha (1970)

14 de janeiro de 2022

RUY BELO : A NOVA POESIA EM PORTUGAL


 

                    Em 78 procuravam-se novos rumos para a cultura portuguesa após uma década de notáveis experimentalismos. Retenho algumas ideias que bebi em "A Vida da Poesia" de Gastão Cruz : a) quando R.B. surge o discurso poético estava por definir-se quanto a direcções a tomar - a linha discursiva que vinha de Sena, Rosa ou Helder estava suspensa.; b) surge um tempo de desconstrução do discurso com o desmantelamento de esquemas lógicos e sintáticos; c) Ruy Belo opta pela reconstrução do discurso.

Na revista Raíz e Utopia que sai no Inverno daquele ano, cuja leitura recomendo vivamente, (  que tenta ocupar o hiato cultural com reflexões muito amplas) é publicado na secção de Poesia um inédito de Ruy Belo que renova tudo o que sabemos ou pensamos a propósito do poeta. Cuidava-se então, neste número, de uma "nova poesia em Portugal" pelas mãos de José Manuel Alexandre, de Manuel Cintra e Luis Miguel Nava. São textos longos, com versos muito longos e irregulares aonde se deixa correr a pena a quente sem preocupações de rima numa confluência temática "delirante".  Não sei que é feito desta nova poesia...

O inédito manuscrito de Ruy Belo intitula-se "Na Noite de Madrid"  (escrito na Póvoa de Varzim, à vista do mar, 10 horas da manhã do dia 29 de Dezembro de 1971). Chama-se a atenção para este texto por ser o passo seguinte a Homem de Palavras(s) transportando contudo todas as abordagens temáticas que conhecemos no poeta nomeadamente a problemática da exclusão do sujeito e do anonimato do outro que tão humanamente expôs nos seus poemas: "que jornal contaria a imensidão do nome/de quem como um insulto ali jazia?/que pensamentos próximos tivera?/e o que levaria ele nos bolsos?/Donde viria?sorriria?onde ia?".

Para concluir: Foi esta forma de expressão aquela que mais me atingiu e deixou possivelmente algumas marcas nos meus escritos e nos da minha geração nas entrelinhas de finais de 70 despoletando em nós alguma poesia política despertando-nos para várias realidades do país real que eramos e país sonhado que continuamos a ser por muitos anos.       

                         

                

13 de janeiro de 2022

VATES (1)

ALTA NO CHÃO

Alta no chão,
ainda há pouco erguida.
Agora lâmina, 
lenha penetrável,
ardente, cega.

Rastejante boca
que a língua me inunda.

ANTÓNIO RAMOS ROSA, Nos Seus Olhos de Silêncio (1970).


8 de janeiro de 2022

"NO WAY OUT", de RUY BELO

Ontem, quando li na sessão parte do poema de Ruy Belo, não tinha presente o falecimento de SIDNEY POITIER (justamente na véspera, 6-1-2022), protagonista do filme evocado pelo poeta em Homem de Palavras[s]: No Way Out (1950), de Joseph L. Mankiewicz.  O actor representa o papel de um médico que presta tratamento hospitalar a um delinquente ferido, procedente de um problemático bairro de nome Beavar Canal. A sua intervenção não corre bem e é lançada sobre ele a falsa acusação de descurar intencionalmente os cuidados de saúde devidos ao ferido, por sinal branco e racista. Um filme sobre o ódio racial, dos mais fortes que Hollywood produziu. 

NO WAY OUT

Sei hoje que sou pequeno
e não é esse o meu menor mal
mas faço meus os problemas
da gente de Beavar Canal 

Nasci numa aldeia perdida
nestes caminhos de Portugal 
mas tanto tenho irmãos aqui
como os tenho em Beaver Canal

Eu a miséria da minha terra
contemplei-a ao natural 
enquanto vi no cinema
como se vive em Beaver Canal

Mais do que a pedra mais do que a árvore
o homem é para mim real
e tanto sofre a dois passos de mim
como sofre em Beaver Canal

Não há país que não seja meu
em qualquer parte morro pois sou mortal 
mas aproveito a força da rima
para dizer que a minha rua é Beaver Canal

Morra eu dividido aos quatro ventos 
seja o legado sentimental 
fique no mundo onde ficar 
deixo o meu coração a Beaver Canal


Ruy Belo, Homem de Palavra[s]