15 de janeiro de 2022

VATES (2)

DANIEL FILIPE

Correu sob as minhas pálpebras a tua imagem
agora pedra definitiva. Abraçava-te
inteiro, movendo-te entre mesas, sorrindo
aparentemente impreparado às arestas do dia. Óculo

de aferir o silêncio da pátria. Caçador
de girassóis entre o cimento. Tudo
o que de súbito extravasou da urna
e se tornou um rio que descia a cidade
e se mantinha vivo, voz agora impune.

Voz lírica e vibrátil, êmbolo
de aço que tempera. As visitas
sabem agora não te encontrar em casa. A voz
calou o que o futuro lhe daria. O passado
é porém um disco permanente
rolando sobre a agulha.

O que fizeste dessa voz, ferramenta
incorrupta, é agora amianto.
Passa purificadora pelo fogo
entre o mecanismo dos relógios.

Algures arquivam uma ficha. Sabem
já não estares ao alcance. O que fica é firme.
O resto simples cinza aérea
que já nem faz sombra no vento.

Deslizam-me dos dedos velhas fotografias. Servem
de vez em quando para lembrar teus fatos. 

9 de Abril, 1964

EGITO GONÇALVES, O Fósforo na Palha (1970)

3 comentários:

  1. Respostas
    1. ... e fascículos de poesia "A Serpente", três números publicados em 1951 com direcção e orientação literária de Egito Gonçalves.

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    2. olha, esses eu não conheço...

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