5 de novembro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (29)

 

sida

 

aqueles que têm nome e nos telefonam

um dia emagrecem – partem

deixam-nos dobrados ao abandono

no interior duma dor inútil muda

e voraz

 

arquivamos o amor no abismo do tempo

e para lá da pele negra do desgosto

pressentimos vivo

o passageiro ardente das areias – o viajante

que irradia um cheiro a violetas nocturnas

 

acendemos então uma labareda nos dedos

acordamos trémulos confusos – a mão queimada

junto ao coração

 

e mais nada se move na centrifugação

dos segundos – tudo nos falta

nem a vida nem o que dela resta nos consola

a ausência fulgura na aurora das manhãs

e com o rosto ainda sujo de sono ouvimos

o rumor do corpo a encher-se de mágoa

 

assim guardamos as nuvens breves os gestos

os invernos o repouso a sonolência

o vento

arrastando para longe as imagens difusas

daqueles que amámos e não voltaram

a telefonar

 

AL BERTO, Horto de Incêndio (1997)


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